Por Gabrielle Abreu (historiadora, é coordenadora da área de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog).
Há 47 anos, o diretor de Jornalismo da TV Cultura Vladimir Herzog se encaminhou voluntariamente ao DOI-CODI de São Paulo a partir de uma demanda enfrentada por diversos outros comunicadores e artistas durante a ditadura militar: esclarecer para o Exército supostas vinculações a organizações de esquerda. Naquele dia, Herzog foi torturado e assassinado nas dependências daquele destacamento, onde hoje há um esforço memorialístico importante sendo conduzido por movimentos sociais e organizações da sociedade civil junto à Prefeitura de São Paulo com a finalidade de consolidar mais um espaço de memória referente ao regime militar na capital paulista.
A morte de Herzog foi catalisadora do processo de conclusão da ditadura que, em 21 anos de existência, deixou pelo menos 434 mortos e desaparecidos, segundo apurações oficiais. Passado o fim de um dos períodos mais repressivos da história do país, a sociedade brasileira precisou encarar de frente os pesadelos do passado na tentativa de repará-los. Fizemos isto alicerçados em instrumentos como a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), a Comissão de Anistia (CA), o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), a Comissão Nacional da Verdade (CNV) e outros caminhos que só puderam ser pavimentados sob a égide de uma democracia.
Não por coincidência, todas essas políticas se viram profundamente ameaçadas nos últimos quatro anos, enquanto tivemos como Presidente da República um admirador confesso de torturadores. Apenas em 2022 tivemos a iminência da extinção da CEMDP, o descaso com o acervo de 17 mil publicações da CA, o sucateamento do MNPCT e a descontinuidade dos trabalhos da CNV, que em seu relatório final dispôs 29 recomendações a serem cumpridas sobretudo pelo Estado brasileiro. Como é possível intuir, nenhuma dessas orientações foram tiradas do papel.
Na semana que antecede o segundo turno da eleição mais crucial da história do país e marca os 47 anos desde que Vlado se tornou um símbolo da luta pela democracia, nós, do Instituto Vladimir Herzog, reafirmamos o nosso compromisso com a liberdade de expressão e com uma cultura de paz e diálogo, que sabemos não ser compatível com armas e autoritarismo. Sabemos também que só há viabilidade para a construção de políticas de memória, verdade, justiça e reparação se estivermos respaldados pelas forças democráticas.
Na falta de medidas desta espécie, naturalizamos barbáries como as incursões policiais em favelas que corriqueiramente terminam em chacinas com dezenas de vítimas. Inspirados nos valores do Vlado, repudiamos a violência de Estado, herdeira direta da ditadura, que cotidianamente lesa milhões de brasileiros e brasileiras.
Neste 25 de outubro de 2022, quando ocorre o 44° Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, organizado pelo IVH e outras doze instituições, ansiamos pelo fortalecimento de um ambiente mais afeito à continuação do exercício de descortinar a ditadura, responsabilizar perpetradores e estabelecer definitivamente a sociedade justa e igualitária sonhada por Herzog.