Relatório lançado no dia 04/08 pelo Núcleo Monitora CNV, projeto do IVH, aponta a importância de uma perícia comprometida com os direitos humanos
O Instituto Vladimir Herzog, por meio do Núcleo Monitora CNV e com o apoio da Fundação Friedrich Ebert – Brasil, lançou na terça-feira (04/08) o relatório “Políticas públicas de Perícia Criminal na garantia dos direitos humanos”, de autoria da professora Flávia Medeiros. O evento foi marcado pela transmissão ao vivo “Por que precisamos falar sobre perícia no Brasil?”, com mediação de Lucas Paolo Vilalta, coordenador da área de Memória, Verdade e Justiça do IVH. Participaram da conversa: Rogério Sottili (diretor executivo do IVH), Christoph Heuser (representante da FES-Brasil), Flávia Medeiros (pesquisadora, professora da UFSC e autora do Relatório), Maria Teresa Cruz (Ponte Jornalismo), Raull Santiago (Coletivo Papo Reto) e Patrícia de Oliveira (Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência).
ACESSE AQUI O RELATÓRIO COMPLETO
O relatório apresenta um estudo profundo sobre a situação atual do sistema de perícias no Brasil e aponta sugestões para uma atuação pericial voltada aos direitos humanos. Ele foi produzido a partir da recomendação 10 da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que sugere a desvinculação dos órgãos de perícia das secretarias de segurança pública e das polícias civis. Em sua fala de abertura, Rogério Sottili reafirmou a importância do Núcleo Monitora CNV, que busca justamente o respeito e a implementação das 29 recomendações da Comissão Nacional da Verdade pelo Estado brasileiro, uma luta histórica dos familiares e de organizações da sociedade civil por Direitos Humanos. Christoph Heuser, representante da FES – Brasil, reforçou a relevância do relatório ao trazer para o debate o papel central que as perícias criminais têm na garantia da justiça, tema especialmente urgente e necessário diante do contexto de violência que o país enfrenta.
A autora Flávia Medeiros (UFSC e InEAC) apresentou a estrutura do relatório e uma das reflexões centrais da pesquisa: “de que forma a atuação da perícia tem sido reprodutora de práticas, discursos e moralidades que regulam e normalizam violências, permitindo a legitimação de violações dos direitos humanos?”. Flávia contextualizou também a discussão sobre perícia no Brasil, contrastando em sua fala as baixas taxas de elucidação dos crimes com as altas taxas de encarceramento sem o devido processo legal no país. De acordo com a professora, isso explicita, por um lado, a impunidade nos casos de violência do Estado e, por outro, um elevado punitivismo dos crimes de baixa letalidade, como furtos e roubos.
A jornalista Maria Teresa Cruz (Ponte Jornalismo) apontou o desinteresse político como um dos empecilhos à urgente reforma do sistema pericial que poderia transformar este cenário. “O que importa não é a busca da verdade, mas ter uma polícia opressora, violenta, que responda a uma estrutura de aparato repressor e pouco inteligente. Que vá na força bruta, e não na inteligência”, disse. Também destacou, a partir de sua experiência diária com o jornalismo investigativo, a ocorrência de alterações nas cenas de crimes e outras fraudes processuais na investigação de mortes em decorrência de intervenção policial, os chamados “autos de resistência”, como no caso do jovem David Nascimento dos Santos.
Por sua vez, Patrícia de Oliveira, irmã de um dos sobreviventes da Chacina da Candelária (Rio de Janeiro, 1993) e referência na luta dos familiares de vítimas da violência do Estado, expôs a importância da perícia para a garantia da justiça. “A gente precisa ter os órgãos de perícia autônomos, com recursos para fazer o trabalho certo, dentro da lei, que fala: ‘todo mundo é inocente até que prove o contrário’. O que a gente vive agora é ‘o todo mundo é culpado até que prove que é inocente’ ”, afirmou. Integrante da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, Patrícia relatou que peritos sofrem pressão dos delegados para que seus laudos sustentem as versões policiais, que já contam desde o início com a fé pública: “a palavra dele [policial] vale duas vezes e isso acaba amedrontando, fazendo com que muitos familiares tenham medo”.
Raull Santiago, morador do Complexo do Alemão (Rio de Janeiro) e membro do Coletivo Papo Reto, evidenciou a ausência de ações do Estado nas periferias. “A única política que chega todos os dias nas favelas é a necropolítica, a política de genocídio, de extermínio. E muitas vezes, o que a gente vive é que nós somos a própria perícia local, com nossos telefones e câmeras, de forma independente”, apontou, relembrando em seguida o esforço dos moradores do Alemão para produzir provas e assegurar a verdade do ocorrido em casos emblemáticos, como o das crianças Eduardo de Jesus e Ágatha Félix, ambos vítimas de operações policiais. Raull pediu também que a sociedade se mobilize pela ADPF das favelas (ADPF 635 no Supremo Tribunal Federal), que suspende as ações violentas da polícia em periferias e favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia de Covid-19.
Durante o encerramento do evento, Lucas Paolo Vilalta, coordenador da área de Memória Verdade e Justiça do IVH, reiterou o mote do manifesto produzido pela Coalizão Negra por Direitos, reafirmando o posicionamento do Instituto no combate às violências estruturais do Brasil: “enquanto houver racismo e impunidade na violência de Estado, não haverá democracia”.