A pergunta feita foi: em que circunstâncias você assinou o documento? Por intermédio de quem o recebeu, onde trabalhava, que idade tinha etc.
Mario Marona
Em 1976, a única coisa que dominávamos era o tempo. Aos 21 anos, submetido ao medo permanente da ditadura militar, que nos espancava em passeatas do movimento estudantil e fazia desaparecer amigos e colegas, ainda assim minha rotina incluía dois empregos, o curso de jornalismo, a militância política, a edição de um jornal em forma de panfleto, e um casamento recém-iniciado, em regime de comunhão de pobreza franciscana.
Madrugava às 5 horas na Rádio Continental, na época um foco de resistência à censura, que burlávamos como podíamos, corria ao meio-dia para a faculdade de jornalismo, que nunca terminei, e à tarde iniciava uma longa jornada no jornal Zero Hora. À noite, grupos de 10 ou 15 companheiros de militância trotskista batiam ponto no quarto e sala de 30 metros quadrados em que morava, ou no de algum outro amigo, para intermináveis discussões políticas de teoria escassa e prática quase nenhuma.
Naquele momento, discutia-se muito, em Porto Alegre, se a luta contra a ditadura deveria se dar, prioritariamente, em ações clandestinas, eventualmente armadas, ou dentro dos marcos da legalidade controlada de instituições da sociedade civil – sindicatos, igrejas, movimentos sociais, setores de esquerda do MDB…
Parte da esquerda parecia exaurida por tantas prisões, tanta tortura, tantas mortes e sumiços. Foi quando fomos atingidos pelo choque do assassinato de um homem de redação. Não um defensor da luta armada, mas um simpatizante do PCB, que se opunha ao método. Não um clandestino, mas um jornalista conhecido, em plena atividade profissional.
Aquilo não era propriamente uma novidade. Muitos comunistas já haviam sido perseguidos nas redações e nos sindicatos, onde exerciam funções de liderança. Mas causou um impacto brutal em todos nós. Mostrava que não haveria mais limite algum dentro do qual alguma ação legal seria tolerada. Se matavam Vladimir Herzog, chefe de redação de uma emissora de TV conhecida, podiam matar qualquer um. Qualquer jornalista, qualquer advogado, qualquer profissional liberal. Qualquer cidadão que se atrevesse a ser contra o regime, mesmo que não empunhasse uma arma ou defendesse ações de guerrilha.
Esta constatação causou enorme comoção, fez mudar o país, e faz sentido dizer que ali a verdade sobre a ditadura ganhou luz, embora ainda tenha demorado uma década para que um grande acordo nacional extinguisse o regime. Mas foi com o assassinato de Herzog que milhões de brasileiros acordaram para algo que ainda lhes era distante. A morte rondava a todos.
Mas era preciso que o país e o mundo soubessem disso, e certamente não seria por notícia de jornal, mas por matéria-paga. O abaixo-assinado, cuja ideia nasceu em São Paulo, rapidamente circulou por alguns estados, para ganhar a necessária dimensão nacional. Chegou logo a Porto Alegre, onde a esquerda era numerosa e as redações de jornais e rádios fortemente politizadas. Posso estar sendo traído pela memória, mas creio que o assinei na pequena redação da Rádio Continental, junto com meus colegas de trabalho, ou no sindicato dos jornalistas, que ficava a 50 metros dali. Não houve muita discussão nem sentimento de heroísmo. Parecia natural. Como se dizia na minha terra, era “botar o chamegão no papel almaço ou se entregar definitivamente pros homens”. Dezenas de jornalistas gaúchos assinaram, alguns de nós entramos na vaquinha para pagar a publicação. Ninguém queria se entregar. De jeito nenhum.
12/8/2020.