01/02/2021

Luiz Cláudio Cunha

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A pergunta feita foi: em que circunstâncias você assinou o documento? Por intermédio de quem o recebeu, onde trabalhava, que idade tinha etc.

Luiz Cláudio Cunha*

A mobilização gaúcha por Vlado

O telefone tocou na sucursal da revista Veja em Porto Alegre e ecoou a voz firme, mas sempre cordial: 

– Bom dia, companheiro Luiz Cláudio. Aqui é o Audálio Dantas!

Nem precisava se identificar. A voz inconfundível do jornalista de 46 anos ainda preservava um doce e sedutor sotaque alagoano, que não esqueceu suas origens nem quando o menino de Tanque D’Arca, no árido agreste de Alagoas, trocou aos 12 anos sua terra natal de apenas 5 mil habitantes pela mais populosa cidade do continente, São Paulo.

Era um telefonema improvável naquela manhã, na segunda quinzena de dezembro de 1975. Improvável porque, naqueles dias tormentosos, o presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo tinha, com certeza, coisas mais importantes a fazer do que telefonar para o sul do país. Naquele momento Audálio liderava, com firmeza, serenidade e coragem, o sentimento de indignação e revolta que envolvia a morte, sob torturas, do jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, nos porões do DOI-CODI do II Exército.

O fim inesperado do diretor de jornalismo da TV Cultura, horas após se apresentar espontaneamente para um depoimento no centro da repressão paulista, em 25 de outubro de 1975, marcava o auge da investida da facção mais radical da direita militar, em aberta hostilidade ao quarto presidente da ditadura, general Ernesto Geisel. 

Herzog era o 22º jornalista morto ou até hoje desaparecido pela repressão do regime. Só nos dois anos iniciais do governo Geisel a ditadura tinha registrado cerca de 60 desaparecidos políticos. Na escalada de violência de outubro de 1975, Herzog era o 12º jornalista preso no espaço de uma semana só na cidade de São Paulo, varrida por uma onda de detenções que atingiu mais de 200 pessoas – incluindo líderes sindicais, médicos, estudantes, professores universitários, advogados e membros da oposição legal, reunidos no MDB1.

Vítima de um falso ‘suicídio’, segundo a fantasiosa nota oficial do II Exército, Herzog, judeu nascido na Iugoslávia em 1937, foi sepultado dois dias depois, na segunda-feira, 27, na área do Cemitério Israelita do Butantã reservada aos mortos comuns, os honrados, não no espaço distante que a fé judaica garantia aos suicidas, execrados pelo judaísmo. A congregação do Chevrah Kadisha, que administra o cemitério, não encontrou nenhum indício de suicídio no corpo de Herzog, descartando assim o enterro segregado. 

As vozes da solidariedade, como lembrou Audálio Dantas, começaram a ecoar a partir de segunda-feira, dia do enterro. A Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ) e a Organização Internacional dos Jornalistas (OIJ), que na época representavam mais de 230 mil profissionais de imprensa de todo mundo, protestaram. Mas, o medo ainda calava a maioria no Brasil. Dos 25 sindicatos de jornalista do país, apenas 11 se manifestaram contra o assassinato de Vlado – entre eles, o de Porto Alegre. 

Audálio se mostrou surpreso e desalentado com a falta de apoio dos sindicatos operários, incluindo os do vibrante ABC paulista. Até o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, onde despontava um líder barbudo em ascensão chamado Luiz Inácio Lula da Silva, calado estava, calado ficou. O estrondoso e constrangedor silêncio do ABC sindical brotou na morte de Vlado, em outubro de 1975 e perdurou, de forma ainda mais embaraçosa, três meses depois, em janeiro de 1976, quando Manoel Fiel Filho, operário como eles, apareceu também ‘suicidado’ no mesmo DOI-CODI que matou Herzog2.   

O ‘probleminha’ da tortura

A crise no coração da repressão do regime forçou a ida de Geisel a São Paulo na quinta-feira, 30, véspera do tenso culto ecumênico na catedral da Praça da Sé, centro maior da Igreja Católica na capital. O aparelho repressivo não queria nem mesmo investigar a morte do jornalista. Confrontado pelos generais Ednardo d’Avila Mello, comandante do II Exército, e pelo general Sylvio Frota, ministro do Exército, Geisel bateu pé pela realização de um inquérito policial-militar, o IPM. “Não pode haver crime, ou morte, dentro de uma organização militar sem ser apurado”, trovejou o presidente, segundo Elio Gaspari, em A ditadura encurralada.      

Rendido, naquele mesmo dia Ednardo informou, em nota, a instauração de um IPM para “apurar as circunstâncias em que ocorreu o suicídio do jornalista Vladimir Herzog”. O detalhe bizarro é que antes mesmo de começar, o IPM já apontava sua teimosa conclusão dos fatos ainda não apurados: ‘suicídio’. 

A suspeita precipitação não incomodou Geisel, que parecia no início interessado na correta apuração do crime. Duas décadas depois, em 1997, Geisel definiu tudo aquilo como um ‘probleminha’3:

Não sei se o inquérito estava certo ou não, mas o fato é que apurou que o Herzog tinha se enforcado. A partir daí o problema do Herzog, para mim, acabou. (…) É possível que aquilo tenha sido feito para encobrir a verdade. Mas o inquérito tem seus trâmites normais, suas normas de ação, eu não iria interferir no resultado. (…) É preciso ver o seguinte: o presidente da República não pode passar dias, ou semanas, com um probleminha desses. É um probleminha em relação ao conjunto de problemas que ele tem4.

A farsa do IPM durou 47 dias, carimbando como ‘suicídio’ a morte de um jornalista moído sob torturas num enredo fantasioso que desperdiçou 299 folhas de papel imprestável. O IPM foi concluído em 12 de dezembro, uma sexta-feira, mas os seus pífios resultados só foram divulgados uma semana depois, dia 19, a sexta-feira seguinte.  

Nasceu daí a ideia de contestar o falso IPM. Todos sabiam que um confronto direto com os militares poderia dar a eles o pretexto de uma intervenção no sindicato, sujeito à dura legislação que submetia o sindicalismo aos humores do Ministério do Trabalho. A solução seria transformar o sindicato em mero intermediário de uma contestação ao IPM organizada e assinada pelos jornalistas, uma ação coletiva que protegeria a entidade presidida por Audálio Dantas de qualquer ameaça de intervenção. O manifesto, ‘Em Nome da Verdade’, começou então a sua épica jornada de coleta de assinaturas, com ênfase central em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Porto Alegre, que concentravam a maioria dos jornalistas do país. 

