O artista comenta sobre o processo de produção do mural que homenageia figuras emblemáticas que lutaram por justiça a Vladimir Herzog durante a ditadura
Por Robert Guedes
Um dos principais chargistas do Brasil, Renato Aroeira inaugurará sua primeira obra pública no dia 30 de junho, durante o evento “Todo mundo tem que falar, cantar e comer”, na Praça Vladimir Herzog. A edição especial celebrará o aniversário de Vladimir Herzog, que completaria 87 anos em 27 de junho.
Aroeira é conhecido por criar diversas ilustrações e charges que retratam os principais acontecimentos do Brasil, mesclando o cotidiano com a política. O IVH entrevistou o artista para descobrir os bastidores da produção da obra “Alguns Personagens desta História”, que homenageia pessoas que atuaram na luta pela democracia e justiça para Vlado.
Durante a conversa, o chargista revelou mais detalhes de sua trajetória e de como o seu trabalho impacta a vida das pessoas.
IVH – Como foi o processo de criação da obra Alguns personagens desta história?
Aroeira – A ideia foi uma iniciativa do Sérgio Gomes, no café que a gente faz no sábado de manhã, um café virtual sem pauta. E a ideia era ressaltar a enorme movimentação que foi feita para que aquele crime contra Vladimir Herzog não ficasse impune, mas que não ficasse escondido; uma mentira no papel de verdade. Ele [Sérgio] gosta dos meus desenhos de retratos e caricaturas e pediu para fazer o trabalho.
A princípio era uma coisa de 15 a 20 pessoas, mas no decorrer do trabalho, com a pesquisa, passou para 31 e como todo mundo ainda lembrava de mais nomes, a obra em vez de se chamar “Personagens dessa história” passou a ser “Alguns Personagens desta história”, porque há mais gente envolvida. Digamos que esse são os principais ou os que estiveram mais na frente para fazer isso.
Algum artista ou obra de arte te inspirou no momento da criação?
Na verdade, nenhum artista específico. No entanto, todos eles, inclusive os que estão lá – Elifas Andreato, João Bosco, Aldir Blanc e o Henfil –, todos esses e tudo o que eu vi de história da arte, tudo o que eu vi na minha vida de cartunista e de artista entrou nesse painel. Os murais mexicanos, Frida, é tanta coisa. Di Cavalcanti e tantos outros. Nenhum deles me inspirou no estilo. Me inspira no sentido de que essas pessoas, todos me fizeram adorar a arte, a pintura, a iconografia e eu falo de todo tipo de arte. Eu sou um seguidor da arte africana, da arte oriental, chinesa, coreana, europeia, renascentista, clássica moderna, iconográfica ou não, gestual ou não, abstrato ou não. Para mim, seja uma intervenção, pode ser uma alegoria, eu não vejo limites para a arte.
Eu acho que um mural na praça chamada Vladimir Herzog, contando um pouco da história de Vladimir Herzog, é para isso que serve a arte. E eu peguei a tarefa, e vou ser honesto com você, eu não tinha noção da dimensão dela à medida que fui fazendo. Procrastinei, enrolei, voltei atrás, fui pra frente, mudei como todo artista faz quando trabalha. Mas quando a gente foi chegando no final é que fui tomando dimensão.
Como você está se sentindo sabendo que a sua obra será exposta ao público pela primeira vez na sua vida?
Essa foi a segunda ficha que caiu. A primeira ficha foi o tamanho da obra, de como seria executada. Tinha 20 desenhos, depois 25, depois 30, 31. E aí a ficha caiu porque eu pensei assim: ‘Poxa vida, é uma obra pública, é a primeira vez que eu faço uma obra perene, pública e ela fica ali. E como é azulejo, ainda tem uma certa facilidade na reconstrução e restauração das obras expostas. Na rua, [as obras] sempre estão sujeitas a deterioração de muitas maneiras, então há uma perenidade, há uma coisa que o artista às vezes gosta e às vezes não gosta de encarar. Mas é uma obra que ficará depois de mim por algum tempo. Pelo menos eu tenho noção de como as coisas são mutáveis o tempo inteiro, mas ficará. Essa foi a segunda ficha que caiu. A primeira o tamanho físico do trabalho e a segunda o fato de ser uma obra na rua pública pras pessoas pararem, olharem, passarem por ela e olhar de relance.
