Rogério Sottili, diretor-executivo do IVH, assina artigo sobre a necessidade de o judiciário brasileiro promover uma reinterpretação da Lei de Anistia.
Por Rogério Sottili
Diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog
Entre 1964 e 1985, uma série de graves crimes contra a humanidade foram perpetrados por agentes do Estado brasileiro. Vivíamos em um contexto de prisões arbitrárias, sequestros, torturas, assassinatos, desaparecimentos forçados e terror na sociedade.
Esses agentes públicos, no entanto, nunca foram julgados. O tema ainda é, tanto tempo depois, uma das principais fontes de litígio entre o sistema internacional de direitos humanos e o Estado brasileiro. E a Lei de Anistia assumiu papel central nessa disputa.
A Lei de Anistia completa 39 anos neste 28 de agosto. Ao longo dessas décadas, tornou-se evidente que a compreensão dominante até hoje no Brasil não é compatível com as normas internacionais de direitos humanos.
A interpretação que prevalece nos tribunais nacionais até hoje considera que as graves violações de direitos humanos e crimes cometidos na ditadura são crimes políticos. Essa leitura impede as investigações e garante a proteção aos torturadores do regime militar. No entanto, esses crimes são, por natureza, imprescritíveis e inanistiáveis.
Como se não bastasse, a impunidade cristalizada na lei deixa um legado no imaginário coletivo que se traduz na tolerância à violência de Estado e no eventual reconhecimento da legitimidade do uso desproporcional da força. É como se houvesse, no Brasil, uma licença para matar.
Não por acaso, as forças de segurança ainda fazem uso dos autos de resistência, que acobertam práticas cotidianas de uso excessivo da força, execuções extrajudiciais e torturas.
Em plena democracia, cidadãos convivem com ações policiais e intervenções militares que têm características muito semelhantes à atuação dos aparatos de repressão da ditadura.
A desconstrução desse legado autoritário passa, necessariamente, por uma reinterpretação da Lei de Anistia que permita a justiça brasileira julgar e punir aqueles que cometeram crimes de lesa humanidade.
O judiciário brasileiro, liderado pelo Supremo Tribunal Federal, tem se esquivado de cumprir suas obrigações. Adequar-se ao sistema internacional de direitos humanos e suas normativas é uma delas. O Estado que assume compromissos perante a comunidade internacional e não os cumpre não é o tipo de Estado que queremos.
Recentemente, um tribunal internacional – a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ligada à Organização dos Estados Americanos – condenou o Brasil pela falta de investigação e punição aos responsáveis pelo assassinato de Vladimir Herzog (1937-1975).
A ausência de respostas do Estado brasileiro à família de Herzog – e às famílias de tantas outras vítimas da ditadura – sempre esteve escorada na Anistia. Ou seja, a lei tornou-se um subterfúgio.
A tarefa incompleta de se democratizar o país é indissociável da necessidade de se garantir justiça a todos que sofreram com a violência do Estado. Uma nova interpretação da Lei de Anistia, que esteja alinhada aos direitos humanos e às normativas internacionais, nunca foi tão necessária.
*Artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo, no dia 28 de agosto de 2018, na sessão “Tendências/Debates”.