Brasil lidera número de assassinatos de diversos grupos de pessoas em 2017, aponta Anistia Internacional em seu relatório anual.
O informe anual “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo” mostra um panorama dos principais avanços e retrocessos no campo dos direitos humanos em 159 países. A versão brasileira traz a íntegra dos cenários regionais e uma seleção de 57 países que possuem vínculos mais estreitos com o Brasil.
O Brasil liderou em 2017 o número de assassinatos de diversos grupos de pessoas: jovens negros do sexo masculino, pessoas LGBTI, defensoras e defensores de direitos humanos, grupos ligados à defesa da terra, populações tradicionais e policiais, aponta a Anistia Internacional em novo relatório.
Em 2016, o Brasil atingiu a marca de mais de 61 mil homicídios. A maioria dos assassinatos documentados de defensores e defensoras de direitos humanos em todo mundo aconteceram no Brasil. Apenas nos nove primeiros meses de 2017, 62 defensores foram assassinados, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a maioria morta em conflitos por terras e recursos naturais. Entre o dia 1º de janeiro e 20 de setembro do último ano, o Grupo Gay da Bahia registrou 277 pessoas LGBTI assassinadas no país, o maior número desde o início da compilação dos dados, em 1980.
A população carcerária atingiu um novo recorde negativo, chegando a 727.000 pessoas presas, sendo que mais de 60% são negras e 40% (cerca de 290.000) estão presas preventivamente. Esse é o cenário apontado no relatório da Anistia Internacional lançado hoje, “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo 2017/2018”.
O capítulo brasileiro aponta violações no sistema prisional, nas ações de segurança pública que não buscam a preservação da vida nas favelas e periferias, afetando principalmente o jovem negro do sexo masculino; identifica o Brasil como um dos países do mundo com o maior número de defensores e defensoras de direitos humanos assassinados e aponta uma série de retrocessos legislativos já aprovados, outros que ameaçam direitos já adquiridos e as vitórias que a mobilização das pessoas conquistou no último ano.
“O que acompanhamos com muita preocupação no último ano é que o Brasil tem liderado o número de assassinatos de diversos grupos: jovens negros do sexo masculino, pessoas LGBTI, defensoras e defensores de direitos humanos, grupos ligados à defesa da terra, população tradicionais e policiais. Temos a polícia que mais mata e que mais morre”, comenta Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional. “Infelizmente o Brasil é o país do mundo onde ocorre o maior número de assassinatos destes grupos. Isso deixa evidente o quanto o Estado tem falhado na preservação da vida, na forma com que as forças de segurança atuam e na responsabilização pelas vidas perdidas ao longo de anos”, completa.
Centenas de propostas diferentes em trâmite no Congresso Nacional buscam retirar direitos humanos já garantidos. Redução da maioridade penal, revogação parcial e total do Estatuto do Desarmamento, restrições ao direito de manifestação pacífica, proibição total do acesso ao aborto, inclusive nos casos já garantidos pela lei, são alguns exemplos dos direitos que estão sendo ameaçados.
“A Lei 13.491/2017, aprovada no ano passado, viola o direito a um julgamento independente e imparcial na medida em que estabelece que violações de direitos humanos, inclusive homicídio ou tentativas de homicídios, cometidas por militares contra civis sejam julgadas por tribunais militares. Polícia civil e exército se esquivam de responsabilização, agravando o quadro de impunidade”, pontua Jurema Werneck.
Enquanto deputados e senadores propõem medidas para levar o país de volta ao passado, aprovando retrocessos legislativos que restringem ou acabam com direitos humanos, movimentos sociais, grupos de jovens, mulheres, povos indígenas e quilombolas estiveram fortemente mobilizados para evitar a perda dos seus direitos. Esses grupos, concluiu o relatório, foram a força motriz de vitórias fundamentais para garantir a proteção dos direitos humanos ao longo do ano.
Rebeliões e o encarceramento massivo no país
Em janeiro de 2017 aconteceram rebeliões em penitenciárias do Amazonas, Roraima, Rio Grande do Norte e Paraíba, resultando em pelo menos 123 mortes. Atualmente, o estado do Rio de Janeiro enfrenta uma situação epidêmica de tuberculose e doenças de pele em suas penitenciárias, que abrigam mais de 50.000 pessoas.
“As características de superlotação e de condições análogas à tortura que estão submetidas as pessoas presas no Brasil são degradantes. E isso se agrava ainda mais com o número de mortes que acontecem constantemente nas penitenciárias. Apenas no primeiro mês de 2017 foram 123 pessoas mortas. O número de presos provisórios ultrapassa 290 mil e a maioria da população nestas condições é de pessoas negras que sofrem com a omissão do estado em todas as esferas sociais”, sinaliza Jurema.
