Portaria publicado no Diário Oficial da União estabeleceu pensão às irmãs e retifica suas certidões de nascimento com o nome do pai
Depois de 43 anos, as irmãs Sônia Léia e Silvia Maria terão, finalmente, o que mais queriam na vida: o sobrenome do pai. Ele era Lourival de Moura Paulino, um barqueiro morto durante a guerrilha do Araguaia, em 1972. As duas mulheres mal se lembram da fisionomia dele, já que ambas eram bebês quando o pai foi enforcado em uma delegacia de Xambioá (PA). Além de terem suas certidões de nascimento corrigidas, as irmãs ganharão uma indenização da União.
A história começa no dia 18 de maio de 1972, data em que Lourival foi preso pelo Exército por suspeita de subversão, segundo documentos da época. Ele já estava há três dias na delegacia de Xambioá. “Conversando com ele, perguntei porque o mesmo estava nervoso, ele disse que não era nada”, narrou um soldado no relatório sobre a morte do barqueiro. “Perguntei a ele se queria alguma coisa, e ele disse que aceitava água”, acrescentou o militar, explicando que a descoberta do corpo se deu após a chegada de outro soldado que havia saído para comprar cigarros.
A partir deste dia, as vidas de Sônia Léia dos Santos e Silvia Maria começaram a mudar. As duas eram pequenas e o pai, por questões financeiras, não havia registrado as crianças. Sônia é a mais nova e tinha três anos à época, enquanto Silvia tinha cinco. Um terceiro irmão já havia morrido. As duas meninas foram criadas com dificuldades pela mãe Geny Matias dos Santos. Mais velhas, tiveram que trabalhar cedo para sobreviver.
A prisão de Lourival aconteceu durante uma das fases da Operação Peixe, desencadeada no Araguaia para combater a guerrilha. No relatório denominado informação especial nº 1, feito pelo Centro de Inteligência do Exército (CIE), de 26 de maio de 1972, consta que o barqueiro fora detido junto com Paulo Crispim, Izaias Freitas Mozzer, Alu Dias da Silva e Maurício Guimarães Ribeiro.
O fato de não terem sido registradas com o sobrenome do pai tornou-se um problema nas vidas das irmãs e da mãe Geny, que sofreu de depressão. Este motivo e mais o fato de as mulheres terem que trabalhar ainda meninas levaram a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça a anistia-las e indeniza-las. Uma portaria, publicada no Diário Oficial da União da semana passada garantiu a cada uma R$ 100 mil como reparação econômica de caráter indenizatório.
Ajuda aos “paulistas”
Segundo o relatório da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, a história das duas irmãs se insere no contexto histórico da chamada guerrilha do Araguaia, movimento de oposição política à ditadura militar instalada no país a partir de abril de 1964. O confronto com as Forças Armadas se acentuou a partir de 1972, quando até mesmo os moradores da região, a maior parte deles pobres, eram perseguidos por prestar ajuda aos guerrilheiros, os chamados “paulistas”. E Lourival deve ter sido uma dessas vítimas.
No dia em que os processos das duas irmãs foram aprovados, durante um ato simbólico realizado em Palmas (TO), Sônia Léia, hoje com 46 anos, e Sílvia Maria, de 48 anos, lembraram do pai. A mais nova delas disse que não se lembrava da fisionomia de Lourival. Só pelo fato de não ter a certidão de nascimento, já era motivo de tristeza, mas o que mais a abalava era a gozação pelo fato de não ter pai. Na ocasião, ambas se emocionaram e afirmaram que não só Lourival, mas toda a família estava entrando para a história.
Um relatório do Ministério da Defesa, de 2009, feito para atender a uma sentença judicial da 1ª Vara Federal do DF, diz que Lourival era ligado a um dos grupos de guerrilheiros, o que ele, porém, sempre negava. “Durante todo o interrogatório negou sua participação no movimento”, narra o documento, completando: “Disse que seu contato era somente comercial, de aluguel de barcos”. O relatório diz que foram encontradas com ele várias cartas de Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, um dos mais famosos guerrilheiros do Araguaia.
O último levantamento, feito pela CNV (Comissão Nacional da Verdade) indica que 72 pessoas foram mortas no Araguaia, durante a guerrilha. A CNV reconheceu durante seus trabalhos mais dois óbitos, duas mortes seguidas de desaparecimento e 67 desaparecidos. Lourival foi um dos cerca de 30 civis que tombaram durante o conflito. Muitos eram comerciantes, barqueiros e, principalmente, lavradores. Eram presos quando os militares suspeitavam que eles davam suporte aos guerrilheiros, seja fornecendo gêneros alimentícios ou servindo como guia. A guerrilha do Araguaia foi um capítulo do período da ditadura, que fez 380 mortes em toda existência e fez desaparecer 147 pessoas.