01/09/2015

Margarida Genevois doa livros de acervo pessoal para centro de educação em Direitos Humanos em São Paulo

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Em entrevista*, Genevois fala ainda sobre os novos desafios na luta histórica pela garantia dos Direitos Humanos a todos os cidadãos

O Centro de Educação em Direitos Humanos do CEU Pêra Marmelo, localizado no bairro do Jaraguá, zona Oeste de São Paulo, ganhou um novo acervo de Educação em Direitos Humanos. A sessão recebeu o nome “Seu Souza”, em homenagem ao Sr. José Esposo de Souza – morador do bairro engajado na luta pelos “bons princípios”.

O centro conversou com Margarida Genevois – integrante da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, conselheira do Instituto Vladimir Herzog e importante ativista dos Direitos Humanos, que doou livros de seu acervo pessoal para a biblioteca. Entre o material doado encontram-se, por exemplo, o Relatório Final da Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog e o livro infantil que conta a história dos Direitos Humanos no mundo. Veja a entrevista completa.

Educar para os Direitos Humanos é uma questão muito complexa antes de qualquer coisa. Quais os principais desafios que a senhora observa nessa missão?
No geral as pessoas não sabem bem o que são Direitos Humanos. É uma coisa nova para muita gente, mas é algo essencial para todos. Ninguém pode viver feliz numa sociedade que não respeita os Direitos Humanos. Direitos Humanos são a base da paz e de uma sociedade justa. O maior desafio nessa missão é criar tal compreensão – que as pessoas estejam convencidas do que têm Direitos Humanos e os outros também. A gente vive para alguma coisa, ninguém vem ao mundo sem uma missão. Ninguém é uma nuvem passageira. Somos diferentes e iguais ao mesmo tempo. Todos temos direitos essenciais e quando nossos direitos são reconhecidos é mais fácil reconhecer os direitos dos outros.

O Centro de Educação em Direitos Humanos no CEU Pêra Marmelo é um orgulho para os moradores do bairro do Jaraguá. Como esse centro pode ser utilizado como ferramenta transformadora da comunidade local e proximidades?
O CEU é um trabalho de alcance social muito importante. O sucesso dos CEUs mostra que é algo bem aceito. É claro que educar para os Direitos Humanos é algo que não está ainda dentro dos hábitos do povo de São Paulo. Mas tudo depende da boa direção dos responsáveis, de acreditarem no que fazem, depende da comunidade envolvida nesse projeto acreditar nisso firmemente,  sabendo que esses projetos pertencem à comunidade. Eu estive lá no Pêra Marmelo para inaugurar a biblioteca em Direitos Humanos e achei tudo muito organizado. Os diretores me pareceram bem empenhados. O projeto de Educação em Direitos Humanos tem vários cursos, pode se tornar uma importante ferramenta política para o povo. O secretário de Direitos Humanos tem que apoiar a continuidade do projeto.

De certo modo nós, brasileiros, ainda alimentamos a crença de que há pessoas e não-pessoas, pessoas superiores, pessoas inferiores. Uma das bases dos Direitos Humanos é o combate à desigualdade. Como a senhora entende esse paradoxo?
É uma questão de tradição cultural. É algo muito complexo, pois tivemos um sistema de escravidão que durou séculos. E esse espírito perdura nos nossos hábitos. Há resquícios em nossa sociedade que vêm de séculos atrás. O enriquecimento de alguns povos foi feito com a violação dos Direitos Humanos. Por isso a importância da Educação em Direitos Humanos, volto a dizer que as pessoas precisam compreender o quanto é básico o respeito à dignidade de um ser humano. Ninguém é igual a ninguém! Somos seres com qualidades e defeitos únicos. Mesmo tendo semelhanças, cada ser humano é único e tem sua dignidade. E uma das missões do governo é facilitar a vida das pessoas com chances iguais a todos. Temos que ter acesso para moradia, emprego, saúde, educação, cultura. Temos que ter direito à liberdade de expressão, por exemplo. O respeito às necessidades essenciais para ter vida feliz, realizar alguma coisa, criar paz, harmonia. Dar e receber amor. Todos somos responsáveis pela sociedade em que vivemos e temos que colaborar para que haja justiça. Não tem essa de que alguém tem certo status e achar que os outros não devem ser respeitados. Desde o jardim da infância já é possível aprender o que são Direitos Humanos.