Era essa a explicação para o inesperado telefonema que atendi na sucursal gaúcha de Veja

Audálio, diante da urgência do caso, me deu o prazo de uma semana para colher as assinaturas dos jornalistas de Porto Alegre. Assinar um documento de aberta contestação à mentirosa versão do falso suicídio de Herzog era um gesto de coragem e dignidade dos jornalistas, a primeira contenda pública com o regime militar desde o advento do AI-5, em dezembro de 1968, exatos sete anos antes. O risco de represálias era elevado. Como havia dúvidas se os jornais publicariam o manifesto, os signatários de São Paulo e Rio, além da coragem, contribuíam com uma caixinha para custear a sua eventual publicação como matéria paga, um texto ‘a pedido’.   

Os grandes jornais, ao contrário dos jornalistas, ainda mantinham uma postura de apoio, velada simpatia, disfarçada indiferença ou calculado silêncio diante da força e da censura do regime que eles sustentaram, antes e depois do golpe militar de 1º de abril de 1964, uma data coerente com o ‘suicídio’ de Herzog. 

União na conspiração

No Rio de Janeiro, antes mesmo do golpe, a conspiração conseguira unir os três grandes concorrentes da imprensa carioca: O Globo, o Jornal do Brasil e os Diários Associados5.  Nascimento Brito, Roberto Marinho e Assis Chateaubriand fundaram, em 26 de outubro de 1963, a cinco meses da derrubada de João Goulart, a ‘Rede da Democracia’, que ecoava em transmissão conjunta das rádios Jornal do Brasil, Globo e Tupi uma catilinária em cadeia nacional contra a ‘ameaça vermelha’ e a iminente tomada do poder pelos comunistas ligados ao presidente Jango6

No dia seguinte ao golpe vitorioso, 2 de abril de 1964, O Globo de Roberto Marinho festejava em editorial a intervenção militar: “Ressurge a Democracia!”. Em um trecho, tentava dar o amparo do Art. 176 da Constituição para o uso do arbítrio, definindo dessa forma as Forças Armadas: “São instituições permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade do presidente da República E DENTRO DOS LIMITES DA LEI”. Assim mesmo, em maiúsculas de tom quase verde-oliva, para camuflar a violência e vender a ideia de que o fora-da-lei era o presidente Goulart. 

O Jornal do Brasil conseguiu ser mais rápido que O Globo no gatilho da adulação. Na véspera, 1º de abril, o jornal de Nascimento Brito saudou a vitória da democracia “contra a ameaça de uma república sindicalista” ou “a implantação de um regime comunista”, o que dava no mesmo. O JB já dava o movimento militar como vitorioso, enquanto os tanques dos generais Olympio Mourão Filho e Carlos Luís Guedes ainda rodavam de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro. No dia seguinte, 2 de abril, os dois jornais trombaram no seu entusiasmo. “Fugiu Goulart e a democracia está sendo restabelecida”, mentiu O Globo, desmentido na manchete daquele dia do Jornal do Brasil: “Goulart resiste no sul e o Congresso empossa Mazzilli”.7

O apoio ao golpe no JB não era restrito aos donos da empresa, condessa Pereira Carneiro e seu genro, Nascimento Brito. A cúpula do jornal – Alberto Dines (editor-chefe de 1962 a 1973), Carlos Lemos (chefe de redação), Wilson Figueiredo (editorialista) e Luiz Orlando Carneiro (chefe de reportagem) – responsável pelo que era publicado – também festejou a derrubada de Jango, em franca oposição à redação do JB, na maioria integrada ou por simpatizantes do governo ou militantes da esquerda8. Daqueles quatro, doze anos depois, só aparece o nome de Alberto Dines no manifesto dos 1.004 jornalistas contestando o ‘suicídio’ de Herzog.

Em São Paulo, o envolvimento dos grandes jornais antecedia o golpe, começando na conspiração para derrubar Jango. No início de 1962 oficiais das Forças Armadas, falando em nome de um trio histórico de conspiradores – o marechal Odylo Denys, o almirante Sílvio Heck e o brigadeiro Gabriel Grun Moss –, foram a São Paulo para um encontro com o dono de O Estado de S. Paulo, Júlio Mesquita Filho, a quem entregaram um documento sobre as normas que iriam orientar o governo militar após a queda de Jango.

O grupo, integrado pelos generais Cordeiro de Farias e Orlando Geisel, foi mais explícito com o dono do Estadão: o regime discricionário teria de ficar no poder por pelo menos cinco anos. Animado com a conversa, Mesquita chegou ao ponto de sugerir oito nomes para o futuro ministério revolucionário, incluindo entre eles Mem de Sá, Roberto Campos, Dario de Almeida Magalhães e Milton Campos. Todos os quatro chegaram lá. 

Com o jurista Vicente Rao, advogado da mineradora americana Hanna, Mesquita chegou a fazer o rascunho de um Ato Institucional para fechar o Senado, a Câmara e todas as Assembleias estaduais e cassar mandatos – o mesmo instrumento de força que a ditadura anos depois faria seus jornais engolir com o AI-5, na forma de versos e receita de bolo.9

“Até ali [o AI-5], nós vínhamos divergindo em caso e número, mas não em gênero, porque sabíamos que o processo tinha que ser aquele, achávamos que devia ser aquele”, reconheceria anos depois Ruy Mesquita, irmão de Júlio e também diretor de O Estado de S. Paulo.10 Em entrevista a Audálio Dantas, em 2005, Mesquita foi além: “Não só apoiamos, como conspiramos”.11 Ao contrário do pai, o jornalista Ruy Mesquita Filho, o Ruyzito, um dos herdeiros do Grupo Estado, é um dos 1.004 signatários do manifesto contra o ‘suicídio’. 

O outro grande jornal paulista, a Folha de S. Paulo, tinha um envolvimento até logístico, mais do que ideológico, com o golpe militar. As peruas Chevrolet C-14, da frota que transportava jornais para as bancas, muitas vezes foram usadas para levar ou trazer gente torturada na OBAN. Carlos Eugênio Paz, o chefe do GTA (Grupo Tático de Ação) da organização guerrilheira Aliança Libertadora Nacional, reforça: “A ALN queimou vários carros da Folha como represália à participação do Grupo Folha no financiamento da repressão e ao uso de seus carros na repressão direta. Ao fazer isso, atuando na guerra, o Grupo Folha era passível de sofrer as sanções e as represálias da guerra. O Grupo Folha apoiou o golpe de Estado, financiou, participou diretamente da repressão e jamais fez autocrítica disso”.12

A redação de policiais

O vespertino do grupo, a Folha da Tarde, era a ponta avançada do extremismo radical da empresa, o porta-voz oficioso da repressão política. Até 1968, era um jornal de esquerda, mais inquieto, que concorria diretamente com o irmão mais novo do Estadão, o Jornal da Tarde. No comando da redação estava um jornalista egresso da Última Hora janguista, Jorge Miranda Jordão, que tinha sob seu comando alguns jornalistas ligados à ALN, grupo da luta armada liderada por Carlos Marighella. O advento do AI-5 virou o fio do jornal. Houve uma limpeza na redação e, a partir de julho de 1969, a Folha da Tarde converteu-se num diário que o jornalista Cláudio Abramo resumiu numa palavra: “Sórdido”. 

