Em entrevista exclusiva ao Instituto Vladimir Herzog, Débora Diniz, professora da UNB e pesquisadora do Anis-Instituto de Bioética, fala sobre as expectativas para a audiência pública no Supremo.
por Ana Helena Rodrigues
O Supremo Tribunal Federal (STF) realizará, nos dias 3 e 6 de agosto, audiência pública para discutir se os artigos que criminalizam o aborto devem ser considerados inconstitucionais e, portanto, excluídos do Código Penal Brasileiro. Atualmente, o aborto é autorizado no país somente em três situações: risco de morte para a mulher, gravidez decorrente de estupro ou se o feto é anencéfalo (sem cérebro).
A ação que deu origem à audiência pública foi apresentada pelo PSOL ao STF em março. Para a legenda, a norma em vigor viola preceitos fundamentais assegurados pela Constituição de 1988, posterior ao Código Penal de 1940. De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto, somente em 2015 cerca de 500 mil mulheres realizaram o procedimento ilegalmente no Brasil.
Para as sessões de discussão no STF foram admitidos 44 expositores, que terão individualmente 20 minutos para argumentação. No grupo dos que são contra mudanças na Lei está a professora da USP e advogada Janaína Paschoal, que ficou conhecida por ter sido redatora do pedido de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Entre os que pedem mudança na Lei está Débora Diniz, professora da UNB e pesquisadora do Anis-Instituto de Bioética, que apresentou a ação no STF junto com o PSOL. Débora chegou a receber ameaças de morte pela internet por defender tal opinião. Em entrevista ao Instituto Vladimir Herzog ela falou sobre a dificuldade de discutir os direitos reprodutivos femininos no Brasil e sobre as expectativas para a audiência pública no Supremo.
Leia a entrevista completa:
IVH – Em comparação com o restante do mundo, qual a posição do Brasil em relação aos direitos reprodutivos femininos?
O Brasil está na região do mundo – América Latina e Caribe – com legislações mais restritivas e com os maiores números de abortos. Isso significa que nós vivemos na parte do mundo que mais ameaça de prisão e perseguição penal as mulheres que abortam mas, ao mesmo tempo, somos a região do mundo em que mais abortos ilegais são feitos. Isso nos mostra que a repressão não é capaz de conter um evento comum da vida reprodutiva das mulheres, mas as empurra para a clandestinidade em busca de métodos que vão colocar sua saúde e vida em risco.
IVH – Quais as principais dificuldades para que o tema avance na legislação brasileira?
A crise política pela qual o Brasil está passando nos últimos anos prejudica o esclarecimento da população sobre questões de interesse público, como a reforma da previdência, a reforma trabalhista e a intervenção militar no Rio de Janeiro. A ausência de um debate político claro sobre as questões que importam à democracia faz com que temas com uma intensa carga de passionalidade e que movimentam forças até violentas (como é o caso do que eu passo neste momento) ganhem espaço para tencionar posições como se fossem questões de opinião a favor ou contra e leva alguns ao uso de uma linguagem violenta e agressiva.
Além disso, a crise política brasileira também é uma crise de representatividade, uma crise de atuação política legítima. A falta de partidos com propostas políticas de discussão pública faz com que outras instituições ocupem o espaço da arena política, como é o caso das religiões. Tem-se observado um crescimento no número de políticos cristãos com um discurso político que sobrepõe a religião às questões democráticas.
IVH – Mesmo direitos assegurados por lei, como o aborto em caso de estupro, muitas vezes não são garantidos uma vez que há profissionais de saúde que se recusam a fazer o procedimento. O que deve ser feito para que esse tipo de situação não aconteça e a mulher não fique sem assistência?
Os profissionais de saúde e as mulheres devem ser informados largamente sobre o que exige a Norma Técnica do Ministério da Saúde para que uma mulher vítima de violência sexual tenha acesso ao aborto previsto em Lei. Antes mesmo da recusa do procedimento há uma série de barreiras que são impostas às mulheres como, por exemplo, exigir dela um boletim de ocorrência policial, exigir que ela converse com comitês de ética ou até mesmo que tenha autorização judicial. Nada disso está previsto na Norma Técnica que determina ser suficiente a palavra da mulher sobre ter sofrido a violência. Antes que as pessoas imaginem que isso seria uma porta aberta para que as mulheres mentissem para ter acesso ao aborto, devo dizer que nós não trabalhamos no campo democrático com a suposição de que as pessoas mentem, muito menos de que mentiriam sobre uma cena tão violenta como estupro se expondo a uma equipe multiprofissional.
Não existe a possibilidade de recusa institucional para o procedimento de aborto previsto em Lei para uma mulher que sofreu estupro. A objeção ao atendimento pode se dar pelo sofrimento emocional de um determinado profissional, mas a instituição tem que garantir o atendimento. No caso brasileiro, os profissionais que trabalham em serviços de referência sabem que as mulheres que sofreram violência vão procurar o serviço para interromper a gestação. Então, neste caso, a recusa de assistência tem outra classificação no nosso ordenamento democrático. São casos de discriminação. Esses médicos são treinados para fazer aborto, têm o monopólio da prática de aborto e representam uma profissão cujo compromisso ético é cuidar e salvar vidas, mas estão discriminando as mulheres. Nós precisamos divulgar a informação, informar mulheres e médicos, mas também dar os nomes corretos ao que essas práticas significam.
