Texto originalmente publicado como artigo de opinião na Carta Capital em 31 de março de 2023
Foto: Joedson Alves/Agencia Brasil
Hoje, dia 31 de março de 2023, completamos 59 anos do golpe militar, que nos deixou um legado de mortos, desaparecidos e impunidade. É a primeira vez, desde 2019, que não teremos ordens do dia alusivas a crimes como tortura e morte. Contudo, não será um ano diferente para milhares de pessoas que ainda reivindicam memória, verdade e justiça diante dos que atentaram contra a humanidade durante o regime. Tampouco será diferente para os jovens negros que cotidianamente são açoitados pelas polícias militares país afora; muito menos será diferente para as mães que perderam seus filhos nas periferias abandonadas pelo Estado brasileiro.
Também estamos prestes a completar três meses do fatídico 8 de Janeiro, dia em que golpistas tentaram atacar violentamente nossa República. E lembramos que os mentores desses atos criminosos contra a democracia ainda não foram responsabilizados. Conviver diariamente com a impunidade e a violência parece ser parte da vida e da cultura brasileira. Não elaboramos de maneira adequada os nossos processos de violência e deixamos como herança para as gerações de ontem, de hoje e de amanhã dispositivos perversos de violações dos direitos humanos.
Práticas foram aperfeiçoadas e naturalizadas: não podemos nos esquecer de Genivaldo de Jesus Santos, asfixiado dentro de uma viatura por agentes da Polícia Rodoviária Federal, em um ato perverso que parece evocar os tempos da ditadura. Nos últimos anos, tornou-se costumeiro militares que passaram pelo governo atuarem pela desestabilização de nossas instituições. Aliás, atacar poderes instituídos constitucionalmente nunca deixou de ser um hábito nesta parte do Cone Sul.
A extrema-direita ronda à espreita e se fortalece à medida que nossa democracia continua ameaçada. Uma parcela de parlamentares democraticamente eleitos seguem atacando direitos, provocam o Estado democrático e, escondidos nas sombras da demonização política – ecoada muitas vezes pela mídia nacional –, sobrevivem às custas da desinformação. Infelizmente perdemos a chance: uma justiça de transição não foi possível em nossa história desde 1964, o que ressoa até hoje.
É preciso ressaltar que a Lei de Anistia, ampla e irrestrita, ardilosamente se estendeu aos algozes da nossa história: a todos que cometeram violações, violências, assassinatos, e crimes de tortura. Se hoje sofremos as consequências disso, não podemos nos omitir perante a nova oportunidade que se apresenta de responsabilizarmos quem praticou – e ainda pratica – estes crimes contra a democracia e contra a humanidade.
Desde os atentados terroristas do 8 de Janeiro, percebemos que não há possibilidade alguma de convivermos com forças retrógradas, destrutivas e que ameaçam constantemente a nossa democracia. Não iremos mais tolerar, não podemos. É urgente agirmos exemplarmente, ou vivenciaremos novos ataques e continuaremos a permitir que esses crimes se repitam.
Temos novamente a possibilidade de responsabilizarmos aqueles que cometeram crimes contra a democracia e de lesa-humanidade com uma “justiça de transição” – não da forma como deveríamos ter feito, mas sim a partir de um processo exemplar de punição que impeça atrocidades como as que vimos recentemente. Nesse sentido, todos, principalmente aqueles que representam a sociedade nos poderes da República, devem agir em defesa irrestrita do nosso sistema democrático de forma que possamos findar a cultura de impunidade que nos persegue.
Assim, convidamos aqueles que estão verdadeiramente empenhados com a defesa e a justiça para que não cessem os gritos e, tal qual há 40 anos, quando saímos às ruas pelas “Diretas Já!”, que possamos sair novamente e dizer: Sem impunidade! Responsabilização já!
Rogério Sottili
Diretor executivo do Instituto Vladimir Herzog. Foi Secretário Especial de Direitos Humanos do Governo Federal, Secretário Municipal de Direitos Humanos da Cidade de São Paulo, Secretário Executivo da Secretaria Geral da Presidência.