Leia e assista ao potente discurso oficial da Comissão Organizadora do 38º Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, representada na fala do ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, Dr. Julio Cesar Fernandes Neves. O evento aconteceu no Tucarena, em São Paulo, no dia 25 de outubro e teve transmissão ao vivo pela TV PUC – SP. Confira na íntegra:
Senhoras e Senhores,
Em nome da Comissão Organizadora do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, agradeço a todos pela presença. Gostaria, primeiramente, de comemorar o fato de termos alcançado, nesta trigésima oitava edição, a cifra de 567 trabalhos inscritos. Isso comprova mais uma vez o alcance e o prestígio desta premiação entre os jornalistas. E fica também novamente e vigorosamente demonstrada a vitalidade do Prêmio e da temática dos Direitos Humanos entre os jornalistas e a sociedade brasileira.
É igualmente uma grande honra apresentar boas-vindas a uma entidade da maior importância, que passa a integrar a nossa Comissão Organizadora. Neste ano, a Conectas Direitos Humanos vem se juntar às demais entidades – que agora somam doze organizações – nessa relevante missão que o Prêmio Herzog demanda. Especialmente nestes tempos de ameaças à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa, aos direitos de trabalhadores, à justiça social, ao exercício da cidadania e à jovem democracia reconquistada com muita luta pelos brasileiros.
Infelizmente, na data em que reverenciamos a vida de um mártir do jornalismo no Brasil, temos pouco a comemorar. Na política, um impedimento imposto à presidente eleita em 2014 com 54 milhões de votos dá claros sinais de retrocessos, com ameaça de volta ao passado da repressão, da censura, da intransigência e do autoritarismo. Não por acaso Dilma Rousseff foi uma entre milhares de militantes presos pela ditadura militar, que nos porões torturou jornalistas e assassinou Vladimir Herzog.
Há pouco a comemorar entre os jornalistas, também. Nos últimos 14 anos, mais de mil jornalistas e profissionais de mídia foram mortos no cumprimento do dever. Eles morreram porque alguém não gostou do que escreveram ou disseram, ou porque estavam no lugar errado, na hora errada.
A FIJ – Federação Internacional de Jornalistas monitora violações à liberdade de imprensa. Faz campanhas por maior segurança e por um foco sobre jornalistas e freelancers em maior risco e com menor proteção.
Segundo dados da FIJ, em 2015, 109 profissionais foram assassinados em 30 países. No Brasil, houve duas mortes e outros 135 casos de violência, desde agressões físicas a cerceamento da liberdade de imprensa por meio de ações judiciais. Até agora, outubro de 2016, 64 jornalistas já foram mortos ao redor do mundo no exercício profissional. Dois deles no Brasil.
Em nosso país, os jornalistas tornaram-se alvo também da repressão policial em manifestações populares, com a utilização indiscriminada das chamadas armas não-letais e de efeito moral. Desde a entrega do último Prêmio Vladimir Herzog, no ano passado, chegaram à Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo 19 casos de violações contra jornalistas — sempre versando sobre abusos e excessos.
Os casos denunciados ao órgão, e também ao Ministério Público, evidenciam uma espécie de violência seletiva contra a mídia em atos públicos. Expõem a necessidade de uma ação permanente de procedimentos de proteção aos jornalistas por parte das empresas de comunicação, e de medidas estruturais por parte dos governos e da Polícia Militar, com o intuito de garantir o livre exercício de sua profissão.
A falta de preparo das polícias estaduais para atuar em manifestações tem sido apontada como a principal causa de violência, tanto contra os manifestantes como contra os profissionais de imprensa em ação. A Abraji – Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo – monitora os casos de violação contra jornalistas em protestos desde junho de 2013. Em todo o país houve exatamente TREZENTOS ataques. Em São Paulo foram 144 casos. E desses, 75%, ou seja, 108, foram protagonizados pela PM.
O caso que envolveu o fotógrafo Sérgio Andrade da Silva em 13 de junho de 2013 tornou-se emblemático nesse sentido. Nesse dia, durante um protesto contra o aumento das tarifas em São Paulo, 24 repórteres foram alvejados pela PM com balas de borracha, spray de pimenta, bombas de efeito moral e golpes de cassetete. Um jornalista do Estadão chegou a ser atropelado por uma viatura. Dois profissionais foram presos irregularmente. Uma das balas de borracha disparadas pela Tropa de Choque e Cavalaria da Polícia Militar cegou o olho esquerdo de Sergio.
Surpreendentemente, três anos após o episódio, a Justiça de São Paulo negou os pedidos de responsabilização do Estado pela ação policial e de indenização por danos morais e materiais. O Judiciário entendeu que Sergio colocou-se em situação de risco ao se posicionar entre manifestantes e polícia para fotografar. E que por isso, assumiu o risco de ser alvejado pela polícia ou pelos manifestantes, devendo arcar com as consequências de seu ato.
