Este depoimento foi escrito a seis mãos: Vassiliki Constandinidou, Luciano Costa Martins e eu éramos estudantes de jornalismo no curso de Comunicações da Fundação Armando Álvares Penteado – Faap –, em 1975. Faltavam dois semestres para nos formarmos e vivíamos dias intensos. Era um tempo marcado por boatos, notícias de prisões e havia todo tipo de dificuldade para saber exatamente o que estava acontecendo na universidade e no país.
Não fui militante política, mas sempre me interessei muito por tudo o que se passava no meu país naqueles tempos de ditadura. Não me lembro do momento exato da assinatura do documento, provavelmente aconteceu no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Mas eu tinha certeza de que deveria dar minha contribuição com a assinatura.
Aquele era meu ano de transição. Ainda estudante, fui contratada como revisora estagiária do jornal Estadão. Consegui o emprego dois dias antes da morte de Wladimir Herzog, o Vlado. Os fragmentos da minha memória daquele período estão muito ligados à vida universitária.
Eu era monitora de dois dos melhores professores da FAAP, George Duque Estrada e Rodolfo Konder, que também seriam presos. Ser monitora de classe não tinha muita relevância, embora representasse um ótimo desconto de 65% na mensalidade do curso. Foi o que me permitiu concluir os estudos e me formar.
O curso de jornalismo tinha um tanto de matérias irrelevantes. Lembro bem que as aulas sobre a imprensa brasileira magnetizavam todos nós. As salas de aula estavam sempre lotadas, com a presença de alunos de outros cursos da universidade. Ninguém arredava o pé da classe antes do final da aula. O conteúdo era motivo de muitos papos e discussões por dias seguidos.
Eu fazia parte do grupo de jornal-laboratório, chamado “O Bloco”, da disciplina de Rodolfo Konder. Adiciono aqui dois depoimentos que considero importantes, o do colega e jornalista Luciano Martins Costa, que registrou por escrito a experiência que vivemos naqueles tempos sombrios, em agosto de 1975, quando entrevistamos o comandante do II Exército, general Ednardo D’Ávila Mello. E o depoimento da colega e jornalista Vassiliki Constandinidou, que retratou bem o que se passou naqueles dias:
Luciano Martins Costa:
“Era 1975, último ano do curso de Comunicação que eu frequentava na Faap. Desde o primeiro semestre, nós trabalhávamos no jornal-laboratório chamado O Bloco, que era coordenado pelo professor Rodolfo Konder.
As tarefas do meu grupo eram principalmente entrevistar intelectuais, líderes sindicais e políticos. Era o período chamado pela imprensa de ‘distensão’, baseado numa promessa do presidente Ernesto Geisel, empossado em 1974, que prometera encaminhar o país à normalização institucional, afastando os militares do poder político de modo ‘lento, seguro e gradual’.
Nos primeiros dias de agosto de 1975, com as colegas Giulia Di Vizia e Ana Maria Gonçalves, começamos a tentar uma entrevista com o então comandante do II Exército, general Ednardo D’Ávila Mello, também pautados por Konder. O objetivo era colher sua opinião sobre o projeto de abertura do general Geisel. Sabíamos que ele era contra, embora fosse discreto e evitasse declarações políticas.
Passadas duas semanas, fomos finalmente avisados de que a entrevista seria concedida (salvo engano, foi no dia 25 de agosto), em seu gabinete no quartel do Ibirapuera. Giulia, Ana Maria e eu fomos recebidos por um oficial, e quando entramos no gabinete fomos surpreendidos pela presença de um grupo de estudantes conhecidos como militantes de extrema-direita. Entre eles o então presidente da Arena Jovem, braço da militância estudantil da ditadura, e alunos da Faculdade de Direito Mackenzie, núcleo do movimento estudantil de direita.
Mal se iniciou a conversa, o general avisou que não daria entrevista, que proibia qualquer menção daquele encontro em qualquer tipo de publicação, mas que poderíamos fazer qualquer pergunta e ele responderia. Esta foi a primeira pergunta: ‘General, o senhor acha essencial, para acelerar o processo de redemocratização do país, que sejam suprimidos os atos de exceção?’
A resposta, depois de um período de silêncio: ‘Se eu perguntar se você ainda bate em sua mulher, estarei fazendo uma pergunta tendenciosa, não é? – porque qualquer que seja sua resposta, você estaria admitindo que pode ter batido em sua mulher um dia. Da mesma forma, se eu responder que sim ou que não, estarei afirmando que o Brasil precisa ser redemocratizado, e estarei dizendo que não vivemos um estado de plena democracia. Coisa com que não concordo’.
