Com informações da Agência Brasil
A repressão à comunidade LGBT e à população negra, as agressões sexuais contra mulheres militantes e o controle social das favelas no período da ditadura militar mostram que as restrições da liberdade foram além do confronto com a militância armada e alcançaram maior abrangência na sociedade.
A constatação é da presidenta da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, Rosa Cardoso, que participou hoje (12), do seminário Construindo a Verdade: Pesquisas sobre a ditadura de 64 no Rio de Janeiro, no Arquivo Nacional. Na oportunidade, pesquisadores apresentaram trabalhos sobre o assunto.
Segundo Rosa Cardoso, as pesquisas mostram que a resistência ao regime não foi apenas de pequenos grupos. “Isso é importante, para que não passe para a historia que houve uma ditabranda [ditadura branda] nesse país e que a resistência ficou confinada a determinados grupos. Na verdade, a ditadura foi muito mais abrangente, pois alcançou muito um conjunto maior da população”.
Mulheres militantes
Para a pesquisadora Natacha Nicaise, do Ibmec (Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais), a tortura contra mulheres militantes incluía sofrimentos adicionais. “Elas passavam por todo tipo de insulto que remete a mulher a um lugar que não é o da política. O torturador tinha a visão de que o lugar da mulher não era na política, era em casa”, afirmou. Nicaise narrou casos de estupro e agressões contra os seios e genitália.Quando grávidas, as mulheres presas por participar de grupos de esquerda passavam por abortos forçados nas prisões, em alguns casos, causados por agressões físicas contra a barriga e os órgãos reprodutores, para que “não nascesse um comunista”.A reprodução da mulher era vista como algo que pertence ao Estado”.
Apesar de haver mais relatos de violência sexual contra as mulheres, Natacha disse que os homens também sofreram o mesmo tipo de agressão, inclusive com casos de castração. “A tortura foi muito sexual. As pessoas eram eletrocutadas com fio no pênis e na vagina. Mulheres e homens eram estuprados”.
População negra
A pesquisadora Thula Reis, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, disse que, além de agressões policiais contra negros pobres – como invasões em residências e prisões por serem flagrados sem documentação – houve também, na ditadura, um esforço para sufocar qualquer tentativa de afirmação racial.
“Ter um black power, usar determinada roupa ou determinado símbolo religioso em seu corpo e se afirmar como negro, era uma ousadia, em um lugar em que todos somos brasileiros”, disse. Também relatou casos em que os cabelos eram raspados pelos policiais, e símbolos e roupas eram apreendidos.
Segundo Thula, o Estado impedia a discussão do racismo, e associações do movimento negro tinham que se intitular “associações culturais” para poderem ter a licença para funcionar. O esforço de apagar o debate também gerava censura e controle de entidades como as escolas de samba.
Comunidade LGBT
Para o pesquisador da Universidade de São Paulo, Renan Quinalha, a perseguição política da ditadura identificou o início da mobilização de movimentos LGBT no Brasil como subversivo. “A repressão não era política em sentido estrito da esquerda armada, mas também tinha um recorte moral muito forte. Outras formas de sexualidade incomodavam muito a ditadura”, disse. A ditadura os associava à subversão comunista como uma tentativa de degenerar a família, os valores católicos e morais tradicionais, segundo o pesquisador.
Na censura, pareceres negativos expressavam claramente a proibição da “divulgação do homossexualismo” e a repressão atingiu os locais de sociabilidade dos homossexuais e transexuais no Rio de Janeiro, como o bairro de Copacabana.
Ali, batidas policiais em boates e prisões arbitrárias acabavam em agressões físicas, principalmente contra as travestis. “Pessoas transexuais sofriam muito com as batidas. Enquanto a censura e violências mais brandas se abatiam sobre os homossexuais, os transexuais acabavam mais afetados”.
O cenário de repressão, na visão de Quinalha, atrasou a mobilização LBGT no Brasil, que, no Rio de Janeiro, já ocorria em jornais voltados ao público homossexual masculino. Publicações da imprensa alternativa, como os jornais Snob e Lampião sofreram essa perseguição, e concursos de fantasia e festas da comunidade gay pararam de acontecer.
As dificuldades enfrentadas por homossexuais na época também existiam dentro dos grupos que lutavam contra a ditadura: “Havia muito tabu. Não era uma questão tranquila nem mesmo dentro dos grupos de esquerda”.
Favelas
Associações de moradores e organizações em favelas do Rio foram observadas de perto pelos serviços de inteligência da ditadura, segundo a pesquisa. Representantes eram enviados para produzir relatórios sobre reuniões e verificar a proximidade com outros movimentos sociais.
A pesquisa dos doutorandos da Universidade Federal Fluminense (UFF) Marco Pestana e Juliana Oakim mostra que houve intervenções quando a diretoria era considerada subversiva. “A associação da Rocinha ficou 10 anos sob intervenção”, conta Marco.
Pestana destacou que havia uma preocupação de que a população das favelas se aproximasse de grupos de esquerda e, por isso, havia um monitoramento constante. “O período anterior à ditadura é um período de grande efervescência de mobilização dos favelados, reivindicando melhorias urbanas, permanência nas suas casas e levantamento de terras griladas, colocando em xeque interesses poderosos”, descreveu o pesquisador. “Era preciso desarticular os laços que começavam a ser criados com sindicatos, entidades de trabalhadores rurais. O medo é que fosse constituída uma aliança entre diversos setores subalternizados”.