“Neste ano se completaram 25 anos do Massacre no Carandiru, quando 111 pessoas foram assassinadas pela polícia. Ninguém foi sequer responsabilizado por esta brutalidade que completa um quarto de século. Situações como essa alimentam e ampliam o ciclo de impunidade e de incerteza quanto a responsabilização dos agentes do Estado que cometem crimes”, aponta Jurema Werneck.
Além das unidades prisionais superlotadas e abrigando situações análogas à tortura, os adolescentes internados no sistema socioeducativo sofrem com a tortura por agentes do Estado de forma cotidiana, como no caso do estado do Ceará. Entre 2016 e setembro de 2017 foram realizadas formalmente mais de 200 denúncias de tortura. Apenas duas levaram a abertura de inquérito formal para mais investigações.
“A situação dos adolescentes no sistema socioeducativo do Ceará é absurda e inaceitável. Houve visitas do Conselho Nacional de Direitos Humanos e da própria Comissão Interamericana (de Direitos Humanos) e foi constatado que, mesmo após dois anos, não houve avanços significativos em nível estrutural. Há uma falha grave na garantia dos direitos humanos e na preservação da vida destes adolescentes, já que persistem as denúncias sobre torturas, sequestros e assassinatos”, sinaliza Jurema Werneck.
Monitoramento internacional
Em maio de 2017, o Brasil foi sentenciado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela omissão em levar à justiça os responsáveis por 26 homicídios cometidos pela polícia, em outubro de 1994 e maio de 1995, na favela Nova Brasília, no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro.
Pela terceira vez o Brasil passou pelo processo de Revisão Periódica Universal da ONU, onde aceitou 242, das 246 recomendações recebidas. No entanto, a adoção de leis e políticas retrógradas durante o ano causou preocupação sobre a real implementação dessas recomendações.
Brasil registrou 168 homicídios por dia em 2016
O número de homicídios está alcançando patamares cada vez mais altos sem que nenhuma medida estratégica e com real eficácia seja adotada para reduzir esta taxa que se mantém especialmente elevada no caso de jovens negros.
“A política de segurança pública ainda insiste na chamada ‘guerra às drogas’ e na militarização. Sem mudança de estratégia, o resultado continua o mesmo: mortes e violações de direitos humanos em sua maior parte contra a população negra e periférica”, pontua Jurema Werneck.
Os números do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam 61.619 pessoas mortas em 2016. Entre janeiro e setembro de 2017, segundo dados oficiais, 494 pessoas foram mortas por policiais em serviço no estado de São Paulo, entre janeiro e novembro do ano passado foram 1035 pessoas mortas no estado do Rio de Janeiro e 148 no Ceará.
Na região nordeste, o Ceará se destaca pelos casos de ‘homicídios múltiplos’, eventos com mais de três vítimas, ou as chamadas ‘chacinas’, homicídios múltiplos com características de execuções. Nos meses de fevereiro, junho e outubro três casos se destacam em Fortaleza: no bairro Bom Jardim, cinco pessoas foram mortas e três ficaram feridas; no Porto das Dunas, seis homens foram mortos no interior de uma casa por homens armados e encapuzados; e quatro jovens, entre 14 e 20 anos foram mortos dentro de uma casa.
“As execuções extrajudiciais cometidas pela polícia têm atingindo níveis alarmantes. A falta de investigação e responsabilização dos agentes que cometem esse tipo de crime faz com que essas mortes sejam cada vez mais frequentes, alimentando assim um ciclo de violência que coloca em risco além dos moradores, os próprios policiais”.
Assassinato de indígenas e trabalhadores rurais
Entre abril e maio de 2017, ao menos 19 trabalhadores rurais foram mortos nos municípios de Colniza, no Mato Grosso e Pau D’Arco, no Pará. “Estes ataques infelizmente são frequentes, cometidos por pistoleiros a mando de grileiros e madeireiros ilegais, que atuam na região há anos da mesma forma. O Estado já conhece essa realidade e não toma medidas necessárias para mudar esse cenário. Sem titulação e demarcação os conflitos de terra continuarão, bem como o número de mortes”, assinala a diretora executiva da Anistia Internacional, Jurema Werneck.
No caso de Pau D’Arco, a diretora da organização aponta uma dinâmica ainda mais nociva, “Os trabalhadores que estavam na fazenda Santa Lúcia e foram vítimas de tiros, morreram pelas mãos da polícia militar e da polícia civil. Menos de dois meses depois, Rosenildo Pereira de Almeida, um dos líderes dos trabalhadores rurais, foi assassinado à tiros. É preciso garantir responsabilização de quem cometeu estes assassinatos. É igualmente fundamental que seja garantida a proteção aos sobreviventes”, indica Jurema.