A um ano das Olimpíadas no Rio de Janeiro, Anistia Internacional, entidade de defesa dos direitos humanos, faz alerta sobre constantes abusos da Polícia Militar do Rio de Janeiro
O Rio de Janeiro, a cidade que vai ser sede dos Jogos Olímpicos, tem uma face violenta que se contrapõe à alegria vendida no imaginário turístico. A polícia carioca tem praticamente licença para matar. A um ano do início das competições mundiais, esse é o alerta disparado pela ONG Anistia Internacional, que lançou na última segunda-feira, 3 de agosto, um relatório em que analisa o crescimento de homicídios decorrentes de intervenção policial na capital fluminense.
Um dos dados mais preocupantes do documento de 90 páginas é o de que, nos últimos cinco anos, ao menos 16% dos homicídios ocorridos na cidade – que figura entre as mais violentas do Brasil – aconteceram nas mãos de policiais que intervêm em comunidades carentes. Só entre 2013 e 2014, houve um aumento de 39% no número de mortes por agentes estatais. “É quase uma autorização, uma carta branca para matar”, disse Átila Roque, diretor executivo da AI no Brasil, à Agência Brasil.
O estudo, intitulado Você matou meu filho: Homicídios cometidos pela Polícia Militar, foi realizado entre agosto de 2014 e junho de 2015 e usa como base dados oficiais de segurança pública, além de documentos relativos a processos judiciais e entrevistas com moradores – em grande parte, mães que testemunham a perda de seus filhos. Como foco para a pesquisa, a Anistia escolheu a área que apresentou o maior número de registros de homicídios por policiais na capital, que inclui os bairros de Acari, Barros Filho, Costa Barros, Parque Colúmbia e Pavuna. Dentro deles, a favela de Acari registrou 10 mortes provocadas por PM apenas em 2014.
A chamada “guerra às drogas” é o principal argumento dos policiais para alegar o uso excessivo da força
A chamada “guerra às drogas” é o principal argumento dos policiais para alegar o uso excessivo da força, muitas vezes fora da lei, e as próprias mortes. Nos boletins de ocorrência registrados pela Polícia Civil, elas são descritas quase sempre como “autos de resistência” (quando um confronto justifica a legítima defesa), mas frequentemente caracterizam execuções extrajudiciais (quando suspeitos são assassinados deliberadamente).
Por outro lado, alguns relatos de moradores recolhidos pela Anistia em Acari citam policiais que participam do comércio ilegal de drogas e exigem “arrego” – um tipo de propina paga para que não haja repressão do tráfico local. Também são mencionados os grupos de extermínio formados, em sua maioria, por policiais civis e militares na ativa, aposentados ou expulsos de suas corporações.
Jovens e negros, assim como acontece em todo o país, são as principais vítimas nesse contexto de violência oficializada: das 1.275 vítimas fatais da intervenção policial entre 2010 e 2013, 99,5% eram homens, 79% negros e 75% tinham entre 15 e 29 anos. É o caso de Eduardo de Jesus, de 10 anos, morto por policiais militares na porta de sua casa, no Complexo do Alemão, no dia 2 de abril deste ano.
Preocupa a impunidade. Mais de 80% dos casos registrados na Justiça estão com a investigação em aberto
Outro número chamativo, com relação à impunidade das apurações, é que, do total de 220 registros de homicídios decorrentes de intervenção policial no Rio em 2011 a abril de 2015, mais de 80% dos casos estão com a investigação em aberto e apenas um deles foi denunciado à Justiça pelo Ministério Público.
O diretor Átila Roque ressalta a necessidade de responsabilizar os culpados: “Essa situação é grave, e uma das demandas principais que a gente faz é que o Ministério Público estabeleça imediatamente uma força-tarefa para esclarecer estas situações”. O estudo da AI faz uma série de recomendações nos diferentes níveis da administração pública, do Governo do Estado ao Congresso.
Preocupado com o desprestígio dos policiais e defendendo a atividade policial – que vê como “frágil” no Brasil –, o MP do Rio de Janeiro reagiu com desconforto ao relatório da ONG. Em nota oficial, a Promotoria disse que as acusações são “vazias e genéricas” e “em nada colaboram para a solução do problema”. “O MP, ao oferecer denúncia ao Judiciário e colocar quem quer que seja na posição de réu, só deve fazê-lo de forma responsável, sob pena não só de desrespeito às garantias individuais, mas também de desprestígio à imprescindível função pública dos policiais”, argumentou o órgão.
À sua vez, José Mariano Beltrame, secretário estadual de segurança pública do Rio, destacou à imprensa a redução do uso de fuzis e a diminuição da letalidade no Estado – pela qual um policial é beneficiado hoje em seu Sistema Integrado de Metas, e que as famosas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) reduziram em 85% o número de mortes decorrentes de intervenção policial nas comunidades desde que foram instaladas, em 2008.
“Bandido bom é bandido morto”
Uma preocupação adicional ao contexto de violência que a Polícia Militar herda, segundo relembra a AI, dos tempos em que era controlada pela ditadura, é que boa parte da população legitima o abuso policial com crenças do tipo “bandido bom é bandido morto”. Segundo pesquisa da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 43% dos brasileiros(as) concordam com essa afirmação, sendo que 32% concordam totalmente com essa frase.
Nesse sentido, existe um Brasil que acolhe e legitima essas mortes e já está acostumado ao uso indiscriminado de armas de fogo, inclusive fora de situações de confronto. Em seu relatório sobre o Brasil, Philip Alston, o relator especial da ONU, afirma que a retórica oficial de “guerra”, a compra de equipamentos bélicos e os símbolos policiais violentos servem apenas para fazer com que as mortes cometidas pela Polícia sejam aceitas por todos.