O dono do Grupo Folha, Octávio Frias de Oliveira, trocou o esquerdista Jordão por Antônio Aggio Jr., um jornalista especializado em cobertura policial. Um redator da editoria de ‘Mundo’ cumpria dupla jornada: trabalhava à tarde no jornal e, de manhã, no DOPS comandado pelo delegado Sérgio Fleury, o mais notório nome da máquina de tortura brasileira. “Muitos jornalistas andavam armados na redação. O Aggio mesmo circulava com uma maleta em forma de violino. Era uma carabina turca”, revelou a jornalista Beatriz Kushnir, autora de um livro cortante sobre o colaboracionismo da grande imprensa com a ditadura e a censura.13

Os antigos militantes de esquerda foram substituídos por policiais que escreviam, mantendo até o duplo emprego entre redação e o aparato repressivo. A FT, inexpressiva nas bancas, passou a ser conhecida como “o jornal de maior tiragem” – uma piada lúgubre sobre a taxa de ‘tiras’ (policiais) que infestavam sua redação, também conhecida como ‘delegacia’.

Assim como Chateaubriand e Marinho no Rio, as famílias Mesquita e Frias em São Paulo integravam o centro ideológico da mídia no golpe, concentrado no Ipes. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, fundado no Rio em novembro de 1961, três meses após a renúncia de Jânio Quadros, reunia a nata do empresariado, nacional e multinacional, com todos os nomes, sobrenomes e siglas que ainda hoje enfeitam as listas das maiores empresas do país. Um empresário de origem americana no Rio, Gilbert Huber Jr., dono da então poderosa Listas Telefônicas, articulou-se com um empresário de uma multinacional em São Paulo, João Batista Leopoldo Figueiredo, ex-presidente do Banco do Brasil no Governo Jânio e tio do futuro presidente Figueiredo. Acabaram recrutando militares da reserva, um deles o general Golbery do Couto e Silva.

Parecia um inocente clube de homens de negócios. Mas, na sua face oculta, sob siglas e codinomes, o Ipes concentrava a execução metódica de um pensado plano da burguesia nacional para combater, de forma clandestina, os seus três principais inimigos: o governo Jango, a aliança nacionalista do PTB e o comunismo, que aparentemente resumia tudo aquilo. O braço político ostensivo do Ipes era o Ibad, Instituto Brasileiro de Ação Democrática, que apesar do nome tinha ligações com o MAC, Movimento Anticomunista, e com a organização da direita católica Opus Dei. O fundador do Ibad em 1959 foi o integralista Ivan Hasslocher, dono da Promotion, uma agência de publicidade que promovia o lobby do Ibad e seu braço parlamentar, a ADP – Ação Democrática Popular –, um núcleo conservador de 160 parlamentares da centro-direita no Congresso reunido em torno da UDN, PSD e PSP. A ADP fazia contraponto à Frente Parlamentar Nacional, que orbitava no universo do PTB e dos aliados da esquerda. Segundo o historiador uruguaio René Dreifuss, a ADP tinha sua ação política patrocinada pela estação no Rio de Janeiro da CIA, a agência de inteligência americana focada em campanhas políticas e grupos de pressão.14

Homens da mesma linha de pensamento e com igual propósito juntaram, a partir de 1962, as duas entidades: nascia o complexo Ipes/Ibad, matriz ideológica e operacional da conspiração que daria o golpe e, depois, forneceria os quadros e dirigentes do aparato estatal que sustentou o regime militar. O Ipes operava como centro estratégico, e o Ibad como unidade tática. O monstro crescia junto com a conspiração. Em 1963, os 80 membros originais do Ipes pularam para 500. Eram sócios 26 dos 36 líderes da Fiesp, a maior federação industrial do país. A entidade se espalhava pelas capitais do país.

Intelectuais a soldo

A articulação dos empresários com os militares era feita pelo Grupo de Levantamento da Conjuntura (GLC) do Ipes, comandado pelo general Golbery, que atuava sobre o I (Rio) e III (Porto Alegre) Exércitos. A ‘ordem de serviço com calendário’ do GLC, que definia a estratégia de ação, tinha uma edição limitada de 12 exemplares, que não eram registrados nas atas do Ipes. A equipe de Golbery distribuía nos quartéis uma circular bimestral mimeografada, sem citação da fonte, avaliando a atividade ‘comunista’ no país, apontando o dedo para subversivos infiltrados no governo e mapeando suas ações. 

Só no Rio de Janeiro o GLC de Golbery tinha três mil telefones grampeados15. O grupo do general ocupava quatro das 13 salas que o Ipes havia alugado no 27° andar do Ed. Avenida Central, na av. Rio Branco, no centro da cidade. A conta do telefone era faturada em nome do general da reserva Henrique Geisel, irmão de Ernesto. O GLC escrutinava a produção diária da imprensa do país, um total de 14 mil edições no ano, e produzia mensalmente cerca de 500 artigos, disseminados pelos jornais ou divulgados em forma de palestras. 

Neste trabalho era fundamental manipular a expressão da sociedade. O objetivo central do Grupo de Opinião Pública (GOP) do Ipes era disseminar seus objetivos na imprensa falada e escrita. Dissimulado, o grupo evitava o nome “opinião pública”, preferindo as expressões “divulgação” e “promoção”. O GOP era “a base de toda a engrenagem”, definia o general Heitor Herrera, um dos líderes do Ipes. José Luís Moreira de Souza, dono da Denison Propaganda, dizia que “conquistar a opinião pública” era a essência da ação política do grupo. O principal articulador do GOP era um ex-comissário de polícia, José Rubem Fonseca, que nas décadas seguintes se consagraria como o maior contista vivo do país, ganhador em 2003 do Prêmio Camões, o Nobel dos escritores de língua portuguesa. 

Rubem Fonseca coordenava, entre outros, jornalistas no Rio, como Glauco Carneiro e Wilson Figueiredo (o editorialista golpista do JB), e, em São Paulo, como Enio Pesce16 e Flávio Galvão, estrelas do Estadão. Intelectuais de respeito estavam no balaio de Fonseca e do IPES: a escritora Nélida Piñon (secretária da entidade no Rio), o cronista Odylo Costa, filho, o poeta Augusto Frederico Schmidt e a romancista Rachel de Queiroz – todos irmanados na agitação golpista em favor do general Castelo Branco, primo de Rachel.17 

O que acontecia na grande imprensa do Rio e São Paulo se repetia na grande imprensa gaúcha, que teve conivência e complacência com o golpe, antes e depois de 1964.

