01/11/2017

Entre orixás e San Lorenzo

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Por Rodrigo Arreyes*

Nasci em San Martín, a uns quarenta quarteirões da rua onde meu pai foi criado, mas logo depois morei também em São Paulo, Brasil, cidade onde nasceu minha mãe. Mesmo que hoje eu seja pai de uma menina de três anos na Argentina, possuo dupla procedência, pois minha vida antes andou pelos dois países. Com trinta anos, calculo ter morado em pelo menos quatorze bairros diferentes, entre um lugar e outro.

“Quinho” (João Maria Ximenes de Andrade), o tio da minha mãe, e “Chiquito” (Juan Carlos Vega), o primo do meu pai, foram seqüestrados pelas ditaduras do Brasil e da Argentina, respectivamente. Nem meus pais, nem meus tios, nem meus avós são militantes ou algo similar. Nunca fomos juntos à Praça de Maio no feriado de 24 de março, nada disso; talvez eles nem sintam que as lutas das Madres correspondam com as deles. Meus irmãos, meus primos e eu somos dessa geração posterior ao terror, mas conhecemos a história por intermédio de certos parentes. Meu avô Joaquim e minha avó Vera, por exemplo, nunca se esqueceram do Quinho, por isso tenho seus testemunhos desde criança.

 

Carteira de estudante da PUC – SP de Quinho.

 

Há alguns meses atrás voltei ao Brasil. Não para sair de férias nem para morar lá de novo, como em outras ocasiões, mas para o último adeus ao meu vô Joaquim, que faleceu depois de três anos de doença. Eu gostava muito dele e, antes de viajar, aproveitei mais de uma conversa no Skype para dizer o que eu sentia. Ele aprendeu a usar o computador pelo telefone, em razão da imensa vontade de bater um papo com ele e com minha avó. Era legal. Por poucas horas, meu vôo não chegou para o enterro, contudo ficou em mim uma enorme gratidão porque tive sim a oportunidade de dar o meu adeus, do meu jeito. Foi antes de voltar para El Palomar. Estava no teatro com os meus primos Douglas e Evandro assistindo a Os que ficam, obra que relata a experiência de um grupo que encenava Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, na época em que o teatro brasileiro era caçado em uma escalada até os limites do absurdo. A história é caótica, um pesadelo para o espectador que espera apenas uma linha de introdução, desenvolvimento e conclusão. Pensava naquele momento que na Argentina até a TV apresenta programas que se obrigam a exibir o extermínio formado pela ditadura. Mas no Brasil acontece a mesma coisa que na Argentina? Por acaso são marcados publicamente os “Porões da Ditadura” ou os genocidas são julgados e condenados pelo sangue inocente derramado? Por que parece comum que sejam homenageados como próceres do desenvolvimento? Que espaço é consagrado para a memória nesse meio em que existe uma intensa propaganda a favor de um Golpe de Estado?

 

Homeless/ desaparecido

Eu senti a companhia do meu avô Joaquim na cena em que a personagem interpretada pela atriz Helena Albergaria, uma estrela de novela bêbada, vai para a delegacia à procura do seu companheiro desaparecido. Em volta de mim, entre os espectadores, outras pessoas muito comovidas, paralisadas, choravam. Quantas vezes eu ouvi do meu vô esse momento na delegacia em que zoaram com a cara dele, uma imagem que vi na sua voz, pois nessa situação o meu avô estava do lado da minha avó, que procurava o irmão Quinho?

Joaquim, que na verdade era o padrasto da minha mãe, tinha uma Brasília com a qual muitas vezes íamos de um lugar para outro em São Paulo. Com eles, meus três irmãos e eu curtíamos parques, shoppings ou sorvetes de milho na estrada no meio das serras. Nessa Brasília, de co-piloto com os seus óculos de sol e roupas de animal print, minha vó Vera fazia a minha cabeça com o tio Quinho; pelas ruas e avenidas caóticas, perdidos no tempo do trânsito do domingo, do lado de dentro da janela, lá estava ele quando era comparado aos moradores de rua. Isso se reprisava nesses passeios, como se ela tivesse se lembrado pela primeira vez depois de um tempo, “talvez Quinho hoje seja um homeless e esteja sujo, doente e desorientado, pedindo um trocadinho, se ele não foi esmagado por um carro, porque apagaram a inteligência dele com a tortura, de tanto que bateram ou pelos choques elétricos”. Não, ele não foi para a Rússia, nem ao Rio de Janeiro, como tantas vezes disseram depois de décadas de fantasias construídas para insultar as famílias. Quinho está desaparecido. Hoje ele teria 83 anos. Há quarenta anos, minha vó e meu vô procuraram por ele por toda a cidade de São Paulo, sem resultados. Entre os outros familiares existia (e como não?) temor por semelhante investigação.

 

Quinho, à direita, vestido como jogador de futebol.

 

O meu tio Quinho era o caçula da família. Djanira, sua mãe, foi uma pessoa escravizada que se casou aos 14 anos com o Sr. Ximenes, 25 anos mais velho que ela. Quando ficou viúva, cuidou dos oito filhos morando em condições complicadíssimas, todos passando fome e catando algodão. Quinho e os seus irmãos foram de Minas Gerais para São Paulo ainda muito jovens. Mas ele foi o mais inteligente e o mais estudioso, o mais querido e generoso entre todos, tanto que virou estudante da difícil PUC (Pontíficia Universidade Católica) de São Paulo, que na época era um foco de resistência contra a ditadura, invadida pelo Exército em 1977. Foi sequestrado no ano de 1974 em um bar de Vila Medeiros, zona norte de São Paulo.