Essa sentença judicial transformou a condição de Sérgio, de vítima da violência policial, na de responsável pelo ferimento que lhe causou a sequela definitiva. Apesar das evidências, desprezou-se o abuso de conduta dos agentes da PM e revelou-se o desprezo pela vida profissional do fotógrafo.
A decisão abre também precedente perigoso e preocupante, já que pode transformar-se em argumento fácil para o reforço da truculência policial contra os profissionais de comunicação.
Decisão semelhante foi tomada pela Justiça paulista em 2014, ao negar recurso ao pedido de indenização apresentado pelo fotógrafo Alexandro Wagner Oliveira, igualmente ferido no olho esquerdo, com perda parcial da visão, por bala de borracha disparada por PM em maio de 2003.
Assim como a recente decisão do STJ que considerou dolosa a ação dos manifestantes que provocaram a morte do cinegrafista Santiago Andrade, em fevereiro de 2014, no Rio de Janeiro, também as ações da polícia de São Paulo mereciam igual responsabilização por parte das autoridades judiciárias do Estado. Elas têm que assumir o risco dos resultados fisicamente danosos aos profissionais que legitimamente exerciam suas atividades.
A Comissão Organizadora do Prêmio Vladimir Herzog conclama a sociedade e as instituições brasileiras a se conscientizarem de que vivemos em verdadeiro estado de exceção na esfera da segurança pública. Sob vários aspectos, com ações policiais ilegais e prisões igualmente ilegais, sob uma justiça que respalda essas violências.
É igualmente digna de repúdio a insinuação do desembargador Ivan Sartori, do Tribunal de Justiça de São Paulo, de que parte da imprensa e de organizações de defesa de direitos humanos seria financiada pelo crime organizado. Sartori não se conforma com o questionamento do voto em que menciona “legítima defesa” dos policiais envolvidos no massacre do Carandiru. Em vez de expor suas razões, prefere atacar seus críticos com acusações genéricas e inflamar certos setores contra a imprensa.
O texto de Sartori no Facebook foi compartilhado pelo major Emerson Massera, chefe da Divisão de Comunicação Social da Polícia Militar de São Paulo. O policial sugeriu, em sua postagem, que a Ponte – veículo que cobre segurança pública de forma crítica – recebe recursos do crime. Ainda que tenha se desculpado depois e anunciado que retiraria a postagem, essa postura é reveladora de uma predisposição à desmoralização da liberdade de imprensa, o que é inadmissível em uma democracia, sobretudo às instituições públicas.
Casos como esses precisam ser denunciados com coragem e firmeza. A maior vítima desse tipo de violência contra os profissionais de comunicação é a própria sociedade. A violência contra os jornalistas consiste em grave atentado contra a liberdade de expressão. É necessário sensibilizar a todos, inclusive autoridades públicas em todas as esferas do poder e até mesmo determinados jornalistas que, em busca de audiência para programas policiais de TV, acabam cometendo incitação à violência e sendo cúmplices dos excessos promovidos contra a imprensa.
Necessitamos de uma polícia verdadeiramente cidadã. Necessitamos de uma polícia que não trate a população como inimiga em potencial, mas que esteja devida e eficazmente preparada para atuar de forma pacífica e preventiva em atos públicos, salvaguardando os inalienáveis direitos de livre manifestação e liberdade de imprensa.
Nosso Prêmio Especial deste ano, pelo conjunto de sua obra jornalística e por sua trajetória profissional e pessoal engajada de resistência à ditadura, foi outorgado a Élio Gáspari e, in memoriam, a Claudio Abramo.
Esta homenagem que prestamos a esses dois nomes notáveis do jornalismo brasileiro traduz, estamos certos, o reconhecimento e gratidão de toda a nossa gente, partícipe das lutas e conquistas democráticas históricas no Brasil.
Para concluir, queremos também manifestar gratidão aos nossos parceiros e apoiadores: Câmara Municipal de São Paulo, onde há cinco anos acontecem as sessões públicas do júri de premiação do Vladimir Herzog; Federação dos Professores de São Paulo e OBORÉ pela organização da 5ª Roda de Conversa com os jornalistas premiados, e especialmente ao nosso patrocinador Petrobrás, que viabilizou parte deste nosso evento.
Agradecemos à direção do TUCA, que nos acolhe, e à nossa sempre corajosa e guardiã das causas democráticas Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que mais uma vez nos cedeu esta arena magnífica e tão plena de significados históricos.
Agradecemos muito calorosamente aos 24 jurados do Prêmio Vladimir Herzog – que se dedicaram voluntariamente a uma jornada nada fácil dado o grande número de inscrições e a qualidade dos trabalhos. Também enaltecemos e saudamos efusivamente os jornalistas vencedores desta nossa 38ª edição. E, por fim, agradecemos principalmente a cada um de vocês, cuja presença abrilhanta e dá sentido a este Prêmio.
Muito obrigado.