O Diário de Notícias, o principal órgão Associado no sul, foi depredado e incendiado pela população de Porto Alegre, em agosto de 1954, ao ecoar o tiro do suicídio de Getúlio Vargas, atribuído à forte oposição da imprensa, onde se destacava o grupo de Chateaubriand. Sua adesão ao golpe, em 1964, não impediu sua decadência, até fechar em 1979. A Zero Hora já nasceu depurada e lavada ideologicamente em 4 de maio de 1964, um mês e quatro dias depois que o general Olympio Mourão botou as tropas na rua. Herdou do jornal Última Hora as máquinas e a antiga sede na rua Sete de Setembro, no centro de Porto Alegre, mas livrou-se rapidamente do logotipo, da cara e da comprometedora intimidade ideológica de seu antecessor nas bancas e de seu dono no expediente, Samuel Wainer, identificado com o getulismo, a esquerda e o governo Jango. 

A Última Hora gaúcha era a edição mais jacobina da ágil rede de jornais de Wainer, que além do Rio e São Paulo publicava edições simultâneas e vibrantes em outros nove centros do país – capitais como Belo Horizonte, Recife, Niterói, Curitiba, Porto Alegre e outras quatro cidades do interior paulista, inclusive a emergente região sindical do ABC.18 

Era natural, portanto, que herdasse também todos os inimigos e a santa ira da nova ordem militar. A UH de Porto Alegre sentiu o golpe, literalmente. Tentou manter a linha editorial e o sonho de uma resistência de Jango ao levante militar até o dia 5 de abril. Resfolegou na impossível neutralidade por mais três semanas e, afinal, sucumbiu em 25 de abril do ano da graça de 1964. O diretor da edição gaúcha, Ary de Carvalho, ainda procurou manter a equipe, a marca e a estrutura do velho jornal. Viajou ao Rio, para uma conversa de negócios com Wainer, então exilado na Embaixada do México. Carvalho fez a proposta, e Wainer topou vender as máquinas de escrever, as oito máquinas fotográficas, as quatro lambretas, os dois carros e o arquivo de fotos – mas não aceitou vender o título do jornal.

Wainer mandou fechar a UH. Com outros três empresários, Carvalho comprou máquinas e equipamentos da redação, segurou alguns membros da equipe e tratou de fundar um novo diário em maio de 1964. Pediu ao chefe da diagramação, o argentino de nascimento Aníbal Bendatti, uma logomarca para o novo jornal – “parecida, mas diferente da Última Hora19. Bendatti datilografou a palavra Zero Hora, ampliou os tipos da máquina de escrever, livrou o título antigo do retângulo e cravou a nova marca num quadrado comportado. Preservou apenas o azul dos velhos tempos na cara do diário que já nascia simpático ao regime de 1964. A simpatia dos conspiradores foi ainda maior.

Ary de Carvalho trazia ligações de família decisivas desde Birigui, cidade do interior paulista onde se iniciou em 1926 a carreira de sucesso de um antigo office-boy de uma agência local do Banco Noroeste chamado Amador Aguiar. Décadas depois, Aguiar tinha um emprego novo e o seu próprio banco, o Bradesco, ambos engajados de corpo e alma no projeto golpista do Ipes. Nada mais natural, assim, do que ajudar o velho amigo de um jornal que já nascia amigo dos vitoriosos de abril de 64. Com o dinheiro do Bradesco, Carvalho livrou-se dos antigos sócios e cresceu. Ganhou anos depois um novo parceiro, o radialista Maurício Sirotsky, que em 1962 criara a TV Gaúcha, então filiada à Rede Excelsior. Juntos compraram em Chicago, EUA, a moderna máquina de impressão em off set que tornou a Zero Hora o segundo jornal do país a adotar a novidade (o primeiro tinha sido a Folha de S. Paulo de Frias).

O esforço fez o jornal cambalear financeiramente, e, em abril de 1970, seis anos após o golpe, Carvalho vendeu as ações que tinha ao sócio e retirou-se para o Rio de Janeiro. Sirotsky, agora o único dono de Zero Hora, fizera em 1965 um movimento tático decisivo: trocou a Excelsior pela nascente Rede Globo de Roberto Marinho, a organização jornalística que mais cresceria sob a ditadura. No vácuo desse sucesso nasceu, cresceu e apareceu a RBS, a Rede Brasil-Sul de Sirotsky, hoje o grupo de mídia mais poderoso do sul do país, nascido dos escombros da Última Hora esmagada pelos tanques de 64.

O fazendeiro ancora no golpe

Até aparecer a RBS, a empresa jornalística mais influente e rica do Rio Grande do Sul era a Caldas Júnior, que editava o jornal mais importante do estado, o Correio do Povo, operava a rádio mais ouvida, a Guaíba, e mantinha um vespertino de larga penetração, a Folha da Tarde. Atravessou sem sobressaltos a turbulência de 1964 porque era uma empresa conservadora, mantida sob o rígido controle de seu dono, Breno Caldas. Tinha apenas 25 anos quando assumiu o jornal, em 1935. O pai, fundador do Correio do Povo meio século antes, morrera prematuramente aos 45 anos, em 1913, mergulhando a empresa numa crise financeira que durou até a chegada de Breno Caldas.

Dono de jornal e fazendeiro, Breno Caldas cultivava uma previsível hostilidade contra as reformas de base de João Goulart e antipatia ainda maior contra o cunhado do presidente, Leonel Brizola – que na crise da renúncia de Jânio em 1961 requisitou a sua rádio Guaíba para montar em torno dela a “Rede da Legalidade”, que no gogó brecou o golpe militar e, com a adesão inesperada do III Exército, garantiu a posse de Jango.

Nos idos de 1962, o líder do Ipes carioca, José Luiz Moreira de Souza, viajou a Porto Alegre para botar a Caldas Júnior no balaio da conspiração. Ganhou as graças de Arlindo Pasqualini, irmão de Alberto, ideólogo do trabalhismo que o Ipes combatia. Arlindo, diretor da Folha da Tarde e o sucessor natural do dono da empresa, Breno Caldas, recebeu a missão de produzir uma série de artigos contra Leonel Brizola, que já não tinha a simpatia da casa desde a Campanha da Legalidade do ano anterior.20

A animosidade cresceu no governo Jango. Brizola pegou gosto pelo microfone e batia regularmente em Breno Caldas às sextas-feiras, no seu programa noturno na rádio Farroupilha, que curiosamente fazia parte da rede dos Diários Associados do golpista Chateaubriand. O ex-governador adotava um tom coloquial e direto ao falar na rádio: “Dr. Breno, eu sei que o senhor está me ouvindo aí no seu iate ancorado no Guaíba…”. A chicotada vinha em seguida: “O Correio do Povo, que já foi jornal do povo, hoje não é. Agora é um órgão da oligarquia, dos monopólios, dos trustes internacionais…”, golpeava Brizola.21

A resposta vinha na primeira página da Folha da Tarde, nos artigos assinados por seu diretor, Arlindo Pasqualini, o homem do Ipes dentro da Caldas Júnior. Como bom fazendeiro e criador de cavalos, Breno tinha afinidades campeiras com Jango, a quem chamava por “tu”, expressão de intimidade entre gaúchos. (Para manter a distância, Breno sempre tratava Brizola pelo cerimonioso “doutor”.) Quando o golpe aconteceu, acabaram as cerimônias.

