“Miúdos e amendoados, os olhos de Damaris só não dizem mais do que as vogais alongadas de seu sotaque maranhense. Era pelo solo quente da região nordestina que esses mesmos olhos corriam, apressados, para a beirada do rio, na noite funda da cidade de Codó, em busca da Mãe d’Água – aquela que, segundo a crença local, chama para as águas as mulheres tristes, a fim de livrá-las do sofrimento.
No caminho, cobras e bichos de tantas espécies se juntavam à menina, que aprendeu desde cedo que só sente medo da natureza quem não conhece o chão onde pisa. Cria dos rios, era no encontro com as águas que ela acreditava que poderia romper com as poças de dor que existiam dentro de si mesma.
Foi naquela cidadezinha pequena do norte do Maranhão que, em 22 de agosto de 1927, veio ao mundo Damaris de Oliveira Lucena, a mulher que, quarenta anos mais tarde, seria exilada em Cuba junto a três de seus quatro filhos e se tornaria memória viva e presente de um dos períodos mais tristes da história brasileira: a ditadura civil-militar.”*
Nos deixou na manhã do último domingo (20 de dezembro), aos 93 anos, a líder sindical e operária Damaris Lucena, na cidade de Valinhos (SP). Negra e nordestina, foi militante política na luta por direitos, memória viva e presente da resistência operária à ditadura militar. Damaris passava por cuidados paliativos de um câncer há 3 anos. Segundo a família, morreu em casa, cercada de amor e de todos os cuidados possíveis, de mãos dadas com a filha Denise.
Foi companheira de Antônio Raymundo Lucena, militante político morto em 1970, em Atibaia (SP). Lucena foi assassinado em casa por agentes da ditadura, na frente da família. Seu corpo permanece desaparecido. Damaris foi presa junto com os filhos, e torturada nas dependências da Oban. De lá partiu para Cuba, onde a família recebeu asilo.
Ela teve quatro filhos: Ariston, Denise, Adilson e Telma. Solidária, tornou-se mãe adotiva de Ñasaindy, filha da militante Soledad Barrett Viedma, assassinada em um dos mais trágicos episódios do regime militar, o Massacre da Chácara São Bento. Damaris retornou ao Brasil somente com a Lei da Anistia e desde então buscava Justiça pelo assassinato do marido.
Damaris Lucena é uma das homenageadas no livro Heroínas desta História, publicado pelo Instituto Vladimir Herzog em março de 2020 para dar visibilidade às trajetórias de mulheres que tiveram seus familiares mortos por agentes do Estado brasileiro durante a ditadura e fizeram de suas vidas uma constante luta por memória, verdade e justiça. Escrito pela jornalista e escritora Jéssica Moreira, o perfil reconta a trajetória da militante por meio de seu encontro com a autora.
O IVH lamenta profundamente a morte de Damaris e manifesta toda sua solidariedade à família Lucena. Toda admiração e reconhecimento pelo legado que Damaris, incansável, deixou para a história da luta por direitos no Brasil.
“As palavras de Damaris são feito flechas. E, como tais, não atravessam sozinhas. Carregam a história e a ancestralidade dos rios maranhenses, dos povos negros e das florestas que tanto permearam e ainda continuam em seus caminhos. Ouvir Damaris é como estar nessa história. É preciso aprender a escutar as flechas, que ora virão com ironia, ora com dor, com tristeza ou alegria”*
Damaris, presente!
* Trechos do capítulo sobre Damaris Lucena, de autoria de Jéssica Moreira, no livro “Heroínas desta História – Mulheres em busca de justiça por familiares mortos pela ditadura”