05/02/2021

Mário Alberto de Almeida

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A pergunta feita foi: em que circunstâncias você assinou o documento? Por intermédio de quem o recebeu, onde trabalhava, que idade tinha etc.

Mário Alberto de Almeida

A manhã de 26 de outubro estava radiosa. E quente também. Para os jornalistas que atuavam na Capital paulista, em particular, o tempo fervia. A repressão mais feroz naquele momento, praticada na instalação do DOI, lançara a sua rede maligna para recolher profissionais que também militavam no PCB. Vários patrões de inclinação liberal contratavam jornalistas ligados a esta organização política de esquerda, mesmo sabendo da sua posição ideológica e até da militância – tolerada fora do horário de trabalho, mas nunca no que produziam. A notícia das prisões se espalhou rápido e logo se articulou um grupo para conduzir os ameaçados até locais temporariamente seguros.

Era domingo e eu circulava de “fusca” para colaborar nesta operação improvisada e amadora de transbordo. Até o final do dia conduzi amigos ou colegas desolados e inquietos para se hospedarem na casa de chefões solidários, em tese os menos ameaçados pois, além da posição elevada na hierarquia institucional, eram sabidamente alheios à militância. A notícia da morte de Vladimir Herzog, durante interrogatório dramático acontecido na véspera e ouvido por colegas de trabalho que também aguardavam para depor, tinha passado de boca em boca, chocando a todos. A escassa luz que se entrevia logo no começo da “abertura política”, que apenas se consolidaria na década seguinte, tinha sido repentinamente apagada por ação intencional e planejada de militares radicais das Forças Armadas. Para os jornalistas, o ar se tornara subitamente irrespirável.

Por solidariedade, era urgente proteger quem ainda não fora preso em razão do inquérito; e os procurados tinham de ser protegidos enquanto a situação continuasse obscura.  Seus improvisados anfitriões sabiam que ali havia risco –é óbvio. Mas nenhum dos que procurei vacilou. Também alguns dos que estavam sendo transportados eram bem próximos. Mas pouco se falava naqueles vinte, trinta minutos de trânsito até alcançar o refúgio concedido.

Mais tarde, naquele mesmo dia, nomeei a quem me pedira ajuda a localização de cada um, seu endereço e telefone, além de tosca frase de identificação para ser acionada caso houvesse necessidade. Sabia-se que outros militantes teriam que depor no atemorizante prédio onde operava o DOI. Mas estes já estavam orientados a confirmar sua participação no PCB. Nos dias subsequentes o ambiente clareou um pouco, já que não surgiram outras narrativas de torturas de intimados. Por cautela, fiquei alguns dias circulando de táxi e, logo que surgiu oportunidade, troquei o carro.

Passadas duas ou três semanas o cenário ficou menos turbulento e, na redação da Gazeta Mercantil, naquela ocasião instalada no prédio anexo do Estadão, onde começava a trabalhar como editorialista, circulou a informação de que amigos próximos dos perseguidos articulavam a redação de manifesto que seria subscrito exclusivamente por jornalistas, reclamando explicações do Executivo federal, na ocasião chefiado pelo general Ernesto Geisel.

Até então, era impossível noticiar com liberdade o que era conhecido a respeito das violências cometidas por militares do serviço ativo em ações policiais contra militantes de esquerda. Mas Audálio Dantas, repórter de grande prestígio e ponderado líder dos jornalistas desde que aceitara encabeçar uma vitoriosa chapa de oposição e tinha assumido a presidência do sindicato da categoria, insistia que chegara o momento de reagir. Foi dele a ideia original de preparar uma narrativa sintética dos fatos e trabalhar sua publicação como notícia na imprensa diária.

Já nos primeiros dias de janeiro de 1976, contudo, ficou claro que os principais órgãos da imprensa diária não estavam dispostos a estampar uma descrição daquilo que se passava nos porões do regime militar. Em lugar de bater em retirada, a opção foi publicar o texto em discussão como anúncio comercial, a ser pago com dinheiro de todos os signatários. O valor da quota dependeria do número de adesões, àquela altura próximo de 500.

A mobilização foi significativa em quase todas as redações e, na Gazeta Mercantil, logo se percebeu que as listas, com nome a ser preenchido em letra de forma e assinado como nos documentos de identificação, estavam centralizadas nos colegas da revista quinzenal Visão, todos muito próximos a Vladimir Herzog, que lá tinha o cargo de Editor de Cultura. Também se veiculou no boca-a-boca que o governador do Estado, Paulo Egydio Martins, estava a par e não se opusera ao projeto. 

O texto final, em tom mais forte do que na primeira versão, saiu em 3 de fevereiro de 1976, uma terça-feira, e ocupava página inteira no primeiro caderno do Estadão. Singelo, relativamente curto e bem claro, o texto que abria o anúncio vinha com por 1.004 nomes de subscritores, quase todos profissionais atuantes na Capital paulista.  Dizia tudo, requeria investigação isenta a respeito do crime praticado numa dependência do Estado brasileiro e prometia não esquecer do gravíssimo assunto ali exposto.

A divulgação foi motivo de incontáveis conversas no meio jornalístico, porém mereceu uma discreta repercussão institucional. Porém, não foi em vão. Três anos depois, em outubro de 1978, na conclusão de processo aberto por empenho de Clarice Herzog, viúva do jornalista assassinado, a morte de Vladimir foi reconhecida na Justiça Federal como assassinato cometido em dependência do Estado. E figura na História do Brasil como episódio fundamental no ressurgimento da atividade política legal no País, sendo ainda um dos marcos na campanha pela Redemocratização, cuja síntese triunfante ocorreu durante a campanha “Diretas Já”, a partir de janeiro de 1984.        

17/11/2020.

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