Nos primeiros editoriais após o golpe de 1964, o jornal abandonou sua histórica divisa da primeira edição de 1895 – “independente, nobre e forte” – e aderiu à facção vitoriosa, assumindo uma postura subalterna à nova ordem militar. E escancarou seu apoio em editoriais didáticos para explicar por que os revolucionários do golpe de 1º de abril estavam certos: “Aquele era o único caminho para salvar o Brasil”, dizia o jornal que se pretendia independente, nobre e forte, fazendo o coro de submissão com a grande imprensa golpista do centro do país.22 

Falando, Breno Caldas tentava matizar o que era mais explícito nos editoriais. Em 1987, dois anos antes de morrer, em entrevista ao jornalista José Antônio Pinheiro Machado, ele reconhecia: “A Revolução de 1964, de certo modo, contou com a nossa participação, ou pelo menos com a nossa simpatia. O pessoal que foi ao poder em 1964… não é que fosse ligado a nós, não tínhamos ligações políticas com ninguém…, mas eram pessoas afinadas conosco, estávamos no mesmo caminho. Quando houve a tal conspiração do Castelo Branco, eu não sabia de nada oficialmente. Até que o general Adalberto Pereira dos Santos, que comandou o movimento por aqui, fez um contato comigo, me disse que a situação era crítica, que iria acontecer alguma coisa. ‘Fique atento a uma manifestação do general Castello Branco’, me disse ele”.23 

O retrato da mídia pelo SNI

Esse era o terreno, agreste como o sertão alagoano, que Audálio Dantas me propunha percorrer, em dezembro de 1975, para recolher assinaturas para o manifesto que contestava o IPM do ‘suicídio’ de Vlado. O pedido poderia ter sido feito ao bravo presidente do Sindicato dos Jornalistas de Porto Alegre, João Borges de Souza, mas a precaução era a mesma exigida em São Paulo: era preciso cautela, para não expor o sindicato numa atividade politicamente provocante e dar aos militares o pretexto fácil da intervenção. Isso explica por que Audálio telefonou para mim, e não para o João Borges, um dos 1.004 ilustres signatário do manifesto ‘Em Nome da Verdade’.

Três anos depois do assassinato de Vlado no DOI-Codi, a agência do SNI em Porto Alegre fez uma avaliação secreta sobre a imprensa gaúcha. Com todos os preconceitos e vícios típicos da ditadura, o relatório enviado à Agência Central em Brasília, em 20 de novembro de 1978, reflete a visão que o aparato repressivo do regime tinha da mídia de Porto Alegre, que certamente era muito parecida com a que visitamos nos idos turbulentos de dezembro de 197524. Esse era o perfil que o SNI fazia dos principais jornais gaúchos, pouco depois da morte de Vladimir Herzog:

  1. Correio do Povo: é o jornal mais tradicional do RS, que se mantém dentro de uma linha de jornalismo conservadora, apresentando as notícias de forma realista, séria e sem deturpações. Geralmente assume posicionamento concordante com o Governo Federal. Possui muito boa credibilidade junto à opinião pública;
  2. Folha da Tarde: vespertino de linha apolítica. Usa de linguagem moderada e imparcial nos seus artigos. Não faz oposição ao governo;
  3. Jornal do Comércio: jornal inteiramente dedicado a assuntos da área econômica. É bastante favorável ao Governo Federal;
  4. Folha da Manhã: matutino que frequentemente apresenta notícias e reportagens de conteúdo crítico contrário ao governo. Através de artigos, manchetes sensacionalistas e charges, distorce os fatos, apresentando-os com inverdades ou meias verdades;
  5. Zero Hora: jornal de grande circulação no estado. Em seu editorial posiciona-se, geralmente, favorável ao Governo Federal. Porém, no seu todo o jornal dá maior destaque para a oposição e para qualquer assunto ou movimento contrário ao governo e ao Regime Político atual. Salienta-se, também, que ZH é o único jornal do estado que divulga notícias da Agência NOVOSTI (APN) da UNIÃO SOVIÉTICA, que, muitas vezes, são incluídas no noticiário de outras agências internacionais, intercalando-se o texto das mesmas, fato ocorrido particularmente nos recentes incidentes do AFEGANISTÃO. 
  6. CooJornal: encontra-se dentro da mesma linha de orientação dos demais jornais da imprensa “ALTERNATIVA”, que atuam no País, apresentando conteúdo frontalmente contrário ao governo, às suas instituições e ao Regime Político implantado em 31 MAR 196425.

Logo depois do inesperado telefonema de Audálio, peguei o texto enviado por telex pelo Sindicato de São Paulo, de autoria de Fernando Pacheco Jordão, um dos integrantes da diretoria liderada por Audálio e autor do livro Dossiê Herzog: prisão, tortura e morte no Brasil, publicado quatro anos depois. O texto tinha uma breve introdução e oito perguntas básicas, quase óbvias, para desmontar a farsa do IPM. Fiz três cópias e repassei duas aos meus dois repórteres na sucursal de Veja – Pedro Maciel e Adélia [Dedé] Porto da Silva. 

Fomos os primeiros a assinar, junto com os outros integrantes de revistas da Editora Abril, cuja sucursal eu chefiava, incluindo jornalistas efetivos, colaboradores free-lancers e antigos integrantes da equipe que sempre circulavam por lá. Abriam a fila os fotógrafos Ricardo [Kadão] Chaves, Olívio Lamas e Assis Hoffmann, os repórteres da revista Placar Divino Fonseca e Mário Marcos de Souza, os colaboradores da Exame Maria Iara Rech e Affonso Ritter e minha secretária, Rejane Baeta. 

Coletar assinaturas para um documento que confrontava diretamente uma investigação viciada do Exército sobre a morte de Herzog só podia ser uma responsabilidade coletiva, nunca individual. Um exemplo é que em dezembro, quando o manifesto começou a correr as redações de São Paulo, o meu repórter Pedro Maciel casualmente estava lá, fechando uma matéria. Na sede paulistana da Veja, no prédio da Abril na Marginal do Tietê, o secretário de redação, o gaúcho Paulo Totti, era o encarregado de colher as assinaturas. Quando Maciel se dispôs a assinar, ali mesmo, o experiente Totti observou: “Pedro, se assinares aqui, tu serás o único gaúcho em uma lista de jornalistas paulistas. E isso vai te expor muito. É melhor esperar que o manifesto chegue a Porto Alegre, para assinar lá”.   

