Por Roberto Midlej, do Correio da Bahia
Atualmente com 83 anos, mãe do escritor estudou criou dois filhos sozinha e ainda estudou Direito na tradicional universidade Mackenzie depois da viuvez
Em fevereiro do ano passado, nascia Joaquim, primeiro filho do escritor Marcelo Rubens Paiva, autor de Feliz Ano Velho, clássico da literatura moderna brasileira que se tornou símbolo de uma geração e foi febre no país nos anos 80.
Enquanto Marcelo via Joaquim descobrir o mundo e notava que o filho estava construindo a memória da sua própria vida, o escritor testemunhava, por outro lado, a perda da memória por parte da mãe, Eunice.
Ela havia se tornado vítima do Mal de Alzheimer, que o escritor se recusa a chamar de ‘mal’: “(…) passa uma imagem negativa. (…) Não se diz mal de câncer, mal de distrofia muscular, mal de gripe, mal de alergia. Mas Parkinson e Alzheimer são um mal”.
O trecho acima está logo no início de “Ainda Estou Aqui” (Alfaguara/R$ 39,90/296 págs.), livro de memórias do escritor paulista de 56 anos. Além do paradoxo entre o despertar do filho e a debilidade da saúde da mãe, outros fatores motivaram o escritor a recorrer às suas lembranças.
As questões políticas, como o pedido da volta dos militares ao poder, feito por algumas pessoas nas recentes manifestações, também foram um estímulo: “Alguns grupos, mesmo que fossem minoritários, pediram a volta da ditadura. Então, me senti na obrigação de explicar a essas pessoas o que foi a ditadura”.
Marcelo e sua família sentiram de perto os horrores do regime militar, já que seu pai, o engenheiro Rubens Paiva, foi perseguido e morto pela ditadura quando era deputado federal. Dado como desaparecido em 1971, foi somente em 1996 que sua morte foi reconhecida e atestada pelo governo brasileiro.
A mãe
Apenas depois do reconhecimento oficial que Rubens Paiva havia sido torturado e morto por militares, a família de Marcelo pôde finalmente movimentar contas bancárias em nome do pai e vender os imóveis da família.
Os 50 anos do golpe militar – completados no ano passado -, as ações do Ministério Público contra torturadores e a atuação da Comissão da Verdade também foram marcos decisivos na vontade de Marcelo de escrever o livro.
A morte de Rubens Paiva chamou a atenção do país e, por isso, era natural que a história dele despertasse o interesse do leitor. Mas Marcelo surpreende e concentra o desenvolvimento do livro na vida da mãe: “No fim, eu acabei descobrindo que quem combateu mesmo a ditadura foi minha mãe, enquanto meu pai foi uma vítima. Ela foi a maior inimiga dos ditadores por ter lutado pelo reconhecimento da morte dele e pela Anistia. Se empenhou muito nas Diretas Já, e participou da Constituição de 1988. Também integrou a comissão de Fernando Henrique Cardoso para indenizar as famílias de mortos e desaparecidos. Por tudo isso, percebi que ela acabou fazendo mais que meu pai”.
Apesar de todos esses elogios que Marcelo faz à mãe, muitas vezes Eunice é tratada de uma maneira um pouco “dura” no livro. É descrita como uma mulher fria e pouco carinhosa com os filhos, ao contrário do que se poderia esperar de uma mãe com sangue italiano, como nesse trecho: “Quando eu queria colo de mãe, apelava para as minhas avós, tias e mães de amigos, a quem me apegava. Me apeguei até a professoras. Minha mãe deve ter me dado uns quatro beijos na vida. Me levou duas vezes ao cinema, quando eu era criança, para ver filmes que ela queria ver: Doutor Jivago e Lawrence da Arábia”.
Curva dramática
Mas Marcelo diz que Ainda Estou Aqui não é um “acerto de contas” da relação entre ele e Eunice. Se no início do livro, ele trata a mãe com certa “secura”, aos poucos revela sua admiração por ela.
O autor assegura que essa é uma estratégia que aprendeu com a escrita de romances e com o teatro, onde já exerceu as funções de dramaturgo e diretor. “A gente chama esse recurso de ‘curva dramática’. No começo, realmente a revelo como uma pessoa fria, nem um pouco italiana, ao contrário das minhas tias. Mas depois me dou conta de que ela ficou viúva aos 41 anos e teve que ser pai e mãe ao mesmo tempo. Então, mais à frente do livro, a revelo de outra forma”.
Marcelo diz que a experiência de se tornar pai aos 54 anos de idade lhe permitiu rever o que pensava sobre a família e especialmente sobre os pais. “Eu tenho amigos que falavam que ser pai era a melhor coisa do mundo. Logo que soube que ia me tornar um, aceitei a condição e acabei me tornando um pai exemplar”, comemora, sem modéstia.
Eunice, que tem 83 anos, estudou Direito na tradicional universidade Mackenzie, já depois da viuvez. Conciliava a vida de mãe (e pai) de cinco filhos com a rotina estudantil. Tornou-se advogada e se engajou em lutas sociais e políticas, como as causas indígenas, junto com o cantor inglês Sting, nos anos 80 e 90.
Mais que uma biografia, Ainda Estou Aqui é um livro a respeito da importância da memória, abordada em diversos trechos. Para Marcelo, mexer nas lembranças é necessário para que se possa entender o presente: “A memória é uma mágica não desvendada. Um truque da vida. Uma memória não se acumula sobre outra, mas ao lado. A memória recente não é resgatada antes da milésima. Elas se embaralham”, diz no livro.
Marcelo não aceita que se passe uma borracha na ditadura, como alguns já sugeriram. Mas não acha que se deve lamentar a dor eternamente: “A ditadura precisa ser resgatada para que possamos olhar para a frente. Mas no Brasil há um muro entre o país e aquele governo militar. Nós não sabemos quem é criminoso e quem não é. Às vezes, um torturador pode estar ao nosso lado e a gente não sabe”.
Atento às manifestações políticas atuais, Marcelo dá sua opinião: “Apesar das pedaladas fiscais e da péssima administração de Dilma, sou contra o impeachment. O brasileiro sempre foi obcecado em encurtar mandato de quem cometeu uma ou outra irregularidade”.