Para o ex-deputado federal, governos do partido erraram ao não exigir um pedido de desculpas público dos militares sobre os crimes cometidos pelos agentes do Estado na ditadura militar.
De Rubens Valente, da Folha de S. Paulo
Ex-deputado federal e figura estratégica na articulação entre o Partido dos Trabalhadores (PT) com as Forças Armadas durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma (2011-2016), José Genoíno, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, avaliou como um erro a não exigência de um pedido de desculpas público dos militares sobre os crimes cometidos pelos agentes do Estado na ditadura militar.
O ex-parlamentar diz continuar acreditando, contudo, que o melhor para o país foi não ter revisado a Lei da Anistia. A lei foi aprovada em 1979, reafirmada pelo Congresso após a redemocratização e confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em 2010.
Nesta semana, a lei completou 40 anos. Promulgada em 1979 pelo último presidente da ditadura, João Figueiredo, após grande mobilização da sociedade civil e de líderes da oposição, a lei concedeu anistia “a todos quantos […] cometeram crimes políticos ou conexos com estes” de 1961 a 1979. Com isso, abriu espaço para o regresso de diversos políticos da oposição que estavam exilados no exterior. Desde o primeiro momento, contudo, a impunidade de militares que participaram da repressão à esquerda passou a ser questionada por familiares de mortos e desaparecidos.
Eles queriam que a lei fosse revisada para permitir a punção dos militares que sequestraram, torturaram e mataram.
Em um vídeo de 2014, como relevado pela Folha, o ex-ministro da Defesa Nelson Jobim contou como atuou José Genoíno, em manifestação a favor da Anistia na praça da Sé, em São Paulo, em 1979. Em seu depoimento, citou o papel de Genoíno, que teria trabalhado “brutalmente no sentido de apaziguar os entendimentos”.
Procurado pelo jornal para comentar o depoimento, Genoíno confirmou a percepção de Jobim e o elogiou como alguém “que sempre foi muito claro e coerente com as posições dele”. Primeiro ex-guerrilheiro da esquerda a ser condecorado com a Medalha da Vitória, instituída em 2004 pelo Ministério da Defesa (a honraria a Genoíno depois foi revogada, em 2017, no governo de Michel Temer), Genoíno foi assessor especial no Ministério da Defesa na gestão de Jobim.
Ex-presidente nacional do PT, Genoíno foi condenado em 2012 no processo do mensalão a 4 anos e 8 meses de reclusão. Cumprida em regime semiaberto e domiciliar, a pena foi extinta em 2015 pelo STF.
Hoje, o ex-deputado acha que os governos do PT deveriam ter agido diferente em pelo menos dois pontos na relação com os militares. “Eu hoje faria uma revisão [do que foi feito]. Eu acho que a gente deveria ter forçado o pedido de desculpas e os militares deveriam ter admitido, para todo o país, os crimes e o terrorismo de Estado do período. O segundo ponto é que a Comissão Nacional da Verdade deveria ter sido instalada em 2003, logo no começo do governo Lula, e não depois”, disse o deputado.
A CNV só foi instalada em 2012, no primeiro mandato de Dilma Rousseff. Genoíno disse que sempre defendia o pedido de desculpas quando tratava do assunto com civis e militares, mas sua posição acabou vencida.
“Falei no Ministério da Defesa, inclusive aos comandantes, que eles admitissem que houve crimes e terrorismo de Estado. Eu levei isso em vários lugares. Levei em palestras na ESG [Escola Superior de Guerra], no CMA [Comando Militar da Amazônia], quando era assessor de Jobim. E o Jobim sabia que eu defendia isso. Alguns militares achavam razoável, outros diziam ‘não dá’, outros, ‘a gente engole’. Foi uma situação tensa, mas eu coloquei essa questão para eles”, disse o ex-deputado.
Ele diz acreditar que esse pedido de desculpas era importante por ser “um ato de pacificação, de reconhecimento, isso é necessário”. “A questão nunca foi democraticamente solucionada. O nosso governo deveria ter solucionado.”
Irrevogável
Familiares de mortos e desaparecidos e ex-guerrilheiros nunca aceitaram a falta de responsabilização de militares que torturaram e mataram. O ex-deputado Gilney Viana (PT), que em 1979 estava preso e participou da greve de fome de 32 dias contra a Lei da Anistia, que não alcançou os militantes de esquerda que já haviam sido condenados, disse que ela “respondeu às pressões das oposições democráticas mas, como foi proposta e votada durante a ditadura militar, impôs também a anistia aos torturadores”.
Viana participou da ALN (Ação Libertadora Nacional), criada pelo guerrilheiro Carlos Marighella (1911-1969).
“A lei se transformou em limite ao estado democrático de direito. Mesmo governos democráticos como os de FHC e Lula, apesar dos avanços na área de direitos humanos, não tiveram a coragem de romper este limite, temerosos de pronunciamentos militares”, afirmou.
“O próprio STF, mesmo reconhecendo a autoridade da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o Brasil e negou validade à autoanistia, não decidiu pela punibilidade dos torturadores”, disse Viana, que chama as pressões militares durante os governos civis de “verdadeiras chantagens”.
A procuradora regional da República em SP Eugênia Gonzaga, ex-presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e que nos anos 2000 integrou os primeiros esforços do Ministério Público Federal para responsabilizar agentes do Estado por crimes cometidos na ditadura, disse que “a anistia é uma forma de o país se reencontrar, seguir adiante, mas há muitas formas de seguir adiante”.
Para ela, o país procurou o caminho mais fácil. “A Anistia de 1979 foi uma saída honrosa para os militares. Foram eles perdoando seus próprios erros.”
Segundo Eugênia, os governos civis passaram a acreditar que o melhor era não tocar no tema da revisão da Anistia.
“Foi a realpolitik. ‘Não quero mexer nesse lixo’. Mas o lixo estava lá embaixo o tapete. Pergunta quantos militares foram condenados, quantos cumpriram pena? Nenhum. É um pacto não escrito, ‘não vou punir os agentes do Estado’. A Lei da Anistia tem seu valor, o que foi absurdo foi esse pacto de não processar.”
Para Eugênia, o ex-ministro Jobim “ganhou a queda de braço dentro do governo porque Lula só queria saber da governabilidade”.
O ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Sepúlveda Pertence, 87, que em 1979 foi o relator na OAB (Ordem dos Advogado do Brasil) sobre o projeto da Lei da Anistia elaborado pelo governo, disse que na época da discussão, seis anos antes do fim da ditadura, não havia garantia política de que o projeto fosse aprovado caso a sociedade civil insistisse em deixar uma porta aberta a fim de punir os militares.
“O governo claramente dizia que, se fosse mexido o texto em certos pontos, ele retiraria o projeto da Anistia. Esse era o preço a ser pago para o país receber de volta os exilados. Nós não tínhamos como pregar a supressão, isso poderia levar à frustração do projeto, àquela altura tão aguardado”, disse o advogado.
Quarenta anos depois, Pertence voltou a dizer que considera a Lei da Anistia “irrevogável”.
“Defendi isso com maior ênfase em outros momentos, quando defendi um acusado de esquerda armada na Argentina, e depois quando fui intimado como testemunha do governo brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanas. Eu sustentei que a revogação da Anistia era inconstitucional, pois ela deixou de dar consequência à uma prática determinada. Não é possível revogá-la depois”, disse o advogado.