Por Gabriela Teixeira
Desde 2019, após uma reforma, a redação de jornalismo da TV Cultura leva o nome de Vladimir Herzog. Composta por 85 pessoas, além da área técnica, ela produz três telejornais e nove programas semanais. Já uma equipe mais enxuta é responsável por conteúdos sazonais, além de especiais e documentários, como Eles Matam Mulheres, vencedor na categoria Produção Jornalística em Vídeo do 43º Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos.
“A memória de Vlado esteve sempre associada à TV Cultura, dentro e fora. Todos os dias entramos no local de trabalho depois de passar pela placa que nos lembra dele. Só posso sonhar que sua memória seja eterna”, diz Leão Serva, diretor de jornalismo da emissora.
Vlado começou sua trajetória na Fundação Padre Anchieta em 1973, após ser recrutado por Fernando Pacheco Jordão. No cargo de secretário de redação do Hora da Notícia, era dele a função de editar o telejornal para que este fosse ao ar. Por exibir matérias que expunham os problemas sociais brasileiros, o programa incomodava o governo e, por pressões externas, a equipe de jornalismo que o produzia foi dissolvida.
Contudo, não demorou muito para que Vlado retornasse à TV Cultura, desta vez para assumir a direção de jornalismo da emissora. Como relata o próprio Pacheco Jordão no Dossiê Herzog, antes de assumir o posto em 1975, Vlado apresentou um plano de reestruturação da programação do canal, para que ele passasse a ter utilidade social e ser de interesse público. “Fazer Jornalismo para ele, era informar e discutir sua época, e nisso empenhava toda a sua integridade e honestidade profissional”, diz trecho do livro.
Um dos pontos do projeto apontava a necessidade do jornalismo ser instrumento de diálogo, espelhando os problemas, esperanças, tristezas e angústias de seu público. Outro destacava que mesmo um jornal de uma emissora do governo poderia ser um bom jornal, desde que não adotasse uma atitude servil.
O jornalista e consultor de comunicação Gabriel Priolli reforça essa visão. Em 1975, ele cursava jornalismo na Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) e dava seus primeiros passos profissionais como estagiário na TV Cultura. Assim, Vlado foi, durante dois meses, seu professor e chefe ao mesmo tempo. Questionado sobre suas impressões a respeito do jornalista, Priolli o descreve como um cara jovem e cheio de sonhos, cujo olhar de cineasta se encaixava perfeitamente com o formato de cinejornalismo do telejornal da emissora. “Falávamos dos problemas sociais na medida que era possível sob uma ditadura e sob a forte censura”, lembra.
Mas a insatisfação dos militares sobre o trabalho da equipe não tardou a se manifestar. Já em seu primeiro dia como diretor de jornalismo da emissora, um minidocumentário sobre o Vietnã editado pela antiga equipe foi ao ar no telejornal do meio-dia, gerando reclamações. Vlado até tentou minimizar a crise cortando a matéria do jornal noturno, mas já era tarde e, ainda que ele não fosse o responsável pela exibição, seu nome ficou marcado entre os agentes da ditadura e seus apoiadores. Cláudio Marques, jornalista alinhado ao governo, chegou a cunhar o termo “TV VietCultura” para se referir à emissora em suas colunas.
Em meio a uma caça às bruxas que tinha como alvo comunistas infiltrados nas redações, o novo cargo de Vlado também veio acompanhado de pressões internas e externas para que ele fizesse cortes em sua equipe, as quais resistiu o quanto pôde até o final. Priolli recorda que o clima de tensão na redação era palpável na semana em que Vlado foi assassinado. Na noite de 24 de outubro, uma sexta-feira, o jornalista o chamou à sua sala e lhe pediu que devolvesse aos colegas da faculdade as correções de uma atividade. Durante a conversa, chegou a admitir que sabia que poderia ser preso a qualquer momento. Foi a última vez que Priolli o viu. Na manhã do dia seguinte, Vlado saiu de casa para prestar depoimento no DOI-Codi, de onde não retornou com vida.
Alheio ao que acontecia no mundo enquanto passava o final de semana em Ilhabela, Priolli só soube do assassinato do professor na segunda-feira, ao chegar na ECA e se deparar com uma faixa que denunciava o crime. Imediatamente se dirigiu à TV Cultura, onde encontrou o que chama de “uma redação de acéfalos”. “Os chefes que não estavam presos, estavam mortos. E nós precisávamos continuar trabalhando. Mas não noticiamos a morte de Vlado. Nos recusamos a contar a narrativa falsa do suicídio”, diz.
Leão Serva, que anos depois viria a trabalhar como assistente de Priolli, recorda de ler no colégio uma edição especial do jornal EX sobre o assassinato. “Mesmo proibidos e censurados, os exemplares circularam. No Colégio Santa Cruz, onde eu estudava, os alunos liam o jornal no pátio, um sinal de como a informação correu toda a sociedade”.
Para ele, a morte de Vlado foi um trauma nacional que forçou a sociedade civil a entender que era impossível a vida sob a ditadura. “Ficou claro que não havia saída fora da democracia, a ditadura começou a morrer naquele dia. O enterro levou alguns anos mais, mas quem carregou o caixão foram apenas seus asseclas mais empedernidos.”
Apesar do breve tempo de convivência e das décadas passadas desde então, Priolli guarda com carinho as memórias que tem de Vlado. “Ele foi um mártir da democracia, mas eu gosto de lembrar dele como quem ele foi em vida, quem ele gostaria de ter sido: um cineasta do real”, finaliza.
Este texto faz parte da campanha “85 anos Vladimir Herzog: espaços de memória”. Pensada para celebrar a vida e a obra de Vlado, a ação enaltece lugares de memória que levam seu nome na capital paulista. A campanha, que recebe apoio do Itaú Cultural, também convida o público a conhecer mais sobre Vlado no Acervo Vladimir Herzog e inicia um mapeamento dos lugares de memória que levam seu nome em todo o Brasil. Se você conhece um lugar/espaço com o nome de Vladimir Herzog, envie as informações para o IVH neste formulário.