Fui o primeiro a receber o nosso Vlado na redação do Estado. (Não sei o ano exato em que ele entrou, mas acho que deve ter sido entre 1960 e 1962 ou 63). Não sei se foi o seu primeiro emprego.
Eu era repórter na Economia (o primeiro do Estado…) com o Frederico Heller de tarde, editava e paginava a Economia de noite e ia fechar a pagina no chumbo por volta da meia noite e o Claudio Abramo me pôs chefiando a reportagem pela manhã. Eu ajudava o santo Perseu Abramo, que entrava à tarde; uma das almas mais humanas e puras que encontrei.
Nesse período, me passaram o Vlado para experimentar na reportagem. O Claudio e o Perseu queriam saber se tinha bom texto e era bom para ser repórter. (Havia pouquíssimos deles, e um dos “meus “focas” foi o Pimenta…)
O Vlado era um pouco tímido e aparentava aquele sorriso de lábios fechados que parecia ser irônico, mas era timidez. Vi logo que o seu texto era excelente, frases curtas, objetivas e com muita informação que ele sabia colher. Apenas um pouco lento, mas eu disse ao Perseu que ele iria superar isso, como realmente superou.
Passei a pautá-lo e ele foi contratado por causa do Perseu, que viu no Vlado a bela figura humana que era. O Claudio ainda fazia alguma reserva, mas o Perseu venceu.
O Vlado demorou um pouco para se desinibir, não perdeu aquela espécie de sorriso reticente que não era bem sorriso, mas deslanchou aos poucos. Tornou-se um bom repórter, muito serio, com um dos melhores textos. O texto era corrido, fluente, ligeiro, enxuto, que nós elogiávamos muito. Era o que queria o jornal, que o Claudio estava tentando, ainda, mudar, abandonando textos meio antiquados, com frases longas e pouca informação. E conseguiu.
Um dia apareceu o convite de ida de um repórter do Estado para a Amazônia, creio que Rondônia. Consultei o Perseu e escolhemos o Vlado. Ele hesitou. Estava com medo, achava que não estava ainda preparado; era sua primeira viagem para o Estado. Argumentei que um dia ele teria que enfrentar isso e que nós confiávamos nele e achávamos que estava preparado, sim. Rateou, rateou, mas acabou indo e, se me lembro, escrevendo boas matérias. Mas como era um foca, o pessoal decidiu dar um trote nele. Colocaram uma grande cobra embaixo da sua cama, daquelas sem veneno mas impressionantes… Parece que ele entrou meio em pânico, mas aguentou. Só ficou um pouco chateado. Havia passado na prova. Não me lembro dele em 1964 e não sei se ainda estava no Estado no golpe; acho que não, pois eu não me esqueceria dele. Fiquei felizmente surpreso quando o soube enfrentando os militares, pois o achava ainda tímido e meio recolhido em si mesmo. Vi que havia coragem escondida no fundo daquela aparente timidez. Eu gostava dele e passei a admirá-lo, mas soube da sua atividade anti-revolucionaria só bem depois do golpe.
Aqui o meu segundo encontro distante com o Vlado. Foi em 1975 ou 1976 – acho que este – quando ele foi assassinado. Na época, eu estava com o Roberto Campos na Embaixada de Londres. Foi a única vez em que estive e não estive fora do jornalismo. Explico.
O Geisel decidiu ficar livre do Campos, que fazia duríssimas e severas criticas ao monopólio estatal do petróleo e à política econômica estatizante do Geisel, que havia sido presidente da empresa antes de assumir o governo. E isso com o total apoio do Estado, por meu intermédio. Campos, o Estado e eu fazíamos intensa campanha contra todos os monopólios – petróleo, informática, telecomunicação – em sucessivos e agressivos artigos dele, reportagens minhas e editoriais que eu também escrevia…
O Geisel mandou o Campos para Londres. O Campos me convidou para ir com ele para ser assessor. Eu disse que dependia do Estado, não de mim. Ele falou com o Julio Neto, que concordou, desde que fosse por pouco tempo. O Julio queria que eu me aprimorasse e aprendesse mais sobre economia. O Campos falou com o Golbery, pois precisava do aval do Geisel. E o Golbery disse ele podia me levar “mesmo porque assim o Geisel se livrava não de um, mais dois críticos de sua política estatizante e do monopólio estatal do petróleo”.