Audálio nos deu uma semana de prazo, mas achei que a tarefa deveria ser cumprida em um ou dois dias, no máximo, para atrair menos atenção, devido à delicadeza do momento, reduzindo assim nossa presença nas redações.

Decidi concentrar nosso esforço – meu, de Pedro e Dedé – em cinco desses jornais, que reuniam o maior contingente de jornalistas: os três da Caldas Júnior (Correio do Povo, Folha da Tarde e Folha da Manhã), a Zero Hora e o CooJornal

Dedé, a mais simpática do trio, ficou encarregada de visitar a CooJornal, a primeira cooperativa de jornalistas do país, fundada em agosto de 1974 na esteira de uma crise na Folha da Manhã, quando 21 jornalistas (1/3 da redação) se demitiram em protesto contra a demissão do repórter Caco Barcellos, autor de uma vigorosa matéria contra a violência policial. Os 66 jornalistas que fundaram a cooperativa se multiplicaram até chegar a 314 associados, editando 33 jornais e boletins para sindicatos, empresas privadas e outras cooperativas, garantindo o sustento de quase 100 jornalistas que realizavam a utopia de uma empresa sem patrões, fazendo um jornal de jornalistas. O CooJornal se orgulhava de ter ‘o maior expediente do mundo’, com mais de 300 jornalistas sem patrão e sem hierarquia, todos nivelados pelo cooperativismo. O jornal, assim, era um bravo integrante da chamada ‘imprensa nanica’, ao lado de publicações do centro do país como Movimento, Opinião, Versus, Em Tempo, Bondinho, Ex e o venerando O Pasquim, o irreverente semanário carioca que chegou a vender 200 mil exemplares, um sucesso de banca que afrontava a condição de ‘nanico’. 

O mensário CooJornal se caracterizava por uma pauta criativa, centrada em fatos históricos, remontando episódios e citando personagens da oposição, dissidentes e pensadores de esquerda, que irritavam os militares. Um bom retrato do jornal foi desenhado pela própria Agência Central do SNI, na ‘Informação Confidencial nº 031’, de 19 de agosto de 1980, que registrou com inusual precisão:

O periódico CooJornal, editado pela Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, caracteriza-se por divulgar artigos hostis ao governo. Apesar de a referida publicação ter tiragem de, apenas, 35 mil exemplares, seus artigos são comumente comentados pelos demais órgãos de imprensa, e passa, deste modo, a ter repercussão nacional.26

No perfil da imprensa desenhado pela agência gaúcha do SNI, de novembro de 1978, o órgão de informações citava Elmar Bones da Costa (editor-responsável), Osmar Trindade (secretário da cooperativa), Luiz Carlos Merten (redator), José Antônio Vieira da Cunha (presidente da CooJornal), Renan Antunes de Oliveira (repórter), Carlos Rafael Guimarães (redator) e o chargista Edgar Vasquez. Bones, Merten e Vasquez integram a lista final dos 1.004 signatários do manifesto de 1976 dos jornalistas.

O SNI acusava:

Relacionamos os principais dirigentes e redatores do COOJORNAL, todos de tendências ideológicas ‘esquerdistas’, que em seus artigos fazem forte oposição ao governo e ao regime implantado em MAR de 196427.

Na redação do CooJornal, portanto, Dedé pisava em solo favorável a quem discordava do falso IPM sobre a morte de Vlado. Na redação bem mais ampla da Zero Hora, Pedro Maciel transitou por terreno mais delicado. A direção do jornal estava, desde 1970, sob o comando de Lauro Schirmer, um moderado e bem-humorado profissional que, na década de 1950, flertou com a política como candidato frustrado a deputado pelo Partido Socialista Brasileiro. No perfil da imprensa que o SNI desenhou em 1978, ele ganhou uma descrição crítica:

 Lauro Schirmer, diretor de redação: (…) antecedentes desabonadores por sua militância no PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO (PCB) e ligações com comunistas. Na direção da gráfica (…) que imprime o jornal ZH, permite a impressão de diversas publicações, entre as quais o COOJORNAL, que se caracterizam pela forte oposição ao governo e ao regime28.

Apesar daquele arreganho com o PSB na juventude, Schirmer comandou a ZH por 20 anos, atravessando incólume e bem-comportado os rigores da ditadura. Em 1976, ele achou prudente não assinar o manifesto dos 1.004, mas seu filho, o fotógrafo Gerson Schirmer, é um dos signatários. 

O secretário de Médici, o ‘comunista’ de Breno

A assinatura mais surpreendente coletada ali por Pedro Maciel foi a do editor-chefe Carlos Fehlberg, que ocupou o posto na redação por 17 anos. Antes de chegar lá, em 1974, foi durante quatro anos o secretário de imprensa no Palácio do Planalto do general Garrastazu Médici, o presidente mais sanguinário do ciclo militar, mentor do DOI-Codi onde acabaria morrendo Vlado, sob tortura, já no governo de seu sucessor, Ernesto Geisel. Cordato e submisso, nunca se soube – nem durante, nem depois da ditadura – de qualquer contrariedade ou manifestação pública de Fehlberg contra a violência da repressão e a prática contumaz da censura à imprensa. O primeiro e talvez único gesto de calculada dissidência, com certeza, foi o manifesto que Pedro Maciel lhe apresentou. Apesar de seu passado submisso e silente diante da ditadura, louve-se, ele ousou firmar em 1976 o abaixo-assinado que reafirmava a tortura e a violência que levou à morte de Vlado no DOI-CODI paulista. Fehlberg garantiu, assim, seu surpreendente e digno lugar entre os 1.004 jornalistas inconformados com a farsa do IPM. 

Coube a mim percorrer o território mais povoado e hostil da Caldas Júnior e seus três jornais. Escolhi o meio da tarde do início da semana, segunda ou terça, quando a redação está com as editorias a pleno vapor e os repórteres já retornaram da rua. Apesar do expurgo sofrido em 1974, a Folha da Manhã  de 1976 continuava sendo, para o SNI, “um matutino de notícias e reportagens de conteúdo crítico contrário ao governo”, que por meio de “artigos, manchetes sensacionalistas e charges, distorce os fatos e apresentando-os com inverdades ou meia verdades29”. Minha passagem por lá foi rápida e produtiva. 

