28/08/2019

O Brasil ainda deve justiça às vítimas das graves atrocidades cometidas no passado

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A Lei de Anistia foi importante para a redemocratização do país e contribuiu para o restabelecimento do Estado de Direito, mas, 40 anos depois de sua promulgação, é imprescindível que ela seja reinterpretada pelos órgão da justiça brasileira

Durante os 21 anos da ditadura militar, uma série de graves crimes contra a humanidade foram perpetrados por agentes de Estado. Vivíamos em um contexto de violações diárias, prisões arbitrárias, sequestros, torturas, assassinatos, desaparecimentos forçados, terror e pânico na sociedade.

Se houve na história recente do nosso país algum regime verdadeiramente antagônico aos direitos humanos, certamente foram esses sombrios anos de Ditadura Militar. Os agentes públicos responsáveis por esse cenário nunca foram devidamente julgados e punidos. Aliás, este tema ainda é, tanto tempo depois, uma das principais fontes de litígio do Estado Brasileiro com o sistema internacional de Direitos Humanos. E a Lei de Anistia, que neste 28 de agosto de 2019 completa 40 anos, assume papel fundamental nesta disputa.

Durante essas quase quatro décadas, não apenas pelo debate público na sociedade, como também pelo amplo debate entre especialistas, tornou-se claro e evidente que a interpretação da lei que prevalece no Brasil não é compatível com as normas internacionais de direitos humanos.

O argumento principal que reforça a incompatibilidade entre as normas internacionais de direitos humanos incorporadas pelo Brasil e a atual interpretação da Lei da Anistia vigente relaciona-se ao fato de a interpretação que prevaleceu é aquela que impede a investigação de graves violações de direitos humanos cometidos contra a humanidade. Pela sua natureza, esses crimes são, por definição, imprescritíveis e inanistiáveis.

A justiça brasileira, por sua vez, insiste em considerar que as violações de direitos humanos cometidas na ditadura são crimes políticos – o que garantiu e ainda garante anistia e proteção aos torturadores do regime militar. No entanto, tratados internacionais assinados pelo Brasil caracterizam esses crimes, em especial a tortura, como crimes contra a humanidade e, portanto, não passíveis de anistia, justamente por atentarem contra valores humanos básicos da comunidade internacional.

Pretender anistiar crimes contra a humanidade também caracteriza uma violação a normas internacionais quando se impede que Estados cumpram suas obrigações de investigar, processar e punir agentes estatais violadores de direitos humanos; de revelar a verdade às vítimas à sociedade; e de afastar criminosos de seus cargos.

Ao sancionar a lei, em 1979, o governo do general João Baptista Figueiredo pretendia colocar um ponto final na questão das punições infligidas aos opositores do regime militar e aos perseguidos políticos. A lei, diziam os militares, vinha para “pacificar a família brasileira”.

De fato, a anistia foi importante para a redemocratização do país e contribuiu para o restabelecimento do Estado de Direito. No entanto, por ter sido aprovada quase que exclusivamente nos termos desejados pelos militares, ela possibilitou que representantes do governo ditatorial e integrantes dos aparatos de repressão escapassem de responsabilização pelos crimes cometidos.

Anos depois, os relatórios da Comissão Nacional da Verdade e das várias outras comissões da verdade que se espraiaram pelo Brasil trouxeram à tona uma realidade que já era de conhecimento de pesquisadores e familiares de vítimas da ditadura: agentes do Estado cometeram – sistematicamente, com o conhecimento do mais alto escalão do governo militar e em pleno exercício de suas funções – um vasto conjunto de crimes de lesa humanidade, pondo em prática uma estratégia muito bem organizada de repressão contra aqueles considerados inimigos do regime. E, graças à Lei de Anistia, até hoje não foram responsabilizados por isso.

Como se não bastasse, a impunidade perpetuada durante a ditadura militar deixa um legado no imaginário coletivo que se traduz na tolerância à violência de Estado e no eventual reconhecimento, por parte da sociedade, da legitimidade do uso desproporcional da força. Mais ainda: traduz-se na naturalização da impunidade que muitos desses agentes creem gozar. É como se houvesse, no Brasil, uma licença para matar.

Não por acaso, as forças policiais ainda fazem uso dos autos de resistência que acobertam práticas cotidianas de uso excessivo da força, execuções extrajudiciais e torturas. Os alvos são óbvios: homens e mulheres negros, pobres e moradores das periferias. Em plena democracia, cidadãos brasileiros seguem sendo constantemente submetidos a um cotidiano em que o terror, o medo e a insegurança imperam, vivenciando ações policiais e intervenções militares que têm características muito semelhantes à atuação dos aparatos de repressão da ditadura.

Por todos esses motivos, é imprescindível que busquemos uma nova interpretação da Lei de Anistia. O judiciário brasileiro, liderado pelo Supremo Tribunal Federal, tem se esquivado de cumprir suas obrigações e adequar-se ao sistema internacional de direitos humanos e suas normativas. Um Estado que assume compromissos perante a comunidade internacional e não os cumpre não é o tipo de Estado que queremos.

Hoje, 40 anos depois da sanção da Lei da Anistia, sentimos, das mais diversas formas, porque ter deixado feridas abertas durante o processo de redemocratização nos custa tanto. Isso não diz respeito apenas ao passado, mas também ao presente e, principalmente, ao futuro. Garantir a tarefa incompleta de se consolidar a democracia no Brasil é indissociável da necessidade de fazer justiça a todos que sofreram com a violência do Estado. E é por isso que a reinterpretação da Lei da Anistia nunca foi tão necessária.

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