Fraternidade, igualdade, solidariedade. As relações humanas mudaram muito. As novas gerações se mostram competitivas e individualistas. Como a senhora vislumbra os próximos anos na questão da qualidade humana?
Atitudes egoístas são difíceis de combater e requerem certo esforço, tempo, interesse, e isso tudo pode ser combatido com uma boa base educacional. Nos Centros de Educação em D.H. as pessoas interagem de modo a combater o egoísmo. Vivemos num sistema egocêntrico em que o consumismo prevalece, onde a pessoa é julgada por sua aparência. Há coisas mais importantes que a aparência, por isso esse projeto é fascinante. Vale a pena ter convicção de que é possível aumentar e melhorar a qualidade humana para a construção de um mundo melhor. Cada um pode colaborar, cada um pode colocar seu tijolinho.

Margarida Genevois posa ao lado do acervo doado para a biblioteca de Direitos Humanos do CEU Pêra Marmelo
Margarida Genevois posa ao lado do acervo doado para a biblioteca de Direitos Humanos do CEU Pêra Marmelo

Todo cidadão deve ter assegurado pelo governo o direito à saúde, educação, alimento e transporte. Como fica essa conta se muitas vezes o cidadão não conhece seus deveres?
Generosidade é sair de si mesmo para pensar nos outros. Quando conhecemos nossos direitos verdadeiramente é mais fácil cumprir com os nossos deveres e saber respeitar a vida do outro.

Direito à privacidade. Hoje vivenciamos uma fase em que a tecnologia transforma pessoas comuns em celebridades, mas ao mesmo tempo transforma celebridades em pessoas comuns. Como podemos fazer valer nosso direito à privacidade?
A própria vivência pode fluir para termos mais paz, mais solidariedade e justiça. É um desafio, às vezes temos a impressão de falarmos com um muro, mas é pelo exemplo que vamos construindo um ambiente mais favorável, vamos colorindo o coletivo. Outro dia a televisão de casa estava ligada na Globo e eu vi a cena de um drone entrar com um bolo de aniversário com velinhas acesas para a Ana Maria Braga. Achei aquilo extraordinário, mas já pensou que daqui a pouco a gente pode ter vida particular invadida por um drone com uma bomba, com uma filmadora, vai saber…(risos) Pela sua janela o seu lar pode ser violado. O lar era a base da família, isso está sendo devassado. Temos que pensar que a responsabilidade é de todos nós para a construção de uma sociedade melhor. Se hoje temos uma qualidade de programas de TV ruim é porque há um certo tipo de público que consome esse tipo de informação.  Os programas que mostram a violência o tempo todo são um tipo de influência negativa. Espalha-se o ódio, espalha-se a vingança e a violência; a miséria humana é propagada por esses tipos de programas. Direitos Humanos é manter o respeito à dignidade de cada um, quando isso é violado aí sim existe o que chamamos de degradação humana.

O que a senhora pensa do fato de uma parcela da sociedade questionar,  criticar que não há quem defenda os Direitos Humanos frente à ação dos criminosos?
Nós, ativistas dos Direitos Humanos, fomos rotulados como “defensores de bandidos”. Não somos isso! Defendemos a não violação da dignidade humana. Não defendemos bandidos, muito menos crimes. Cada ser tem que ser responsável por seus atos. Se alguém comete um delito tem que ser julgado e punido dentro da lei do seu país. O que nós combatemos é a falta de dignidade a que os presos são submetidos. Todo cidadão deveria visitar uma prisão e saber como vivem aquelas pessoas, é desumano. Eles são tratados como bichos, e quando se é tratado como bicho, vira-se fera! Entrar numa cadeia é uma experiência enriquecedora, as autoridades deveriam visitar uma. Há juízes que nunca pisaram numa prisão – como podem julgar? Numa cela há cheiro de urina, de fezes, de suor. Uns ficam a noite em pé para que outros possam dormir. São submetidos a ter relações sexuais com quem não querem ou amam. É um descaso! Nas cadeias hoje há cada vez mais uma superpopulação, daí as revoltas, os motins, as chacinas. Nós não defendemos bandidos, defendemos a garantia dos direitos básicos de qualquer cidadão, que é ter sua dignidade intacta. Penso ser revoltante um preso entrar numa cadeia analfabeto e sair anos depois analfabeto. A prisão acaba se tornando uma universidade do crime e poderia ser diferente, com oportunidades para essas pessoas se modificarem para melhor, mesmo cumprindo sua pena.

