No mês de outubro de 1975, sob a égide da famigerada doutrina de Segurança Nacional e em plena vigência do Ato Institucional nº 5, que suspendera os direitos e garantias individuais, dentre os quais o habeas corpus, a repressão corria solta neste país. Os agentes de segurança prendiam ilegalmente (sem mandado judicial) diversas pessoas, em manobras denominadas “arrastão” e submetiam alguns desses presos ao mais covarde e hediondo dos crimes: a tortura. Depois, soltavam parte desses presos e mantinham ilegalmente outra parte nos cárceres. Muitas vezes, era possível saber, com antecedência, qual seria o próximo grupo escolhido para as subseqüentes operações “arrastão”. Foi o que ocorreu com o grupo de jornalistas, no mês de outubro de 1975.
Foi nesse contexto de aguda repressão, sob o domínio de absoluto medo e sofrimento de muitos brasileiros, num país construído sobre o arbítrio, que, em 25 de outubro de 1975, nas dependências do Departamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna ( DOI-CODI) do II Exército, onde estavam presos diversos jornalistas – Rodolfo Konder, Luis Weis, Duque Estrada, Anthony de Christo, Paulo Markun, Sérgio Gomes da Silva -, morreu Vladimir Herzog, onde se apresentara e fora mantido preso, em virtude de suposto envolvimento com um partido político clandestino. A nota do Comando do II Exército, que divulgou o óbito, dava início à farsa, informando que Vladimir havia se suicidado, enforcando-se com uma tira de pano do macacão, depois de ter assinado confissão da sua militância política.
O Comando do II Exército, dando continuidade à farsa, em 30 de outubro de 1975, baixou portaria, determinando a instauração de um IPM para apurar as circunstâncias em que se dera o suicídio (e não a morte) do jornalista. Ou seja: o inquérito fora instaurado, já com a conclusão, incluída na premissa da instauração, vale dizer, com a finalidade única e inequívoca de contestar a versão oficial do suicídio.
Os advogados criminalistas, contratados por Clarice – Heleno Cláudio Fragoso, José Carlos Dias, José Roberto Leal de Carvalho e Arnaldo Malheiros Filho -, desde logo, tiveram consciência da impossibilidade de êxito de desvendar, no âmbito do IPM, as circunstâncias exatas da morte de Vladimir Herzog. Sob a vigência do AI-5, com a suspensão do habeas corpus – uma imoralidade que permitia o abuso de poder e sua ilegalidade -, sabiam eles que era difícil, senão inútil, num IPM, apurar rigorosamente as torturas e mortes de presos políticos, mesmo sendo notório que o DOI era uma casa de horrores, onde os presos eram submetidos a terríveis constrangimentos, inclusive com choques elétricos. Tanto assim é que esses bravos advogados não puderam sequer acompanhar o depoimento prestado por Clarice, no QG do II Exército, no “inquérito instaurado para apurar em que circunstância ocorreu o suicídio do jornalista Vladimir Herzog”; foram-lhes indeferidos até mesmo os simples pedidos de juntada aos autos do IPM do depoimento extrajudicial que havia sido prestado por Rodolfo Konder e de outras diligências para elucidação dos fatos, a partir das novas revelações contidas nos documentos.
Foi nessas circunstâncias que, como advogados na área cível, fomos procurados – Sérgio Bermudes, Samuel Mac Dowell de Figueiredo e eu – por Heleno Fragoso e por José Carlos Dias, para que, em nome de Clarice e seus filhos menores, André e Ivo, propuséssemos uma ação que pudesse conduzir ao reconhecimento de que Vladimir Herzog fora preso de modo arbitrário, sofrera torturas e morrera em decorrência dos maus tratos a que fora submetido.
Assim, em observância a solicitação de Clarice, no sentido de que a ação não contivesse conteúdo pecuniário, em 19 de abril de 1976, foi proposta a ação declaratória contra a União Federal, onde não se pleiteou o pagamento de uma indenização, mas tão somente a declaração da responsabilidade desta pela prisão arbitrária de Vladimir Herzog, pelas torturas a que foi submetido e por sua morte e a conseqüente obrigação de indenizá-los, em decorrência dos danos morais e materiais que esses fatos lhes causaram.
A sentença, proferida pelo juiz Márcio José de Moraes, em 27 de outubro de 1978, em circunstâncias adversas, pois ainda não havia sido revogado o AI-5, e, como tal, a magistratura encontrava-se privada de suas garantias, concluiu que (a) a prisão de Vladimir foi ilegal, reconhecendo, então, que a União prende arbitrariamente; (b) Vladimir foi torturado e que, no do DOI/CODI, a tortura é método de investigação; (c) não tem qualquer valor o laudo pericial que atribuiu a morte de Vladimir a suicídio voluntário; (d) a União não provou o suicídio de Vladimir; (e) declarou a responsabilidade da União Federal, ao julgar inteiramente procedente a ação dos autores.
Creio seja escusado ressaltar que, a partir da morte de Vladimir Herzog, muita coisa mudou neste país. Hoje não mais subsiste o mesmo medo, que vigia na ditadura militar. O próprio país se modificou: houve resistência e luta por transformação. A partir de sua morte, recrudesceram as lutas pela anistia de presos políticos, pela abertura política, pelas eleições diretas, enfim, pela redemocratização, que culminou na promulgação da Constituição de 1988. Igualmente, creio seja desnecessário enfatizar a importância da ação cível, cujo processo contém um dos mais valiosos documentos sobre torturas de presos políticos, na medida em que reúne depoimentos prestados em juízo por testemunhas que depuseram em clima de liberdade. A ação cível, que era a única esperança de desvendar as circunstâncias cruéis que envolveram a morte de Vladimir Herzog e, através dela, denunciar o arbítrio generalizado que vigorava no país, assentado na famigerada doutrina de segurança nacional, produziu o resultado esperado, consubstanciado na sentença, que, desnudando esse arbítrio, foi uma das pedras históricas para a restauração do Estado de Direito Democrático.
Hoje, quando se reverencia a memória de quem, segundo Mino Carta, foi “mártir, sem querer ser mártir”, é relevante relembrar, sobretudo para as novas gerações, a importância de Vladimir Herzog, covardemente assassinado no dia 25 de outubro de 1975, para a permanente transformação, resistência e consolidação do Estado de Direito Democrático.
Marco Antônio Rodrigues Barbosa é advogado.