Mesmo que algum parente ou amigo brasileiro talvez tenha pensado ou dito isso, nem a minha avó nem o meu avô, nem a minha tia “X”, esconderam uma indenização debaixo do colchão: isso não existe porque o Brasil se auto-perdoou em relação a estes crimes. Supostamente, entre 64 e 85, ali “apenas desapareceram 400 pessoas”.  E se a minha avó, em vez de pobre, hoje fosse alguém com um milhão de dólares? Por acaso o dinheiro poderia reconstruir uma família desmanchada em nome dos bons costumes? Se até Maurício Lopes Lima, torturador da presidenta Dilma, ainda continua livre, que trocado se pode pedir por um negro, comunista e macumbeiro como o meu tio Quinho? O que pedir de um país que gasta R$ 4 bilhões por ano em pensões para as filhas dos militares aposentados?

 

Magia, espiritismo, livros proibidos

Na rua, em casa, na hora da janta ou do almoço, quando a minha avó colocava um disco do Geraldo Vandré, ou se assistíamos a um filme na TV, Quinho era lembrado. Por causa do relato deles, eu era capaz de imaginá-lo com toda a transparência, envolvido pelo ar da música popular, dos bairros e da família da época. Queria vê-lo e conviver com ele, como a minha tia Fátima, que disse que passava horas e horas no quarto dele ouvindo o que ele tinha para dizer. Quando meus pais se separaram e eu mudei de país, comecei a pesquisar entre os livros da pequena biblioteca da casa de Jaçanã, em especial aqueles relacionados com o espiritismo e a magia. Esses livros eram tocados com medo, porque para a minha avó continuavam sendo “os livros proibidos”. Na casa dos meus avós tinham muitas coisas escondidas, como as velas para os orixás do quintal ou as imagens de santos atrás das placas de alumínio, o lugar onde minha avó fazia defumações e bençãos.

Várias coisas do Quinho foram escondidas pelo meu vô Joaquim em uma caixa quase à intempérie: um pedido de intercâmbio que o Quinho fez para a Universidade dos Povos da URSS, sua caderneta de estudante da PUC, a certidão de nascimento e algumas anotações de amor em italiano feitas a lápis. Guardo todos esses papéis hoje para lembrarmos-nos dele.

 

Documento de denúncia do desaparecimento de Quinho.

 

Aos 15 anos voltei para El Palomar, onde fica o Colégio Militar, a Base Aérea e o Batalhão 601. O bairro em que passei muito da minha vida, pois tenho amigos e aqui conheci a mãe da minha filha. Nessa cidade desapareceu Juan Carlos, “Chiquito”, o primo do meu pai, que era militante da Juventude Peronista. Minha mãe no Brasil e o meu pai na Argentina eram crianças e nem se conheciam. Com relação ao Juan Carlos, posso dizer que nunca falei pessoalmente – apenas pela internet – com as minhas primas, que emigraram para a Itália muitos anos atrás. Como eu sou argentino e brasileiro, elas são argentinas e italianas. Viveram duas partes das suas vidas nos dois países, indo embora quando a minha tia, que chegou a El Palomar como imigrante, sentiu-se perdida diante de tanta injustiça. Não sei como ela teve forças para seguir lutando por minhas primas. Juan Carlos era torcedor do San Lorenzo assim como 100% da minha família argentina, não sei se as minhas primas conhecem esse detalhe, que todos torcemos para o San Lorenzo, e até a borracharia do meu pai foi pintada com as cores do “El Cuervo”. Sei que Juan Carlos e meu pai iam juntos assistir aos jogos na “cancha”. Não cresci sabendo coisa alguma sobre a sua desaparição física porque a minha família argentina não a transmitiu para as seguintes gerações, pelo menos até esses últimos anos. O medo congelou as lembranças, porque ouviram, como eu, as explicações reproduzidas nos colégios, revistas e jornais, entre amigos ou inclusive pela própria família. Isso de que existe uma classe de pessoas que merecem que seus direitos sejam jogados no lixo para a satisfação dos interesses de outro grupo, acima de tudo, privilegiado.

Além do mais, contaria para as minhas primas, que em um dia de 2003, igual à maioria da minha sala, eu também senti certo pasmo quando no secundário (apenas no último ano do secundário, e eu passei por sete colégios, em dois países diferentes!) o meu professor Hernán Nemi falou sem restrições sobre os desaparecidos, sobre as Madres e, incomodando vários, passou o filme Garage Olimpo, além de organizar uma excursão ao teatro para assistirmos a uma obra sobre os anos 70, como a que me fez sentir perto do meu querido avô antes de voltar para El Palomar. Quanto mudou em nossa sociedade desde aquela época? Já conseguimos ver a carta escondida em cima da mesa? Talvez para outras pessoas tenha sido diferente, mas para mim houve múltiplas vozes e omissões.

* Texto traduzido do espanhol e originalmente publicado pelo site da Revista Haroldo Conti, pertencente ao Centro Cultural de la Memoria Haroldo Conti.

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