20/03/2019

Arrancados da família

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Livro revela que militares sequestraram filhos de guerrilheiros de esquerda no Araguaia durante a ditadura.

Por Jamil Chade, do UOL

Pelas águas do rio Araguaia, parte da história do Brasil no século 20 foi contada. Naquela região distante dos centros urbanos, entre o final da década de 1960 e o inicio dos anos 1970, um movimento guerrilheiro criado pelo Partido Comunista do Brasil se formou com o objetivo de promover uma revolução e derrubar o regime militar.

O grupo armado recebeu o apoio de parte da população local, mas foi considerado uma ameaça à segurança nacional, se tornando alvo de uma ofensiva do governo a partir de 1972. A região entre Maranhão, Pará e Tocantins se transformou então em um palco de operações militares que deram um fim ao projeto dos guerrilheiros. Em 1975, as Forças Armadas receberam uma missão secreta para enterrar na floresta os corpos de guerrilheiros e simpatizantes.

Em 2010, porém, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro no caso da Guerrilha do Araguaia por não ter punido os responsáveis pelas mortes e desaparecimentos. Na sentença de 126 páginas, o tribunal concluiu que o Estado brasileiro fora responsável pelo sumiço de 62 pessoas.

O caso parecia encerrado, mas não estava. Agora, um livro revela outra dimensão daquela operação: o sequestro de crianças. Resultado de um trabalho de anos do pesquisador Eduardo Reina, a obra desenterra revelações sobre um dos momentos de maior violência na história brasileira.

Em “Cativeiro sem Fim”, publicado pelo Instituto Vladimir Herzog e pela Alameda Editorial, Reina conta como bebês, crianças e adolescentes foram sequestrados de famílias de militantes de esquerda ou de pessoas contrárias ao regime. No Araguaia, essa prática teria envolvido 11 menores de idade, filhos de guerrilheiros ou camponeses simpáticos ao movimento contra a ditadura.

Como um butim de guerra, as forças militares se apropriavam dessas vítimas, chamadas de “filhos de subversivos” ou de “bebês malditos”. No Brasil, pela primeira vez, Reina descobriu 19 casos de sequestro de bebês e crianças pela ditadura. Na Argentina, há registro de 500 casos desse crime contra a humanidade.

Reina conta ao UOL que o objetivo de seu trabalho era “dar voz àqueles que foram esquecidos à força, tornados invisíveis pela história e pela mídia”. “[Quis] Contar a verdadeira história da ditadura civil-militar no Brasil, no período 1964-1985, sem filtros ou pendência de narrativa. É mostrar a verdade, a realidade. Mostrar a história de pessoas que foram jogadas no buraco negro da história do Brasil. De pessoas que foram usadas pelas forças militares na ditadura. Mostrar as histórias de pessoas que vivem num cativeiro sem fim”, disse.

O livro levantou com detalhes o caso de 11 crianças ligadas diretamente à Guerrilha do Araguaia, além de outras oito no Rio de Janeiro, em Pernambuco, no Paraná e em Mato Grosso. Com a ajuda de militares, servidores públicos, funcionários de instituições e de cartórios, as vítimas foram entregues a famílias de militares e a pessoas ligadas aos órgãos de repressão. Essas histórias, até agora invisíveis, revelam traços de crueldade e que jamais foram admitidas ou investigadas pelos militares.

Da plantação para o Exército
O camponês Luiz Vieira de Almeida foi morto pelo Exército depois de se juntar aos guerrilheiros no Araguaia. Aos 20 anos, seu filho, José Vieira, trabalhava na roça com plantação de mandioca e feijão. Era visto sempre na companhia do guerrilheiro Piauí, o codinome de Antônio de Pádua Costa, líder do Destacamento A. Depois da morte de pai, José conta que foi levado pelos militares.

José foi encontrado pelo pesquisador em Anapu, no Pará, no meio da rodovia Transamazônica. A cidade é a mesma onde a religiosa Dorothy Stang foi assassinada por pistoleiros. “José Vieira confirmou a história do sequestro dele e de quatro outros filhos de camponeses que aderiram à guerrilha”, relata o pesquisador, dizendo que ainda há uma sexta pessoa sequestrada.

Todos eles eram garotos, entre 12 e 17 anos. José, porém, já tinha 20 anos. Mas, por ser franzino e com um rosto de menino, teve seus documentos alterados pelo “Não sei quantos anos eu tenho”, diz sequestrada.

Algumas das vítimas ainda procuram seus pais biológicos, como é o caso de Rosângela Serra Paraná, que diz ter sido sequestrada ainda bebê. “A filha do próprio general admitiu que minha certidão de nascimento era forjada”, conta. “Hoje, eu não sei a data de meu nascimento, não sei quantos anos eu tenho. Não comemoro mais nada. Busco incessantemente minha mãe, a minha origem, quem eu sou”, conta ela.

