Foto: Gustavo Moreno/STF
14/02/2025

Valor Econômico: Configuração atual do Supremo abre perspectiva de revisão da Lei da Anistia

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Por Davi Vittorazzi, Caetano Tonet e Gabriela Guido

STF analisa três processos sobre o assunto; um deles já tem maioria para repercussão geral

Em meio ao sucesso internacional do filme brasileiro “Ainda Estou Aqui” e 15 anos após o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que negou a revisão da Lei da Anistia, uma nova configuração de ministros na Corte pode voltar a discutir o tema. Ao todo, três processos tratam do assunto e a expectativa é que eles sejam julgados em conjunto. Não há ainda, porém, uma data para que isso aconteça.

Desde a semana passada, a Suprema Corte analisa se uma dessas ações deve ter repercussão geral. Trata-se de um recurso relatado pelo ministro Flávio Dino. Na terça-feira (11), o STF formou maioria para dar repercussão geral ao entendimento sobre como deve ser a aplicação da Lei de Anistia aos chamados “crimes permanentes” – se a lei se aplica à prática de ocultação de cadáver.

Especialistas ouvidos pelo Valor consideram que atualmente o país apresenta um contexto político mais propício para uma revisão sobre o assunto, especialmente para se reafirmar a defesa da democracia, após os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Além disso, analisam que a postura da mais alta Corte do Brasil, diante de um novo julgamento, possa ser mais progressista.

A discussão também acontece em um momento em que integrantes das Forças Armadas são citados nas investigações sobre a tentativa de golpe ocorrida após o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) perder as eleições em 2022.

A repercussão do filme “Ainda estou aqui”, que recebeu três indicações ao Oscar, também tem alimentado o debate público. O longa jogou luz a um capítulo do passado que ainda não está cicatrizado: a eventual punição dos agentes que cometeram crimes na ditadura e o sofrimento das famílias das vítimas desse período.

Ao Valor, a presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, Silvia Souza, explica que a postura do Supremo no julgamento de 2010 foi conservadora e não considerou totalmente a Constituição de 1988, promulgada após a Lei da Anistia. A advogada considera, por exemplo, que o Supremo tem tomado medidas mais duras em relação à tentativa recente de golpe, o que representa um marco para a defesa da democracia.

“Acho que [a nova interpretação da lei] seria uma confirmação para a sociedade de que o STF está comprometido com a Constituição e o Estado Democrático de Direto”, diz Silvia.

Já na avaliação de Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, a lei não precisa ser revisada, mas o Supremo deve dar uma nova interpretação sobre o teor da legislação. Ele conta que a entidade pediu para participar do processo, já se reuniu com o ministro Dias Toffoli e solicitou a realização de audiências públicas para reabrir a discussão.

“A gente percebe que a maioria dos ministros tem um pouco essa sensibilidade sobre o que está acontecendo no Brasil e também eles entenderam o que foram as ameaças do 8 de janeiro, porque o Supremo foi vítima direta”, frisa Sottili.

Em relação à primeira ação que já tramita na Suprema Corte, neste primeiro momento os ministros não discutem o mérito da questão, apenas se o que for decidido pelo STF deve valer para outros casos semelhantes.

Além de Dino, já se manifestaram a favor da repercussão geral os ministros Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes e Edson Fachin. Os demais integrantes da Corte têm até esta sexta-feira (14) para votar.

A notícia de que há maioria no STF para dar repercussão geral ao julgamento da aplicação da Lei da Anistia ao crime de ocultação de cadáver também repercutiu no Congresso, onde a oposição tenta emplacar projetos de lei que anistiam os condenados pelos ataques aos prédios dos três Poderes em 8 de janeiro de 2023. Além disso, aliados de Bolsonaro enxergam nas propostas um caminho para reverter a inelegibilidade do ex-presidente.

“Só podemos lamentar esse tipo de decisão que só serve para acirrar os ânimos. Não precisamos reabrir constantemente essa ferida que já estava cicatrizando”, disse a senadora Damares Alves (Republicanos-DF). No governo Bolsonaro, ela esteve à frente do ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A pasta foi responsável por avaliar pedidos de anistia política na gestão do ex-presidente, a qual foi criticada por entidades da sociedade civil e vítimas da ditadura.

Já o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (PT-AP), afirma que a decisão da Suprema Corte está em linha com a Constituição de 1988 e projeta que o Tribunal irá debater também se a lei da anistia se estende ao crime de tortura.

“Celebro a decisão do Supremo Tribunal Federal porque a lei da anistia, mesmo à luz da égide do regime autoritário, não salvaguardava crimes imprescritíveis pela ordem constitucional de 1988, como os crimes de tortura e de ocultação de cadáver. Não estava isso previsto na lei e não é aceito de forma nenhuma pelo ordenamento constitucional vigente”, pontuou Randolfe. “Nenhuma família pode ficar tranquila quando os responsáveis pelo desaparecimento, pela tortura e morte de seus familiares não tenham sido responsabilizados pelo Estado brasileiro”, complementou.

Sobre a relação com a anistia aos condenados do 8 de Janeiro, Damares avalia que seria especulação relacionar esse movimento do STF a um recado relacionado ao tema. “Eu confio que a Suprema Corte vai ser sensata, no sentido de trazer uma decisão que acalme todo mundo”, pontuou.

Por outro lado, Rogério Carvalho (SE), líder do PT no Senado, vê o posicionamento da Suprema Corte como um recado direto. “A sociedade precisa entender que quem cometeu crime tem que pagar por esse crime”, disse.

A principal ação que tramita no STF e trata do tema foi apresentada em 2014 pelo Psol, e é relatada pelo ministro Dias Toffoli. O partido pede que a Lei da Anistia não se aplique aos crimes de grave violação de direitos humanos, cometidos por agentes públicos, militares ou civis.

A ação tem como base o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund e outros versus Brasil, que trata da Guerrilha do Araguaia. Agentes estatais brasileiros foram declarados responsáveis pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas.

Já a terceira ação envolve os autores da morte do ex-deputado Rubens Paiva, que tem a história retratada no filme que concorre ao Oscar. No fim de janeiro, a Procuradoria-Geral da República (PGR) defendeu que o STF precisa decidir se Lei da Anistia deve ou não ser aplicada aos militares que foram os responsáveis pela morte do político, em 1971. Dos cinco acusados pelo crime, apenas dois estão vivos.

A Lei da Anistia foi sancionada em 1979 pelo então presidente João Figueiredo, último no comando do Executivo do regime militar. A legislação, em vigor até os dias de hoje, é vista como importante para transição democrática no país, já que estabeleceu tanto o perdão aos militares que cometeram crimes quanto aos atores políticos que lutaram contra o regime.

Em 2010, o STF analisou uma ação movida pela OAB e negou a revisão da norma por 7 votos a 2. Dos sete ministros que votaram contra a revisão da lei, somente dois deles continuam ainda na Corte: Cármen Lúcia e Gilmar Mendes. Na época do julgamento, Toffoli já integrava o STF, mas não participou porque estava à frente da Advocacia-Geral da União (AGU) quando a ação foi ajuizada.

Hoje, porém, Toffoli é o relator de uma das ações e o STF é formado por outros nomes, que também não chegaram a analisar o tema: Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Kassio Nunes Marques, André Mendonça, Cristiano Zanin e Flávio Dino.

Matéria originalmente publicada no Valor Econômico em 14/02/2025.

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