A morte de Vlado é fato crucial na minha vida, de indivíduo, de cidadão e de jornalista. Aquele dia 25 de outubro de 25 anos atrás gerou sentimentos e pensamentos que vincaram meu espírito e minha ação e ainda me orientam 25 anos passados.
Acabo de escrever um livro, o qual se apresenta como romance, mas é fortemente autobiográfico. Conta a complexa relação de um profissional de imprensa com o poder e vai sair na primeira quinzena deste novembro, pela Record. Ali, vários capítulos evocam meu envolvimento naquele espantoso episódio. Me permito extrair do livro trechos da carta que o protagonista escreve para um amigo depois da morte de Vlado.
“Esta morte mexe nas minhas entranhas. Enfiaram a cabeça dele dentro de um capuz de feltro negro e o embeberam em amoníaco. Então a mão do algoz ergueu a borda do capuz encharcado e outra penetrou fechada naquele espaço escuro e úmido e empurrou à força na boca do torturado um punhado de sal. O efeito é a sensação do afogamento. Mas é a forma de tortura o que mais me revolta? Ou os instrumentos, a maquininha dos choques, a cadeira do dragão, o pau-de-arara? Lembro ter visto passar, no pátio da masmorra uma rapaziada robusta, de quimono, segurando panos enrolados e molhados, agitando-os belicosamente. Batem sem deixar marcas. Não é isso, porém, o que mais me toca.
“Me toca, isto sim, um, a violência em si; dois, a ausência de razão nessa violência demente, bestial, praticada contra quem quer que seja, preso político ou comum, como é dos costumes da terra; três, no caso específico, o alvo da violência. Quem nos apresentou foi meu pai, faz muitos anos, éramos mocinhos. E ele gentil, doce, frágil e preparado. Tinha voz forte, de barítono, que não casava com o físico. Não chegamos à intimidade, mas sempre simpatizei com ele.
“Era profissional competente e cidadão sonhador. Que ameaça representava para o regime e para a oligarquia? Pequena, ou nula. Ele e os amigos gostavam de fazer projetos irrealizáveis. Muitos fazem. No entanto, sem mais nem menos o mataram, e nisso tudo você registra a tragédia da irracionalidade do mal, até porque, paradoxalmente, o torturador preferiria tê-lo preservado para prosseguir na sua tarefa. Morreu-lhe nas mãos, sem querer.
“Há neste entrecho um aspecto que convém acentuar, a seu modo positivo, embora o adjetivo não me agrade e me cause uma espécie de remorso ao deitá-lo no papel. Penso no mártir e sinto a agulhada. Mas a morte dele exaspera as contradições da ditadura, aprofunda o conflito que lhe rói os alicerces. É a toupeira da História em ação”.
A morte de Vlado cristalizou em mim a certeza de que minha experiência na Abril, como diretor de Veja e como integrante do Conselho Editorial da editora, estava esgotada e me empurrou para a prática de um jornalismo afinado com minhas idéias políticas, pendores estéticos e humores em circulação entre o fígado e a alma. Mas ela transcende obviamente, a mera existência de um homem, diz respeito à nação em peso. À História, com h grande, abrangendo histórias com h pequeno. Por isso, Vlado é um mártir.
* Mino Carta é jornalista editor da revista Carta Capital.