Ação nos Complexos da Penha e do Alemão, que deixou mais de uma centena de mortos, é um dos episódios com mais violações de direitos humanos da história do país
O Instituto Vladimir Herzog vem a público repudiar de forma contundente a operação conjunta da Polícia Civil e Militar do estado do RJ realizada no dia 28 de outubro de 2025, no conjunto de favelas conhecido como “Complexo da Penha” e “Complexo do Alemão”, na Zona Norte do Rio de Janeiro/RJ.
Essa ação resultou em mais um capítulo do genocídio do povo pobre, promovido pela violência de Estado, com até o momento, ao menos 130 vítimas civis, incluindo quatro policiais. Uma cifra que tende a aumentar.
Também manifestamos nosso mais profundo sentimento e solidariedade a todos os familiares e moradores das periferias, vítimas de mais um episódio de violência policial, bem como aos familiares das vítimas deste episódio.
É lamentável que, mais uma vez, tenhamos que denunciar a continuidade de uma política de (in)segurança que transforma territórios populares em campos de guerra e corpos negros e periféricos em alvos. Esta é a quinta chacina policial no estado do Rio de Janeiro apenas nos últimos 4 anos. Não se trata de uma tragédia, mas de uma escolha política sustentada por décadas de racismo estrutural e naturalização da morte.
A cada nova operação como essa, as vidas nas favelas são violentamente interrompidas: escolas são fechadas, serviços de saúde são suspensos, crianças e jovens têm seus direitos negados e comunidades inteiras seguirão vivendo sob o trauma e o medo, decorrentes da continuidade da militarização nos territórios.
O Instituto Vladimir Herzog reitera o conteúdo e a importância da ADPF 635 (ADPF das Favelas), que estabelece parâmetros constitucionais para o uso da força e o planejamento de operações policiais no Rio de Janeiro. É urgente que o ministro Alexandre de Moraes cobre o cumprimento integral da decisão do Supremo Tribunal Federal, garantindo que as operações sejam objeto de controle, transparência e investigação autônoma. Dessa forma, o IVH se soma às organizações de direitos humanos que atuam como amicus curiae na ADPF, reafirmando que o STF não pode permanecer silente diante do descumprimento sistemático de suas determinações.
Igualmente, o IVH se coloca contra à articulação que defende o uso da GLO (Garantia da Lei e da Ordem). Um grupo que, vale destacar, reúne setores contrários à PEC da Segurança Pública – como o próprio estado do Rio de Janeiro que, neste momento, de maneira cínica, tenta transferir a responsabilidade pela chacina que promove – e defende.
O Instituto é contrário à aplicação da GLO. É evidente o que a história tem nos revelado: tal medida não apenas reforça a confusão histórica entre as funções de Defesa e Segurança Pública no Brasil, mas também coloca em risco a garantia dos direitos humanos. Pedir o uso das Forças Armadas em atividades de policiamento aprofunda a crise de identidade das instituições militares e reitera a lógica do “inimigo interno”, que há décadas legitima a repressão e extermínio das populações negras, periféricas e indígenas. Essa medida simbólica e ineficaz, desvia os militares de sua função constitucional, desperdiça recursos públicos e mantém viva a crença autoritária de que a força é um instrumento de gestão social.
Preocupa também o uso indiscriminado do termo “narcoterrorismo” por parte do governo do Estado e de veículos da imprensa. Essa rotulação generaliza, criminaliza e legitima a violência de Estado sob o discurso de combate ao crime, reproduzindo a mesma lógica xenofóbica que, em outras partes do mundo, busca transformar populações marginalizadas em inimigos a serem eliminados.
É papel da perícia nesse momento, tal como determina a própria ADPF 635, verificar os fatos de forma técnica e comprometida com os direitos humanos, sem que narrativas políticas sejam impostas sobre as vítimas. Nesse sentido, exigimos das autoridades a imediata identificação de todas as pessoas e a garantia de que as perícias sejam realizadas sob acompanhamento de órgãos independentes, ação imprescindível à defesa dos direitos humanos e das garantias jurídicas fundamentais. É inaceitável que o governo do Rio de Janeiro, neste momento, realize uma verdadeira disputa política sobre corpos, enquanto, escancaradamente, viola princípios constitucionais e perpetua a desigualdade e o genocídio.
O Instituto Vladimir Herzog alerta ainda para a urgência de uma revisão profunda das políticas de segurança no país, na promoção da justiça e na valorização da vida, e reafirma o compromisso histórico com a luta por memória, verdade e justiça e com a construção de um país em que as forças de segurança e inteligência enfrentem o crime de maneira efetiva. Não a partir de violações e violência, mas com a garantia da dignidade humana.