Em primeiro balanço sobre as 29 recomendações feitas no relatório final da Comissão da Verdade, ministra Ideli Salvatti, de Direitos Humanos, diz que governo já está começou a implementar 12
Por Roldão Arruda, de O Estado de S. Paulo
Passados quase dois meses da entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade à presidente Dilma Rousseff, não há registro de nenhuma nova iniciativa do governo federal para a implementação das recomendações feitas no documento. O documento fez 29 recomendações, destinadas ao aprimoramento dos mecanismos de defesa dos direitos humanos no País. Isso não significa, porém, que as recomendações tenham sido esquecidas. É o que diz a ministra Ideli Salvatti, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Ao fazer um balanço do relatório, ela afirmou que 12 recomendações já estariam sendo atendidas – por meio de iniciativas tomadas antes da divulgação do relatório e que envolvem sobretudo a Secretaria de Direitos Humanos. Quanto ao andamento das outras 17, Ideli disse que dependem de acertos com os demais ministérios e também com outros poderes (Legislativo, Judiciário, governos estaduais e municipais).
Ela citou como exemplos de recomendações cuja execução não depende da Secretaria de Direitos Humanos as que tratam da revogação da Lei de Segurança Nacional (depende do Congresso) e da mudança dos nomes de logradouros públicos que homenageiam personalidades ligadas à ditadura (na maioria dos casos são logradouros municipais e estaduais).
Entre as recomendações que já estariam sendo atendidas, mencionou a prevenção e o combate à tortura; e o esforço para a localização e a entrega às famílias dos restos mortais de desaparecidos políticos.
Como governo vai tratar a implementação das recomendações do relatório?
O encaminhamento das 29 recomendações é uma questão de governo, mas não depende apenas de um ministério. Várias questões só podem ir adiante por meio de ações intersetoriais, envolvendo mais de um ministério e também outros poderes, como o Legislativo e o Judiciário. Na Secretaria de Direitos Humanos estamos a postos, ativos, para operar naquilo que depender de decisão política e encaminhamento.
O que já foi feito?
Estamos atuando em boa parte das recomendações e temos previsão de atuar em outras. Pelo balanço que fiz, 12 recomendações já estão em andamento.
Pode citar algumas?
A comissão recomendou, por exemplo, a retificação da causa de morte de pessoas que morreram em decorrência de graves violações de direitos. Nós já tivemos casos de retificação. A maioria ocorreu por determinação judicial, mas nós já concluímos um debate sobre o assunto na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos e temos pronta uma minuta de portaria que irá facilitar a alteração. Já vínhamos trabalhando nisso antes da recomendação do relatório.
Outro exemplo é a questão da prevenção e combate à tortura. Nós já instalamos o comitê nacional de prevenção e combate à tortura. Também fizemos o processo de seleção dos peritos que vão integrar o mecanismo e entrar nos estabelecimentos de privação de liberdade.
Quando deve entrar em operação?
No final de fevereiro poderemos ter a nomeação dos integrantes do mecanismo. Essa recomendação já está praticamente acatada. Falta criar e implementar os mecanismos nos Estados. Alguns já têm, outros estão com projetos nas assembleias.
O que não depende só da pasta de Direitos Humanos?
Posso citar de imediato três recomendações: a primeira é a que trata da revogação da Lei de Segurança Nacional; a segunda é sobre o aperfeiçoamento da legislação brasileira para tipificação das figuras penais correspondentes aos crimes de lesa humanidade; e a terceira, sobre a desmilitarização das polícias estaduais. Existem vários projetos de lei sobre essas três questões tramitando no Congresso. A gente acompanha, participa do debate, atua para que sejam aprovados.
E a questão da eliminação da figura do auto de resistência à prisão, que, segundo organizações de direitos humanos, seria usada para justificar execuções?
Isso envolve uma alteração da legislação processual. O Projeto de Lei 417, que está tramitando na Câmara, trata dessa questão. Também está sendo discutida no Legislativo a recomendação sobre a introdução da audiência de custódia (destina-se sobretudo a garantir a integridade física do prisioneiro). No ano passado acompanhamos de perto e jogamos peso nos debates dessas questões. Fizemos reuniões com os presidentes da Câmara e do Senado, falamos com os parlamentares e com os artistas envolvidos nessa batalha.
O que mais está sendo atendido?
A recomendação sobre garantia de atendimento médico e psicossocial permanente às vítimas de graves violações de direitos humanos.
Isso está sendo conduzido pela Comissão da Anistia, ligada ao Ministério da Justiça, não é?