Na redação ao lado, da Folha da Tarde, a colheita foi mais árdua. Para o SNI, era um “vespertino de linha apolítica”, que “usa de linguagem moderada e imparcial nos seus artigos” e “não faz oposição ao governo”. O diretor de redação, Edmundo Soares, era definido pelo SNI como “sem antecedentes”, o que devia ser elogioso e confortável para a ditadura. O número 2 do jornal, o secretário de redação da FT, Adil Borges Fortes da Silva, mereceu esse perfil do SNI:

Elemento integrado ao Regime Revolucionário de 31 MAR 1964; anticomunista; (…) combate as organizações ‘esquerdistas’ e/ou oposição ao Regime. Ao mesmo tempo, faz propaganda do governo e de suas obras30.

Adil, na verdade, encarnava o jornalista-símbolo que a ditadura idealizava: integrado ao regime, anticomunista, antibrizolista, inimigo das oposições e ainda propagandista do governo dos generais. Além da mão-de-ferro sobre a redação, a partir de 1962 Adil passou a assinar uma coluna sob o pseudônimo de ‘Hilário Honório’, personagem oculta por onde o colunista regurgitava todo o seu antibrizolismo e deixava escorrer toda a sua aversão ao comunismo.  

Enfurecido, o então governador Leonel Brizola dizia que tinha ‘perdigueiros’ no jornal que lhe revelaram a verdadeira identidade de HH. Dias depois, o desmascarado Adil colocou a imagem de um cão no cabeçalho da coluna e deu a ela o título de ‘Perdigueiro, por HH’. A coluna sobreviveu 22 anos, até 1984, véspera da queda da ditadura, o osso autoritário a que Adil Borges Fortes se atracou com a fúria de um cão esfomeado.

Como manda o protocolo, procurei o diretor e o secretário de redação da FT, em primeiro lugar, para colher suas assinaturas. Como previa, nem Edmundo Soares nem Adil Borges Fortes concordaram com o abaixo-assinado, e recusaram educadamente meu convite. Mas a base da redação, na sua maioria, apoiou o manifesto. 

Chegou então a vez do carro-chefe da Caldas Jr., o Correio do Povo, o centenário e conservador jornal gaúcho, uma versão sulista do Estadão. A redação, com móveis pesados de madeira escura, combinava com a maioria dos jornalistas, já veteranos, muitos com suas cabeleiras amadurecendo do grisalho para o branco. Não procurei inicialmente nenhum deles. 

Fui direto a uma figura destoante da redação, que ocupava uma mesa à esquerda da porta de entrada, fincada em um estrado de madeira de uns 10 cm que a colocava num patamar superior em relação ao vetusto cenário de editores e redatores. Era ocupado por um jovem que tinha a minha idade e a mesma aparência: 24 anos, cabeludo e barbudo. Nessa condição, era identificado aos sussurros pela provecta redação do Correio do Povo como ‘comunista’.

O improvável Edgar Lisboa era muito mais do que sugeria sua imagem iconoclasta. Era o homem, ou jovem, de confiança extrema do dono da Caldas Júnior, o ‘doutor’ Breno Caldas – o mesmo tratamento reverencial dedicado ao ‘doutor’ Roberto Marinho por seus companheiros de O Globo. No papel, Lisboa tinha o mero título de editor de Coluna, mas na prática era uma espécie de diretor-assistente do dr. Breno, que tinha um gabinete fechado, com porta de vidro, logo atrás da mesa dominante de Lisboa. Ninguém alcançava a sala de Breno Caldas sem passar por ele, ou por sua aprovação. 

O jovem, um perfeito intruso naquele ambiente ancestral e solene, era o faz-tudo do dono, a figura mais poderosa do jornal – só abaixo de Breno e seu filho, Francisco Antônio Caldas. Lisboa, para minha alegria, foi o primeiro a assinar o manifesto na redação. Nem ousei tentar o mesmo com o dr. Breno, porque entendi que este era um abaixo-assinado de jornalistas, não de patrões.

Com a bênção de Lisboa, comecei a percorrer a redação. Pela hierarquia, fui direto à mesa do chefe de redação. Então com 62 anos, Adail Borges Fortes da Silva ocupou aquela cadeira por espantosos 39 anos. No perfil traçado pelo SNI, Adail era apresentado como “integrante do Diretório Nacional da Liga de Defesa Nacional/RS (…) comprometido com os ideais da revolução de MAR 196431”. E era o irmão mais velho de Adil Borges Fortes da Silva, o ranzinza  ‘Hilário Honório’ da Folha da Tarde, a cara mais reacionária e radical da família. 

Apesar do parentesco e da ficha, Adail foi extremamente simpático e assinou, sem qualquer contestação, o manifesto contra o IPM de Vlado. O seu gesto de assentimento abriu uma clareira de aceitação no Correio, onde minha tarefa se mostrou muito mais fácil do que parecia – após as assinaturas pioneiras de Lisboa e de Adail. 

A causa e o sorriso do poeta

Acerquei-me então de uma mesa sem máquina de escrever, ocupada por um redator de 69 anos, trajando um burocrático terno e gravata de tons escuros. Pernas cruzadas, tinha o olhar perdido nos círculos de fumaça que ele desenhava com o cigarro e que se dissolvam lentamente no ar. Minha chegada o tirou de suas divagações e, sem descruzar as pernas, abriu um sorriso doce, acolhedor, que dissolveu meus receios. Eu estava diante de um dos maiores poetas do país, Mário Quintana, de uma nobre linhagem que incluía Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes.  

Desde 1953, aos 47 anos, Quintana editava a página literária de todo sábado no Correio do Povo, onde brilhava o seu lendário ‘Caderno H’, uma sucessão de epigramas construídos com sutileza, ironia e graça. Além de sua página semanal, ele copidescava o texto dos repórteres, fazia títulos e traduzia telegramas das agências de notícias. Tradução era sua praia: fluente em francês e inglês, verteu mais de 130 obras da literatura universal, incluindo Proust, Balzac, Voltaire, Virginia Woolf e Saint-Exupéry.

Quem imagina que ser poeta é uma condição inescapável de nefelibata não deve estar pensando em Mário Quintana, que nem gostava de ser chamado assim: “Poeta não é profissão. É um estado de espírito, ou coma. Minha profissão é jornalista. Assim está escrito na minha carteira profissional”, asseverou ele. E para quem acha que poesia é a fronteira da abstração, Quintana completou: “Eu não entendo nada da questão social/ Eu faço parte dela, simplesmente…” Na ditadura do AI-5, o poeta se deparou com a censura, quando viu sua editora desistir de publicar o primeiro livro infantil – Pé de Pilão – ao tremer diante dessa frase ameaçadora: “O soldado é um cavalo montado noutro cavalo”. Ao votar na eleição de 1989, a primeira para presidente em três décadas, Quintana quebrou a discrição e, veemente aos 83 anos, abriu seu voto com um verso profético: “Esse Collor tem olho de louco. Vai acabar com todos os marajás e só vai sobrar ele”32.