E a polícia?
Eu vejo a polícia muito despreparada para lidar com questões complexas. A maioria entra na carreira militar para ter um emprego estável, mas não tem boa formação escolar, não tem estrutura psicológica. Até tem gente bem intencionada na polícia, mas o sistema é corrupto e por mais que alguém queira fazer algo bom, acaba entrando no “esquema”. É preciso repensar essa forma de atuação da nossa Segurança Pública. Eu sei que é desgastante ficar sob a mira de bandidos, ficar perseguindo marginais, mas a polícia não deveria ser tão bruta e violenta. Há casos em que poderíamos ter outras táticas de abordagem. A Secretaria de Direitos Humanos criou o Programa Juventude Viva, já é um modo de proteger os direitos dos jovens negros de periferia, que são constantemente violentados pela brutalidade da polícia. O negro, o pobre, o homossexual, o morador de rua, o diferente, são alvos preferenciais da violência.

Tantos anos a senhora lutando pelos Direitos Humanos, olhando um pouco sua trajetória tem alguma passagem especial que a senhora pensa ter valido a pena sua luta?
Tudo valeu a pena! Eu tive uma vivência enriquecedora por meio do meu trabalho. Eu tive companheiros maravilhosos que lutaram e, ainda lutam, junto comigo. Pessoas da melhor qualidade, que fizeram muito pelo Brasil. Eu me orgulho de ter lutado no combate à ditadura militar, aquilo era terrível. Quando eu participei da Comissão de Justiça e Paz, criada por Dom Evaristo Arns, nós recebíamos pessoas desesperadas que buscavam notícias de seus familiares. Se hoje você pode escrever uma reportagem livremente é graças também à nossa luta. O caso do jornalista Vladimir Herzog foi um exemplo de perseguição à liberdade de expressão. As pessoas eram presas, violentadas, tomavam choques elétricos, eram torturadas psicologicamente e até mesmo assassinadas pelos militares. Eu fui uma pessoa que lutei firmemente pela garantia dos Direitos Humanos nessa época. Atualmente nós temos uma sociedade menos repressora, mais livre, mas ainda temos muito pelo que lutar. Hoje nosso companheiro na Secretaria de Direitos Humanos é o Eduardo Suplicy, ele é uma pessoa engajada, nós costumamos dizer que antes de acontecer um problema o Suplicy já está lá para resolver (risos). Também o secretário adjunto Rogério Sotilli tem se empenhado, com muita dedicação, para efetivar projetos importantes. Torcemos para que todos esses projetos continuem independentes da sigla partidária e de quem esteja no governo.

Presidente Dilma.
Uma mulher de muita coragem! Acompanho pelos jornais o mandato dela, mas penso que todos nós, brasileiros, esperávamos mais. Pena a Dilma não saber ouvir mais atentamente os outros. Ela teria que ouvir mais a opinião pública e os outros partidos. Hoje vivemos um clima de ódio na política e isso não é bom para ninguém. Quanto ao impeachment, considero medida extrema e não é o caso, atualmente.

Noventa e dois anos bem vividos, a senhora tem algum projeto? Quais são seus sonhos?
Projetos a gente tem todo dia, esse de Educação em Direitos Humanos é um que está sendo bem cuidado. Tenho outros, eu não paro nunca…(risos). Sonho com um mundo melhor! Sonho que as pessoas unam suas forças para o bem – está muito difícil no mundo todo viver em paz, ser feliz. Meu sonho é que o amor, a paz e a justiça prevaleçam nos corações humanos!

*Entrevista realizada por Gilza Araújo, do Centro de Educação em Direitos Humanos de São Paulo

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