Sim. A comissão tem o trabalho das clínicas do testemunho, para o acompanhamento das vítimas. Agora existe uma proposta de ampliação do trabalho, com a participação da Secretaria de Direitos Humanos. Outras duas recomendações já atendidas são as que tratam da memória das graves violações de direitos humanos e da promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos na educação.
A coisa mais importante que fizemos nessa área, por meio de uma parceria com o Instituto Vladimir Herzog e o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), foi o portal Memórias da Ditadura, que tem como objetivo a divulgação da história do País no período da ditadura, com um viés pedagógico. Além de colocar à disposição dos interessados um bom material sobre a época, o portal contém orientações para os professores e atividades pedagógicas.
Entre as questões não resolvidas do período da ditadura, uma das mais graves é a da localização e identificação dos restos mortais de pessoas desaparecidas.
No ano passado nós retomamos, de uma vez por todas, o trabalho de identificação das ossadas que foram encontradas no Cemitério de Perus (acredita-se que os restos mortais de quase uma dezena de desaparecidos políticos possam estar entre elas). Vamos continuar o trabalho neste ano. Também estão sendo realizados trabalhos de identificação de ossadas encontradas no Rio.
E quanto ao grupo de trabalho que procura os restos mortais dos guerrilheiros desaparecidos na região do Araguaia, no Pará?
Ali tem uma dificuldade maior – por causa da judicialização da questão (as buscas são realizadas por determinação da Justiça Federal, seguindo recomendações feitas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos). Existe uma determinação judicial, por exemplo, para que sejam feitas expedições nesta época do ano, o que não é aconselhável, pois estamos em plena época de chuvas no Araguaia. Não se encontra nada por lá. Só barro. Mas isso não está dentro das nossas prerrogativas.
A seguir, uma apresentação resumida das 29 recomendações citadas na entrevista. As que aparecem em negrito são as que começaram a ser atendidas ou estão sendo debatidas, segundo o balanço da ministra:
1- Reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964 a 1985);
2- Determinação da responsabilidade jurídica (criminal, civil e administrativa) dos agentes públicos que causaram graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado;
3- Proposição, pela administração pública, de medidas administrativas e judiciais contra agentes públicos autores de atos que geraram a condenação do Estado em decorrência da prática de graves violações de direitos humanos;
4- Proibição da realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964;
5- Reformulação dos concursos de ingresso e dos processos de avaliação contínua nas Forças Armadas e na área de segurança pública, para valorizar o conhecimento sobre os preceitos inerentes à democracia e aos direitos humanos;
6- Modificação do conteúdo curricular das academias militares e policiais, para promoção da democracia e dos direitos humanos;
7- Retificação da causa de morte a pessoas mortas em decorrência de graves violações de direitos humanos;
8- Retificação de informações na Rede de Integração Nacional de Informações de Segurança Pública, Justiça e Fiscalização (Rede Infoseg) e, de forma geral, nos registros públicos;
9- Criação de mecanismos de prevenção e combate à tortura;
10- Desvinculação dos institutos médicos legais e órgãos de perícia criminal, das secretarias de segurança pública e das polícias civis;
11- Fortalecimento das Defensorias Públicas;
12- Dignificação do sistema prisional e do tratamento dado ao preso;
13- Instituição legal de ouvidorias externas no sistema penitenciário e nos órgãos a ele relacionados;
14- Fortalecimento de Conselhos da Comunidade para acompanhamento dos estabelecimentos penais;
15- Garantia de atendimento médico e psicossocial permanente às vítimas de graves violações de direitos humanos;
16- Promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos na educação;
17- Apoio à instituição e ao funcionamento de órgão de proteção e promoção dos direitos humanos;
18- Revogação da Lei de Segurança Nacional;
19- Aperfeiçoamento da legislação brasileira para tipificação das figuras penais correspondentes aos crimes contra a humanidade e ao crime de desaparecimento forçado;
20- Desmilitarização das polícias militares estaduais;
21- Extinção da Justiça Militar estadual;
22- Exclusão de civis da jurisdição da Justiça Militar federal;
23- Supressão, na legislação, de referências discriminatórias das homossexualidades;
24- Alteração da legislação processual penal para eliminação da figura do auto de resistência à prisão;
25- Introdução da audiência de custódia, para prevenção da prática da tortura e de prisão ilegal;
26- Estabelecimento de órgão permanente com atribuição de dar seguimento às ações e recomendações da CNV;
27- Prosseguimento das atividades voltadas à localização, identificação e entrega aos familiares ou pessoas legitimadas, para sepultamento digno, dos restos mortais dos desaparecidos políticos;
28- Preservação da memória das graves violações de direitos humanos;
29- Prosseguimento e fortalecimento da política de localização e abertura dos arquivos da ditadura militar.