IVH – Poderia falar um pouco sobre o paradoxo que é o fato de pessoas que se dizem “pró-vida” ameaçarem quem discorda de suas opiniões?
Essas pessoas falam sobre algo que desconhecem. Elas falam sobre suas próprias fantasias, sobre destruição de famílias e infanticídio. O que está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF)é que nenhuma mulher seja presa se ela fizer um aborto até a 12ª semana de gestação. Não estamos falando de crianças formadas nem de fim da família, nós estamos falando de não prender mulheres. Aqui há um paradoxo importante daqueles que sustentam crenças contrárias, muitas vezes muito intensas, que é o fato de eles ignorarem a vida das mulheres que são mães e têm uma família e que mandá-las para cadeia é destruir uma roda familiar muito extensa. Essas mulheres vão ao trabalho, vão à igreja, vão ao templo, cuidam de seus filhos, mas em algum momento da vida se veem frente a uma situação como o aborto. Ameaçar essas mulheres de cadeia ou ameaçar quem fala com essas mulheres sobre suas demandas por direitos é um paradoxo inclusive religioso porque não me parece que pessoas religiosas acreditem que a cadeia seja solução para nenhum problema social.
A ameaça a ativistas e porta-vozes do tema do aborto é um ato covarde e que combina muito pouco com a democracia. É covarde neste momento porque faz uso de um falso anonimato das redes sociais e de perfis falsos para usar expressões intimidatórias e violentas cuja intenção é o silenciamento e não uma conversa sobre pontos de vista sobre como deve ser a legislação ou a democracia brasileira. Nenhuma democracia no mundo pode permitir a intimidação e o silenciamento em um espaço em que nós ainda não sabemos como conviver completamente e, se preciso, deve ser regulado de forma a permitir o convívio. A minha decisão pessoal de procurar a polícia e de tentar chegar nessas pessoas, mesmo sabendo que muitas delas usam perfis falsos e que se escondem atrás do anonimato, é para iniciar uma conversa sobre a impossibilidade da intimidação e do uso de uma força perversa para o silenciamento. Eu preciso acreditar nas instituições do Estado para esse tratamento. Há vários paradoxos, mas há muita covardia e muita falta de conhecimento sobre o que é o debate no STF.
IVH – Quais são as expectativas para as audiências públicas no Supremo Tribunal Federal sobre os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto?
A primeira expectativa é uma qualificação do debate público, envolvendo as sociedades científicas, as sociedades acadêmicas, os grupos religiosos e os movimentos sociais sobre o que precisa ser dito sobre aborto. Nós vamos fazer o deslocamento de um discurso intimidatório e violento das redes sociais para uma qualificação de quais são os argumentos que devem importar para a democracia em uma tomada de decisão sobre manter o atual estado legal, que manda as mulheres para cadeia e coloca suas vidas em risco, ou se nós vamos fazer uma mudança no status legal reconhecendo que somos um dos países na região que mais prende e em que mais se fazem abortos e que ao mudar esse status criminal nós vamos poder cuidar das mulheres e inclusive reduzir a taxa de abortos. Ao tirarmos o status de crime, nós diminuímos o número de abortos, ou seja, as mulheres fazem menos aborto.
Essa é a primeira expectativa, de qualificação do debate e esclarecimento daqueles que são formadores de opinião de quais são os argumentos e evidências que devem ser usados neste caso. Mas também, e essa é uma expectativa pessoal, que essa discussão sirva para o debate eleitoral. Vamos fazer essas audiências públicas em um período em que o debate eleitoral está esquentando.
IVH – Daí pode sair a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação no país? Quanto tempo demoraria para que houvesse mudança na Lei?
O que está em tramitação no STF é um pedido de revisão do Código Penal à luz da Constituição para que alguns artigos dele sejam considerados inconstitucionais. Nossa Constituição é posterior ao Código Penal de 1940 no qual se criminalizava o aborto. A Constituição fala de um conjunto de valores, como direito à saúde, cidadania e dignidade, que são incompatíveis com prender mulheres ou deixá-las morrer. As audiências públicas agora são para informar os Ministros no processo de decisão. A convocação para o julgamento pode ser imediata ou pode demorar o próprio tempo do Supremo em que este se arraste em meio a outros processos. Essa não é nossa expectativa, porque trazemos uma das grandes questões constitucionais que o Supremo recebeu, eu diria, nos últimos 20 anos, junto com o aborto em caso de anencefalia e o uso das células tronco. Mas, dadas as características de uma corte criminal que cada vez mais vem assumindo decisões de primeira e segunda instância, esse processo pode demorar. Porém, se os ministros tiverem sensibilidade sobre a imensa questão que está em curso para a vida das mulheres, o processo pode ser mais rápido do que foi o de anencefalia, por exemplo, que tomou oito anos.