O doce Quintana pegou o abaixo-assinado do IPM, leu rapidamente a introdução do texto que contestava o Exército, alargou ainda mais o seu sorriso, em mudo mas eloquente atestado de concordância, assinou e me devolveu. Sempre sorrindo, sem dizer nada. Nem precisava. 

Nessa jornada de apenas dois dias pelas maiores redações de Porto Alegre, cumprindo a honrosa pauta de Audálio Dantas, nós conseguimos 139 assinaturas – quase 30% das 467 publicadas originalmente na edição do Unidade, o jornal do Sindicato de São Paulo. Um número espantoso que nos encheu de orgulho.  

Mas, a assinatura que mais me emocionou foi a do poeta sempre jovem e quase septuagenário.

Quintana disse uma vez: “Uma boa causa não salva um mau poeta”.

A boa causa pela verdade sobre a morte de Vladimir Herzog ganhou, com Mário Quintana, a força e a perenidade do poeta imortal. 

* Luiz Cláudio Cunha, chefe da sucursal de Veja em Porto Alegre, tinha 24 anos em dezembro de 1975, quando recebeu de Audálio Dantas a tarefa de coordenar a coleta de assinaturas no Sul para o manifesto contra o IPM do ‘suicídio’ de Herzog.

8/12/2020.

Notas de rodapé

1. DANTAS, Audálio. As duas guerras de Vlado Herzog. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 268.

2. DANTAS, op. cit., p. 261-262.

3. O que para o general Ernesto Geisel era um ‘probleminha’, para o capitão Jair Bolsonaro não passava de uma fatalidade. Entrevistado na RedeTV na campanha de 2018, ele afirmou sobre a morte de Vlado: “Suicídio acontece. O pessoal pratica suicídio”. Nem mesmo o jornalista e astrólogo Olavo de Carvalho, guru de Bolsonaro, teve essa indulgência. Surpreendentemente, ele é um dos 1.004 signatários do manifesto de 1976 que duvida do ‘suicídio’ de Herzog.

4. D’ARAUJO, Maria Celina. CASTRO, Celso (orgs.). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 371.

5. Assis Chateaubriand, o dono dos Diários Associados, então a maior cadeia de imprensa do país, era mais poderoso que Roberto Marinho do Sistema Globo, florescido depois do golpe. No início da década de 1950, Chateaubriand foi citado pelo The New York Times como o ‘Cidadão Kane brasileiro’, versão tupiniquim do magnata americano William Randolph Hearst, que inspirou o filme clássico de Orson Welles. O americano não era páreo para o brasileiro. Diante dos 28 jornais e 18 revistas de Hearst, Chateaubriand ostentava um rosário midiático de 34 jornais, 36 emissoras de rádio e 18 de TV integrantes da rede Tupi, além da revista O Cruzeiro (a maior tiragem do país, 700 mil exemplares no auge dos anos 50).

6. MOTTA, Cézar. Até a última página. Uma história do Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018, p.133-134.

7. Na madrugada de 2 de abril, Jango ainda estava em Porto Alegre, discutindo a reação ao golpe, que não aconteceu. A falcatrua histórica só foi corrigida pelo Congresso 50 anos depois, em novembro de 2013, quando aprovou resolução dos senadores Pedro Simon (PMDB) e Randolfe Rodrigues (PSOL) revogando o conluio de militares e parlamentares que votaram apressadamente a vacância da presidência quando Jango ainda se encontrava em solo brasileiro. Assim, foi devolvido simbolicamente o mandato usurpado a Jango, rebaixando o general Castelo Branco à condição rasa de comandante golpista. 

8. MOTTA, op. cit., p. 136. 

9. CUNHA, Luiz Cláudio. “Máximas e mínimas: os ventos errantes da mídia na tormenta de 1964”. Capítulo de Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e memória. Org.: Enrique Serra Padrós, Vânia M.Barbosa, Vanessa Albertinence Lopez e Ananda Simões Fernandes. Porto Alegre: Corag, 2009, v. 1, p.179-222.

10. VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

11. Audálio Dantas. “50 anos do golpe de 1964”. Estudos Avançados, USP, SP, vol. 28, nº 80, jan/abril 2014. Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142014000100007. Acesso em 24nov2020.

12. Carlos Eugênio Paz. Entrevista a Rodrigo Vianna. Blog Escrevinhador, 17 abr. 2009. Acesso em: 19set2009.

13. KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo, 2004. Aggio, que nega a acusação, contestou sem sucesso a autora na Justiça.

14. DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis, RJ: ed. Vozes, 1981, p. 103.

15. DREIFUSS, op. cit., p. 188.

16. Ênio Pesce é um dos 1.004 signatários do manifesto de 1976 contra o IPM de Herzog.

17. DREIFUSS, op. cit., p. 188.

18. BARROS, Jefferson. Golpe mata jornal. Desafios de um tabloide popular numa sociedade conservadora. Porto Alegre: JÁ, 1999, p. 156.

19. BARROS, op. cit., p. 158.

20. DREIFUSS, op.cit., p. 233.

21. PINHEIRO MACHADO, José Antônio. Breno Caldas. Meio século de Correio do Povo. Glória e agonia de um grande jornal. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 72.

22. GALVANI, Walter. Um século de poder: os bastidores da Caldas Júnior. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995, p. 411.

23. PINHEIRO MACHADO, op.cit., p.78.

24. Os detalhes do relatório de cinco páginas da Informação nº 26, enviado à Agência Central do SNI em Brasília em 20/nov/1978, sob o título ‘Acompanhamento da Atuação da Imprensa no RS – 4.3.5”, produzido pelo 119 APA (Agência Porto Alegre do SNI), o setor do campo interno encarregado da subversão, estão publicados no meu livro Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (Porto Alegre: L&PM, 2008), nas páginas 288-293.

25. CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios, op. cit., p. 290.

26. GUIMARÃES, Rafael; CENTENO, Ayrton; BONES, Elmar. CooJORNAL: um jornal de jornalistas sob o regime militar. Porto Alegre: Libretos, 2011, p. 17.

27. CUNHA, op.cit., p. 293.

28. CUNHA, op.cit., p. 292.

29. CUNHA, op. cit., p. 289.

30. CUNHA, op. cit., p. 291.

31. Informação nº 26, Agência Porto Alegre/SNI, de 20/nov/1978, apud CUNHA, op. cit., p. 291.

32. CUNHA, Luiz Cláudio. “A glória do texto: Mário Quintana”. In Vintenário: duas décadas da IMPRENSA em revista. São Paulo: Imprensa Editorial, 2007. Revista IMPRENSA, dezembro de 1990, ano IV, nº 40, p. 334-337.

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