27/03/2018

A bolha sobre nós

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No dia do lançamento do “Usina de Valores”, um leitor reagiu no post de divulgação do projeto na página do Facebook da revista Fórum. No comentário, ele questionava o IVH por trabalhar com evangélicos. Dizia ainda que deixaria de ser um seguidor da página da revista Fórum e também do IVH. Por fim, pregava que “como Jesus nos ensinou”, deveríamos separar o “joio do trigo” e, neste caso, os evangélicos simbolizam o joio e “portanto seu destino devia ser as cinzas”.

Fiquei pensado sobre essa pessoa. Sobre o que ela dizia. Imaginei que, por se dizer seguidora do IVH, não apoia Bolsonaro, não cultua violência, tortura, mortes. Aliás, é bem provável, na verdade, que ela tenha preocupação com os direitos humanos, que ela conheça a história de Vladimir Herzog, que seja contra a intervenção militar. Imagino até que ela tenha participado das manifestações em homenagem à Marielle.

Naquela mesma noite, como disse, seria lançado o “Usina de Valores”. E o comentário desta leitora me fez pensar, ainda mais, sobre a importância deste projeto.

O “Usina de Valores” nasce com o propósito de enfrentar a cultura de violência impregnada na sociedade brasileira e disseminar a democracia, os direitos humanos, o respeito e valores que possibilitem o co-existir, o bem viver, a dignidade humana, a participação politica e a cidadania.

Só que para isso, é necessário “furar a bolha”. Precisamos ser capazes de falar para pessoas que estão além do nosso alcance ideológico, das nossas relações sociais e políticas.

Dia após dia, há pessoas massacradas pela discriminação, pela violência, pelo ódio, pelo preconceito e a nossa intenção é que, a partir da nossa contribuição, seja possível promover uma disputa de valores e ajudar a construir um Brasil mais humano, mais respeitoso e que valorize, acima de tudo, as nossas diferenças.

Imaginava eu, até então, que “furar a bolha” significava falar com os outros. Mas agora percebo, com clareza, que todos nós reproduzimos, de alguma forma, essa cultura de violência impregnada em nossa sociedade. Nós mesmos naturalizamos, diariamente, a estigmatização.

Ter uma atuação profissional ligada à defesa dos direitos humanos, entender a importância do direito à memória e à verdade, lutar contra o racismo não significa carta branca para reproduzir valores misóginos, homofóbicos e intolerantes em qualquer outra instância.

Os direitos humanos são universais e indivisíveis. A bolha está sobre todos nós e os valores democráticos devem ser construídos e disputados cotidianamente.

É imprescindível que estejamos sempre alertas e abertos a questionar todos os valores que pautam nossa vida, nosso comportamento, nossas relações. E é aí que me dou conta que este nosso novo projeto tem um potencial realmente incrível. Mas ele precisa – e pretende – falar para todos, para nós mesmos, inclusive. Justamente porque “furar a bolha”, nos direitos humanos, é falar para todos nós.

Há dois anos, minha visão era parecida com a desta leitora. Pra mim, os evangélicos representavam um atraso e o avanço deles precisava ser combatido.

Minha principal crítica a Marina Silva, quando foi candidata à presidência, por exemplo, consistia no fato dela ser evangélica. Mal me dava conta da quantidade de preconceito que minha visão estava impregnada. Eu, que sempre respeitei a diversidade religiosa, que me julgava uma referência no assunto, que tinha sido vice ministro de direitos humanos do Governo Federal, secretário de direitos humanos da Prefeitura de São Paulo, secretário nacional de direitos humanos, estava estigmatizando uma pessoa por ser evangélica.

Há um ano, por curiosidade, participei de um debate sobre diversidade religiosa. Na oportunidade, ouvi um padre, um pastor evangélico e um representante de uma religião de matriz africana. O pastor falava sobre a história dos evangélicos e sobre os fundamentos da sua Igreja, que são baseados na “palavra de Cristo”. Esses fundamentos, percebi, são os mesmos fundamentos dos direitos humanos. Tratam da solidariedade, do respeito, da democracia, da paz. Ele dizia que todas as Igrejas são formadas por pessoas e que, portanto, carregam valores construídos histórica, social e culturalmente e, muitas vezes, se contrapõem aos valores que defendemos individualmente. Justamente por isso precisamos fazer uma disputa de valores.

Lembrei, naquele instante, da Igreja católica, das suas pastorais, das suas alas progressistas, como CEBs, CPT e CIMI, que disputaram valores contra os conservadores. Valores estes que levaram Giordano Bruno à fogueira, que defenderam a inquisição, a escravidão, o fim dos LGBTT, a perseguição aos ciganos etc.

As pesquisas mostram que os progressistas correspondem a menos de 20% do total de fieis das Igrejas evangélicas. Menos de 20% defendem os direitos humanos, valorizam a diversidade religiosa, de gênero, defendem a democracia como valor máximo das relações humanas. Os outros 80%, é bem verdade, não são deliberadamente contra os direitos humanos, mas acabam sendo influenciados pelos setores conservadores da Igreja. De qualquer forma, menos de 20% resolveram encarar a disputa com essas alas conservadores e levar a “palavra de Jesus” conforme seus próprios entendimentos.

Eu, que sou agnóstico, encontrei nesses menos de 20% uma grande descoberta: a de que eu, que me considerava “o cara dos direitos humanos”, reproduzia a cultura de violência e preconceito que tanto combatia. Em outras palavras: era preciso furar a minha própria bolha também.

Semana passada, em São Paulo, a primeira atividade do “Usina de Valores”, realizada foi acompanhada, via internet, por mais de 25 mil pessoas. Gente de São Paulo, claro, mas também do Rio de Janeiro, de Recife e do Brasil inteiro. Quiçá do mundo.

Foram duas horas e meia de reflexão e debate sobre racismo, gênero, violência, medo, internet.

“Pastor Henrique me fez não ter vergonha de ter sido cristão um dia”. “Que riqueza esse debate”. “Que dia incrível”. “Não parem, continuem”. “Que força”. “Aprendi muito hoje, me sinto maior, melhor”. “Tudo começa com respeito”. “Um salve pra sabedoria preta”. “Que debate incrível! Lúcido, louvável”. “Máximo respeito a todos nesse debate! Obrigado”. “Encantada com a qualidade da experiência compartilhada, quero mais”.

Esses foram alguns comentários no vídeo de transmissão do evento de lançamento do projeto. Junto com eles, descubro, enfim, ainda mais potência e importância no “Usina de Valores”.

Rogério Sottili
Diretor executivo do Instituto Vladimir Herzog

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