Em seguida, virando-se para os estudantes convidados e para os oficiais presentes, comentou: ‘Eu não disse? Eles são assim, precisa estar centrado’.
Eu fiz a segunda pergunta: ‘Então o sr. considera o regime brasileiro uma democracia total?’ ‘Primeiro você tem que dizer o que é uma democracia’ – retrucou, encaminhando a conversa para uma discussão sobre direitos, liberdade de ir e vir.
Quando ele afirmou que, no fim das contas, o Brasil era um país livre, mas com salvaguardas, disse que representantes do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo tinham pedido uma punição para o jornalista Fausto Rocha, que numa cerimônia no Palácio dos Bandeirantes havia denunciado ‘uma infiltração comunista na imprensa brasileira’. E continuou: ‘Mas ele não disse nenhuma novidade, porque nós já sabíamos disso, há muito tempo estamos assistindo à crescente infiltração dos comunistas na imprensa, nas escolas e na igreja. Inclusive professores seus. Mas não vamos permitir a importação de ideologias estranhas aqui. Aliás, tem uns que estamos monitorando que não escondem a origem. São acolhidos pelos brasileiros, ganham dinheiro e começam a mostrar as unhas’. Então olhou para os seus convidados e falou, rindo: ‘Vamos ter que arrancar essas unhas’.
Foi nesse momento que Giulia Di Vizia, irritada, confrontou o comandante: ‘É disso que ele está falando. O senhor só admite liberdade pra quem pensa igual o governo. E pau nos que discordam. Isso é democracia?’. O general perdeu o controle, e voltando-se para sua plateia: ‘Vocês estão vendo? É disso que eu falo. Eles aproveitam qualquer abertura pra enfiar a cunha, e influenciam esses jovens. Por isso vamos ter que fazer esse saneamento, igual em Jacarta. São 2 mil, são só 2 mil comunistas e fazem esse estrago todo. Precisam ser neutralizados’. Peguei a caneta para fazer uma anotação, ele disse: ‘O combinado é vocês não publicarem nada. Não anote, e se anotar não escreva. Ou em vez de 2 mil, serão 2 mil e um’. Passado o momento de descontrole, ele conduziu a conversa para assuntos mais amenos e no fim nos convidou para ir à sua casa.
Preparei um relatório e entreguei a Rodolfo Konder. Insisti com ele que o comandante do II Exército tinha planos de promover uma perseguição em massa a esquerdistas em São Paulo, e que tinha se referido a uma ‘operação Jacarta’, mas Konder respondeu com uma blague: ‘O partido está convencido de que a abertura do general Geisel é lenta e gradual, mas é segura’. Dois meses depois, Konder e outros de nossos professores foram presos e torturados. Estou convencido de que a lista chegaria aos 2 mil, se Vladimir Herzog não tivesse morrido numa sessão de tortura.”
Vassiliki Constandinidou:
“Dia 25 de outubro de 1975. Naquele final de semana tínhamos – Giulia Di Vizia e eu – viajado para o Guarujá. No domingo, dia 26, estávamos na praia lendo o Jornal da Tarde, quando soubemos que além de Vladimir Herzog estavam presos os nossos professores George Duque Estrada e Rodolfo Konder. Antecipamos a volta a São Paulo. A ansiedade de obter mais informações esbarrou no muro do silêncio e medo que cercava a vida nos tempos da ditadura. Segunda de manhã, dia 27, o Estadão noticiava a morte de Vladimir Herzog.
No mesmo dia, à noite, na faculdade, tivemos a confirmação da prisão dos professores Duque Estrada e Konder. As conversas eram em voz baixa, havia o medo de ter agentes da polícia infiltrados. Uma das imagens mais marcantes daquela noite é da Giulia querendo ir ao Dops para saber como estavam nossos professores; Luciano Martins, eu e outras colegas tentando dissuadi-la…
No calor da discussão, dissemos que a levaríamos até o DOPS. Lembro vagamente que éramos cinco pessoas no meu fusca. No banco da frente, o Luciano e eu. No banco de trás Giulia e, provavelmente, as jornalistas Marina D’Andrea e Thais, colegas de turma da Faap.
Rodamos pela cidade para ganhar tempo e tentar convencer Giulia que ir ao Dops naquele momento não era sensato. Não lembro de quanto tempo ficamos rodando… ao final, retornamos para nossas casas, preocupados com o que poderia acontecer com nossos professores.”
6/4/2021.