Texto originalmente publicado como artigo de opinião na Folha de São Paulo em 31 de março de 2022
Naquele que já se configura, desde o fim da ditadura militar (1964-1985), o ano eleitoral mais desafiador para a democracia brasileira, o último dia de março é incontornável. Não apenas pelo 58° registro que dele faz a história e consequentemente nos impede de esquecer do golpe de Estado, mas, sobretudo, pela sombra que o passado, ao encontrar a terrível realidade enfrentada hoje pelo país, projeta para o futuro.
Ao usurparem o poder, há quase seis décadas, os militares disseminaram o terror nas múltiplas faces assumidas pela repressão – perda de mandato ou cargo público, suspensão de direitos políticos, exílio e prisão foram algumas delas. Até hoje não se sabe quantas foram as vítimas de tortura. Oficialmente são 434 os mortos e desaparecidos do período. O jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), assassinado nas dependências do DOI-CODI de São Paulo, é um deles.
Vinte e um anos depois, quando a ditadura acabou, graças à mobilização da sociedade o legado de medo e desconfiança foi gradativamente sendo substituído por um novo projeto de país, que pode ser sintetizado no artigo 1° da Constituição de 1988: a construção de um estado democrático de direito que tem, entre seus fundamentos, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. A transição produziu canais de participação popular e os mais diversos atores sociais passaram a incidir na elaboração de políticas públicas. Não houve, contudo, reforma significativa de algumas instituições, como as de segurança, tampouco a responsabilização criminal de agentes envolvidos nos crimes da ditadura. Seguem pendentes dois deveres do Estado: o dever de justiça e o dever de transformar as instituições, tornando-as democráticas e accountable. Obrigações que dizem respeito especialmente ao poder Judiciário e às Forças Armadas.
Desde 1979, quando foi aprovada, simpatizantes do regime costumam recorrer à Lei da Anistia quando se impõe a necessidade de revisitar o passado. Insistem em um suposto acordo político que teria assegurado a não punição de “ambos os lados”. É sabido que foi a partir da construção dessa “garantia” de impunidade que os militares se mostraram dispostos a assumir o compromisso de retirada gradual da política, nos anos 80. Nada mais distante, contudo, do que se evidencia atualmente, com fardados ocupando todo tipo de cargo na administração pública e no primeiro escalão de um governo que não disfarça seu desprezo pela vida, exalta a violência e vê a participação popular limitada ao exercício do voto.
O tempo decorrido desde a primeira eleição presidencial não foi suficiente para a consolidação do estado de direito, tampouco para o aprofundamento da democracia no país. Nos últimos anos, as ameaças ao regime crescem em gravidade e extensão. Criado em 2009 para celebrar a vida e o legado do jornalista, o Instituto Vladimir Herzog atua em prol dos valores da democracia, indissociáveis que são da promoção e respeito aos direitos humanos, e pela liberdade de expressão. Amicus curiae na ADPF n° 320, sobre a Lei da Anistia, e monitorando o cumprimento das 29 recomendações da Comissão Nacional da Verdade, a seis meses das eleições o instituto vê no exercício da memória o imprescindível instrumento para o processo de reconstrução da confiança cívica e restabelecimento da solidariedade social. Por alicerçar-se em princípios como os da igualdade e universalidade de direitos e deveres, só em uma democracia o Estado, e especialmente seus governantes, podem ser responsabilizados por seus atos – os de ontem e os de hoje.
Por Glenda Mezarobba (cientista política, é conselheira do Instituto Vladimir Herzog) e Rogério Sottili (historiador, é diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog. Foi Secretário Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (2015-2016).