Mas eu não quis ser nomeado para o Itamaraty. Não aceitava ser funcionário publico. Nunca aceitei, mesmo quando a Folha me despediu em plena lua de mel. (Eu havia casado no dia 25 de janeiro e fui despedido uma semana depois…)
O Campos me colocou como contratado local, com um salário irrisório, para Londres,US$ 1.500. O aluguel do apartamento era de US$ 800.
O Julio Neto impôs outra condição além de eu ficar por pouco tempo (e fiquei mesmo só um ano e meio): eu tinha que continuar escrevendo para o jornal e, para ajudar minha família de mulher e três filhos, que não podia ir para Londres, o Estado continuaria pagando o meu salário no Brasil. Mas havia um problema: como assinar quando eu estava na Embaixada? O Julio neto inventou um pseudônimo, Altino Tavares. E, de Londres, por meio de um teletipo anônimo e fora da Embaixada, o Altino continuou criticando a política econômica do Geisel seguida de duros editoriais que “nós” (Campos e eu…) escrevíamos de Londres…
O ministro de Relações Exteriores, Azeredo Silveira, que tinha ciúmes e medo da cultura econômica e principalmente geopolítica do Campos, sabia que era eu, mas não podia provar. Também não sabia como conseguia mandar as matérias, pois ele havia cortado todas, absolutamente todas as verbas para gastos de comunicação, telex…
Eu estava em Londres, com o Roberto Campos, na Embaixada, como adido de imprensa e cultural, quando mataram o Vlado.Chorei como uma criança. Eu gostava muito dele. Senti-me ultrajado. Violentado com aquela violência desnecessária e estúpida dos militares.
No mesmo dia fui ao Campos e pedi demissão. Os correspondentes brasileiros em Londres, inclusive o Claudio Cuck, da Folha, iam todas as tardes tomar uísque comigo no pub da esquina. Desta vez, foram em turma me ver; eram uns 6 ou 7. Entraram na sala, caras tristes, algumas, chorosas, todos revoltados. Foi um silencio expressivo por alguns minutos. Aí disseram que haviam conversado e achavam que eu não podia continuar na Embaixada de um país que mata jornalista. Tinha que sair. Eu lhes disse que ia embora mesmo. Aí, um deles, não me lembro bem quem, acho que o colega da Gazeta Mercantil, lembrou que, se eu saísse, os militares iriam colocar no meu lugar um coronel qualquer (já havia dois adidos na Embaixada, um do Exercito e outro da Marinha.
Os colegas concluíram que isso seria pior e me pediram para reconsiderar e permanecer lá, informando-os sobre tudo o que pudesse descobrir. Eu passaria para eles e para o jornal. Foi o que aconteceu. Depois, soubemos que o Campos estava resistindo à pressão para colocar lá mais um militar…)
Naquela tarde sombria, saímos deprimidos da Embaixada para o pub da esquina e ficamos horas enchendo a cara. Fui para casa e encolhi-me num canto da sala – lembro-me tão bem disso! – e chorei, exclamando para mim mesmo: “filhos da puta, filhos da puta, vocês mataram o Vlado.” Fiquei mais alguns meses, mas não tinha mais coragem. Sai em meados de 1976. Eu sentia deixar meu aprendizado de economia e geopolítica com o Campos, mas não havia mais condições e o Julio estava me chamando de volta.A pedido do Campos só fiquei até a visita de Geisel e para ajudar os colegas a se livrarem da mordaça do Itamaraty imposta pelo então homem de imprensa, o diplomata Guy Brandão, na cobertura da comitiva do Geisel. Ele disse aos jornalistas que somente ele e ninguém mais poderia dar noticias, o que conseguimos burlar galhardamente… Acredite Nemércio, nunca vi um desfile de tantas vaidades ao mesmo tempo…
E foi esse o meu segundo encontro com o nosso Vlado. Só que ele não compareceu. Já estava morto.
Alberto Tamer – Jornalista