Segundo o relato do livro, Rosângela foi sequestrada na década de 1960 e entregue à família de Odyr de Piava Paraná, no Rio de Janeiro. Odyr era de uma família de militares. Seu pai era sargento do Exército e seu tio foi general e diretor-geral do Hospital de Base do Exército em Belém nos anos 1963 e 1964.

Rosângela foi registrada como filha de Odyr e Nilza da Silva Serra e, em sua certidão, consta que nasceu em um imóvel na rua Marques de Abrantes, 160, no Flamengo, no Rio. Uma das testemunhas que assinam a certidão de nascimento, Alcindo, foi funcionário de cartório, assim como Manoel Paraná, integrante da família. O registro aponta como 1963 a data de nascimento. “A família toda fez um pacto de silêncio para não revelar quem são os pais biológicos de Rosângela”, disse Reina. “O silêncio perdura até hoje.”

Odyr, segundo o livro, prestou serviços para o então presidente Ernesto Geisel (1974-1979), nas décadas de 1960 e 1970, e foi seu motorista no Rio.

Documentos de Odyr mostram ainda que foi registrado na carteira de trabalho como motorista de ônibus de uma viação na cidade do Rio. Ao mesmo tempo em que prestava serviços para Geisel, trabalhava no Ministério de Minas e Energia, no Ministério da Fazenda e na Petrobras.

Jogado numa fogueira
Juracy Bezerra de Oliveira morava em São Geraldo do Araguaia (PA) com a mãe, Maria Bezerra de Oliveira, e os irmãos.

De acordo com o pesquisador, um informante do Exército apontou Juracy como o filho do guerrilheiro Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão.

Segundo o informante, a mãe do filho do guerrilheiro era uma mulher branca, corpulenta e de olhos claros. A mãe de Juracy tinha todas essas características. Mas Juracy não era filho de Osvaldão e foi sequestrado por engano.

Aos oito anos, Juracy foi levado pelos militares e ficou preso em um acampamento na selva. Numa troca de tiros entre os soldados e guerrilheiros, um militar foi baleado e a suspeita era de que o autor do disparo havia sido Osvaldão.

Como vingança, Juracy foi jogado sobre uma fogueira de cascas de coco, mas sobreviveu. Ele foi levado para Fortaleza e “adotado” pelo tenente Antonio Essílio.

Anos depois, Juracy voltou para o Araguaia para procurar a verdadeira família. Achou a mãe e descobriu sua verdadeira história. Ele vive hoje numa ilhota no meio do rio Araguaia e, apesar de ter recebido indenizações do governo federal como vítima da ditadura, nunca foi reconhecido como sequestrado.

O verdadeiro filho de Osvaldão, Giovani, foi sequestrado meses depois junto da irmã, numa ação em que a mãe deles também foi morta.

Pesquisador percorreu 20 mil km
Para chegar aos 19 casos relatados, o autor fez mais de cem entrevistas, consultou 150 livros e 4.000 edições de jornais e percorreu mais de 20 mil quilômetros em território brasileiro em busca dos personagens sequestrados pelos militares ou seus familiares.

“Acessei milhares de documentos militares, oficiais ou secretos. Tive acesso a muitos documentos considerados secretos no período de ditadura no Brasil. Tudo isso para cruzar dados, buscar informações, costurar versões diferentes, checar e rechecar denúncias, críticas, informações, depoimentos, versões e conteúdo de documentos. Até chegar aos 19 casos relatados no livro”, diz.

Reina conta que a motivação do livro partiu de uma inquietação. “Sempre me intrigou a ausência de resposta para uma pergunta: por que na Argentina, no Chile, no Uruguai, no Paraguai e na Bolívia, durante a ditadura, houve sequestro de filhos de militantes políticos pelas forças militares que ocupavam a Presidência da República e aqui no Brasil não?”

“Essa pergunta ficou martelando minha cabeça por anos e anos”, conta. Reina publicou em 2016 uma ficção sobre a história de uma filha de militante política roubada da mãe e entregue a um empresário que financiava a repressão.

Depois da publicação do romance, o autor foi procurado pela filha de uma mulher que contou que a história de sua mãe era muito parecida. “Ela perguntou se eu não queria ajudá-la a procurar os pais biológicos da mãe. Era tudo o que eu precisava”. Essa mulher era Rosângela, personagem desse novo livro, a ser lançado no dia 2 de abril, em São Paulo.

Para o autor, o sequestro de crianças filhas de guerrilheiros não se limita aos 19 nomes encontrados por ele. “Há enorme resistência ainda para que as vítimas e seus familiares se abram. Todos têm muito medo de represálias”, disse.

“Cativeiro sem Fim” é um livro de Eduardo Reina, que será publicado pelo Instituto Vladimir Herzog e pela Alameda Editorial. O evento de lançamento será no dia 2 de abril, no Centro Universitário Maria Antônia, em São Paulo. Em breve, mais informações.

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