Uma faceta relevante da missão do Instituto Vladimir Herzog é resgatar a História recente do Brasil – e, por decorrência, da América Latina – para conscientizar as gerações mais novas sobre as angústias e os medos daqueles que viveram sob a ditadura que mandou no País entre 1964 e 1985. Dedicamo-nos a esse trabalho não apenas para lamentar o passado e suas vítimas, como o próprio Vladimir Herzog, mas principalmente para imprimir nas mentes e corações dos mais moços – que não sofreram a opressão de uma ditadura – a convicção de que a democracia, por definição sempre imperfeita e eternamente a exigir aperfeiçoamentos, é o único arcabouço político que a humanidade pode admitir. Para que jamais voltemos a vergar sob uma ditadura. De ninguém. Civís, militares, direita, esquerda, tiranos de qualquer laia são inaceitáveis. A liberdade na democracia é o ar que o ser humano requer para poder viver.
Para mostrar como se sentem as pessoas em uma ditadura – a atmosfera permanente de medo que a todos oprime e reprime – reproduzimos a seguir artigo de Clovis Rossi na Folha de S. Paulo de 18/5/2013, por ocasião da morte do general Jorge Rafael Videla, que chefiou entre 1976 e 1981 a ditadura na Argentina. Ditadura responsável, estimam organizações de direitos humanos, pela morte de cerca de 30 mil pessoas.
Nemércio Nogueira
Depoimento: Sofri o medo que as ditaduras injetam no corpo e na alma
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
Jorge Rafael Videla, o maior símbolo da ditadura argentina do período 1976/83, morreu onde devia mesmo morrer: na cadeia.
Não é o caso de fazer um balanço do que foi esse terrível período da história argentina, prenhe, aliás, de períodos terríveis.
Só vou falar do medo, o medo tremendo que ditaduras injetam no corpo e na alma até de quem, como eu, nem argentino sou.
Medo que começou quando a sucursal da Folha em Brasília iniciou as gestões junto à embaixada argentina para que eu obtivesse o visto de residência, já que havia sido designado correspondente do jornal em “mi Buenos Aires querido”.
Era 1980, Videla era o presidente de turno da ditadura. A informação inicial foi a de que não me dariam o visto porque eu não era jornalista, “era militante”.
Não era exatamente mentira. Nunca militei em partido algum, mas militava, sim, como voluntário em defesa dos direitos humanos, sob o generoso guarda-chuva da Arquidiocese de São Paulo, então comandada por dom Paulo Evaristo Arns.
Ser carimbado como militante pela ditadura argentina equivalia quase a uma sentença de morte. Por isso, hesitei a princípio em assumir o posto, ainda mais pelo risco a que exporia a família.
Mas acabei indo, torcendo para que o fato de ser correspondente funcionasse como um habeas corpus preventivo, embora precário.
Funcionou em termos. Até que, um dado dia, apresenta-se em meu apartamento Eduardo Pereyra Rossi (sem parentesco), um dos sete “comandantes”, como os Montoneros, o grupo peronista dedicado à luta armada, chamava seus principais líderes.
Era um dos sete homens mais procurados pela máquina de matar dos militares. Eduardo me fora apresentado em São Paulo, durante as férias, por um amigo comum.
Conversamos um bom tempo. Ao despedir-se, me pediu que eu observasse da sacada até que ele dobrasse a esquina. Se fosse preso antes, que eu fizesse a denúncia.
Eduardo, naquele dia, dobrou a esquina, mas uns dez dias depois, foi morto em um suposto “enfrentamiento”.
Aí, começaram os problemas mais sérios. Primeiro, um roubo no apartamento, quando estávamos todos fora, em que levaram notas de US$ 50 e US$ 100, mas deixaram as de US$ 10. Você conhece ladrão comum que deixa notas de dólar encontradas na mesma gaveta em que estavam as roubadas?
O objetivo era deixar a mensagem de que eu estava sendo vigiado e podiam fazer o que quisessem. Após outro episódio similar, chamamos a polícia, que, porém, não procurou impressões digitais nas portas, alegando que em portas de madeira não ficam impressões digitais.
Depois, começou o seguimento na rua. Notei que um baixinho gordinho aparecia frequentemente em locais a que eu ia. Um dado dia, apareceu na porta da galeria em que ficava a lavanderia a que eu levava a roupa (a família estava de férias no Brasil).
Depois, reapareceu na estação do metrô perto de casa, e desceu na mesma estação que eu. Eu havia marcado encontro com um advogado (comunista) da Liga dos Direitos do Homem, num café da praça Lavalle, no centro.
Entrei no café, sentei e, pelos janelões, vi que ao baixinho gordinho se juntara um mais alto, espigado, de óculos escuros, bolsa tipo capanga embaixo do braço. Ficaram olhando para o café, e eu olhando para eles.
O advogado não apareceu. Deduzi que havia sido preso, que meu nome e telefone estavam na agenda dele e por isso eu estava sendo seguido.
Saí depois de uma hora de espera. Quando dei meia volta após um tumulto qualquer na pracinha, dei de cara com o baixinho gordinho, que me seguiu até o metrô.
Pouco mais tarde, vou almoçar no café da esquina de casa. Não demora e entram o baixinho gordinho e o da bolsa capanga. Não consigo comer, já aterrorizado.
Vou à sede da Liga dos Direitos do Homem, saber do meu amigo advogado. Não estava, não aparecia havia dias. Parecia confirmar-se a minha dedução sobre sua prisão.
Desço e, no térreo, ao fechar a porta pantográfica do elevador (prédio antigo, elevador antigo), dou de cara com um gigante de 2 metros de altura. Pensei: “Agora, engrossaram e mandaram um bem grandão para me fazer desaparecer”. Era apenas a minha imagem no espelho. O episódio me ensinou o efeito devastador que o medo provoca, em situações que você não pode controlar.
A Folha achou prudente antecipar viagem já programada para a América Central para cobrir as guerras em andamento. Fui e mesmo tendo caído em fogo cruzado em El Salvador, eu ao menos sabia quem era quem e de onde vinha o perigo.
Na guerra argentina, o terror era promovido pelas sombras de um Estado tomado por uma máquina de matar.
PS – Meu amigo advogado tinha apenas ido visitar a mãe doente no interior.