O crime do século
A Fiquem Sabendo e o Instituto Vladimir Herzog (IVH) obtiveram com exclusividade a íntegra do processo militar que narra uma série de crimes cometidos por 8 militares do Exército e dois civis contra quinze soldados. Os fatos aconteceram no quartel do 1° BIB, em Barra Mansa (RJ), no início dos anos 1970. A íntegra do processo, com todos os detalhes da sessões de tortura a quem foram submetidos os soldados, permaneceu inacessível por 50 anos. A primeira investigação do documento resultou na reportagem “O crime do século”, publicada nesta sexta-feira, 7, na edição de outubro da revista piauí.
A cientista política Glenda Mezarobba, autora da reportagem e conselheira do instituto, observa que, até onde se tem conhecimento, o processo n° 17/72 constitui o único caso em que militares foram condenados em última instância por graves violações de direitos humanos ocorridas durante os 21 anos de arbítrio no Brasil. O processo resultou na condenação, durante a ditadura militar (1964-1985), dos 8 integrantes do Exército e dos 2 civis acusados dos crimes.
O inquérito relata que militares torturaram 15 soldados com palmatórias, canos, prensa e choques elétricos, entre outros instrumentos de suplício. O pretexto para a tortura foi uma investigação sobre o uso e tráfico de drogas (maconha) dentro no quartel.
Os militares foram acusados dos seguintes crimes: homicídio qualificado, lesão grave, dano, inutilização e sonegação de material probante, ofensa aviltante a inferior e abandono de pessoa. As graves violações de direitos humanos foram perpetradas em dependências das Forças Armadas contra jovens de 19 anos, em sua maioria, e resultaram na morte de quatro deles.
“Apesar de breves notícias sobre o crime e o julgamento dos acusados terem sido divulgadas aqui e ali, nos anos 70 e, mais recentemente, durante os trabalhos da Comissão da Verdade do Estado do Rio, a íntegra do processo n° 17/72 envolvendo os fatos ocorridos no batalhão de Barra Mansa permanecia desconhecida”, observa a cientista política, que também é especialista em como os Estados lidam com legados de graves violações de direitos humanos.
As cerca de 2,3 mil páginas de documentos reunidas em cinco volumes trazem relatos de sobreviventes, testemunhas e dos próprios acusados sobre os crimes cometidos.
Acesse aqui a íntegra do processo militar
Ação pela transparência
A necessidade de acessar o documento partiu do IVH. “Ao propiciar o acesso a esse conjunto de documentos, a expertise da agência Fiquem Sabendo contribui não apenas para aprofundar o entendimento sobre a atuação da máquina repressiva, mas para evidenciar o conhecimento que as Forças Armadas tinham da prática de tortura, algo ainda não reconhecido oficialmente pelos militares”, afirma a pesquisadora.
Rogério Sottili, diretor executivo do Instituto Vladimir Herzog, encara a publicação da reportagem como um chamamento de reflexão sobre a herança de crueldade produzida pela ditadura militar, por meio de suas práticas de tortura:
“As vítimas deste regime nunca foram apenas uma parcela da sociedade, os militantes. A vítima foi a própria sociedade brasileira”.
No entendimento dele, a denúncia contribui para o reconhecimento do passado violento, para que assim o Estado pare de produzir mais violência. “O Estado brasileiro é cruel e ainda há tortura no país porque nunca enfrentamos esse passado”, finaliza.
O processo se tornou público com um requerimento protocolado pelo diretor de advocacy e cofundador da Fiquem Sabendo Bruno Morassuti.
“O fornecimento dos documentos dos processos judiciais pelo STM sem qualquer tipo de restrição nessas informações representa um exemplo importante para fins de transparência do Poder Judiciário e mostra interesse em cumprir a LAI mesmo com informações que poderiam ser consideradas sensíveis“, diz.
A parceria, coordenada pela cofundadora e diretora-executiva da FS Maria Vitória Ramos, “consolida nosso esforço de usar as ferramentas de transparência também para trazer novos elementos para a pesquisa histórica. O IVH sabe o que é importante buscar e nós podemos contribuir encurtando o caminho do acesso a informações públicas”.