Texto originalmente publicado como artigo de opinião no JOTA em 1º de outubro de 2022
Não há nada de errado com uma campanha eleitoral quando as disputas e conflitos entre diferentes perspectivas e propostas para o país acontecem por meio de debates intensos e inflamados. O problema começa quando o acirramento cruza a fronteira da lei e das regras não escritas de um bom jogo eleitoral, como o respeito à própria dinâmica do contraditório e a autocontenção para que tais disputas não se convertam em hostilidade, distorcendo a percepção de riscos representados pelos adversários e abrindo caminho para um ciclo de intimidação e violência recíprocas.
Atualmente, este é um retrato do debate público no Brasil, agravado por táticas vigaristas que promovem desconfiança no sistema eleitoral e criam um ambiente fértil para a delinquência e a aceitação do emprego da violência com fins eleitorais. Não é exagero a perspectiva da mídia internacional sobre o início da campanha brasileira como um processo cercado de “temores de violência”, termos usados pelo jornal britânico The Guardian e pela agência de notícias americana Associated Press.
Há evidências que confirmam tais temores. Segundo o Observatório de Violência Política e Eleitoral, formado por pesquisadores do Grupo de Investigação Eleitoral da UniRio, o número de casos de violência contra lideranças políticas foi maior na primeira metade de 2022 do que no mesmo período do último ciclo eleitoral, em 2020. De 174 casos de violência política, dois anos atrás, passamos para 214 nos seis primeiros meses deste ano. O sinal está mais do que amarelo.
Violência política pode ser definida como aquela empregada para controlar quem se beneficia e participa plenamente da vida política, econômica e sociocultural do país. Já a violência eleitoral é definida pelo International Foundation for Election Systems como “qualquer dano, ou ameaça de dano, a qualquer pessoa ou propriedade envolvida no processo eleitoral, ou ao próprio processo eleitoral, durante período eleitoral”.
O impacto da violência, portanto, vai além dos danos físicos: interfere na participação política e na liberdade ao intimidar eleitores, jornalistas e candidatos; alimenta instabilidade e o clamor por autoridade favorecendo narrativas autoritárias; promove um tudo ou nada que empobrece o debate e limita soluções negociadas e, por fim, gera um ciclo de violência que agrava fatores de risco.
E quais são os fatores de risco presentes no Brasil? Partindo do trabalho da organização americana Over Zero, baseado em décadas de pesquisa teórica e prática sobre o tema, consideramos que há quatro dinâmicas que podem alimentar ou, no sentido inverso, construir resiliência à violência política. Os mesmo fatores de risco presentes no contexto dos EUA de Donald Trump, agravado pela não aceitação do resultado das urnas, pode ser observado no cenário brasileiro.
São eles: o acirramento da intolerância entre grupos políticos; a polarização social; o aumento dos discursos que naturalizam a violência; e o desgaste da legitimidade das instituições democráticas. O primeiro fator se destaca no comportamento das elites políticas, quando uma divisão extremada gera um ambiente de “tudo ou nada” em que cada disputa se torna uma disputa por sobrevivência do próprio grupo político, muitas vezes às custas do interesse público.
O segundo fator tem a ver com a chamada “polarização afetiva” — quando as divisões políticas têm origem não em desacordo sobre determinada questão ou preferência, e sim pela identidade de grupos políticos e o sentimento entre grupos. Esqueçamos, por ora, o limitante debate da polarização Bolsonaro-Lula. Estamos falando aqui de uma polarização baseada não no que as pessoas pensam, mas em como elas se veem e se sentem diante de opositores.
O terceiro fator diz respeito à aceitação de discursos que naturalizam a violência. Além da organização discursiva polarizada entre “nós” contra “eles”, as narrativas intragrupos passam a justificar a violência a partir da desumanização, colocando retirando dos opositores atributos como respeito e honra, e tendo como pretexto puni-los por problemas passados, responder às ameaças percebidas (ou fabricadas) e — o que nos leva ao quarto fator — compensar a alegada fragilidade de instituições.
Por fim, o último fator de risco presente no cenário brasileiro: a baixa credibilidade das instituições democráticas, agravada pelos discursos que buscam deslegitimar as instituições, em especial com a disseminação de desinformação e falsas alegações de fraude nas urnas eletrônicas.
Mapear tais riscos e reconhecê-los são o primeiro passo para enfrentá-los, mitigá-los e construir resiliência da sociedade contra a violência política e eleitoral. A essa tarefa estão convocadas lideranças políticas e cívicas, eleitoras e eleitores, jornalistas, comunicadores e influenciadores em geral — e, claro, candidatos e candidatas. Temos poucas semanas para desabonar os prognósticos mais pessimistas.
RAFAEL POÇO – Diretor-executivo do Instituto Galo da Manhã e idealizador do Despolarize. Advogado, foi assessor na Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público de São Paulo. Também foi assessor da candidata Marina Silva na eleição presidencial de 2014. Cofundador do Instituto Update, apresentou o programa “Política: Modo de Usar” (GloboNews)
ROGÉRIO SOTTILI – Diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog. Historiador, foi secretário-executivo da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (Jan/2005 – Dez/2009) e secretário especial de Direitos Humanos da Secretaria Especial de Direitos Humanos do Governo Federal (Out/2015 – Mai/2016). Além disso, atuou como secretário da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo (Jan/2013 – Out/2015)