A terceira ficha também caiu, pois não é simplesmente uma obra pública. É uma obra pública que faz parte de uma onda de reconstrução e de construção de uma civilização melhor, do mundo melhor que a gente quer quer seja melhor do que esse que a gente tem. Um mundo sem esse neoliberalismo canalha, sem esse capital predatório, sem essa destruição permanente, sem essa quantidade de ódio, sem a repressão. Um mundo com liberdades, direitos, liberdades de expressão e de opinião, de existência, de ser, de gênero e de tudo.
São três fichas enormes que me lembraram um cartum maravilhoso da Laerte, que é uma enorme ficha telefônica, que ninguém usa mais, prestes a entrar em órbita e em combustão e o texto é ‘Finalmente a grande ficha vai cair’. Um dia a grande ficha cai. Então, metaforicamente, essas três fichas são essas fichas da Laerte. É um meteoro que me atingiu três vezes e eu ainda não me recuperei do susto. Vamos ver no dia 30 como será. Quando eu estiver ali diante da coisa mesmo, é provável que eu fique abalado.
De que maneira a sua trajetória pessoal e profissional influenciam o seu trabalho artístico?
Bom, eu sou cartunista e músico. Eu sou comunista desde criancinha, então basicamente meu trabalho artístico é menos a plástica em si, embora eu seja um cultor dessa estética da plástica, mas é uma mensagem, né?
Eu sou um chargista que uso a arte para dizer alguma coisa, eu sou um músico e canto a letra de outras pessoas, mas o meu repertório é de quem disse alguma coisa, então eu tento dizer de novo as palavras dessas pessoas. De Chico, de Bezerra da Silva, de Lua, de Tom, de Cartola, de Itamar Assunção, dos estandes de jazz, da música europeia. A mesma coisa sobre o desenho. É assim mesmo que as coisas me influenciaram, digamos assim, treinado pelos meus amigos, pelos meus pais. Olhar o outro e não esquecer dele.
Aí tudo o que eu quis fazer era produzir dessa forma mas nessa direção. De alguma maneira eu preciso estar dizendo alguma coisa. uma coisa influi na outra. Então tem lógica eu chegar nesse ponto fazendo uma obra inserida em uma luta social desse tamanho, porque é o que eu tenho feito na minha vida.
Houve algum momento na sua vida que impactou profundamente a sua arte?
Fui só vivendo. Eu planejei ser físico e matemático, era o que eu estava estudando. Aí entrei no movimento estudantil meio que por amor, não só ao movimento, mas por causa de uma moça que me apaixonei e que era do movimento. A partir daí, a compreensão da realidade que eu procurava chegou a mim.
Comecei a estudar, conversar, andar com os meus. Participei da reconstrução do movimento sindical em Belo Horizonte, participei da reconstrução da imprensa sindical e a tomada do sindicato das mãos dos pelegos. Então quando olhei para trás, eu já estava vivendo isso.
Nunca houve um momento em que eu tomei a decisão de fazer as coisas, elas me levaram. Igual a primeira vez que entrei no mar aqui no Rio de Janeiro, e a onda e a Iemanjá me devolveram aos trambolhões para a praia e fui atropelado pela realidade. No final das contas adorei isso.
Aroeira, você é conhecido por usar a arte como forma de resistência política e social. Como você enxerga o papel da caricatura e da ilustração nesse contexto?
Acho que o nome dela define bem. A charge é uma ilustração do momento e nesse contexto ela é uma bandeira, é uma coisa a ser colocada em um cartaz, a ser distribuída em uma rede social, convocando, alertando, explicando, contando e denunciando.
A luta social não é feita pela charge, em nenhum planeta ou mundo. Nada vai se transformar só pela charge ou só pela música, mas a gente sabe o papel que a charge e a música tem, sabe o papel que a música teve na outra ditadura para ajudar a derrubá-lá. Belchior, Chico, Caetano, todos eles empurraram a ditadura ladeira abaixo, ela caiu.
E a charge tem esse papel: ela ajuda, mas quem faz é gente Principalmente indo em uma manifestação, votando corretamente, participando de um grupo de estudos, entrando no sindicato, entendendo que individualmente a gente não é nada. Então, no final das contas, o papel da arte é auxiliar. A luta é feita por pessoas.
Como você consegue se comunicar com jovens e adultos através da arte e como você atravessa esses dois mundos?
Bom, existindo neles. Eu fui jovem, cresci, casei, tive filhos, separei de novo e etc. Vivendo e conhecendo pessoas de idades variadas e conversando com muita gente. Trabalhando no meio da arte, que é interessantemente democrático. Em uma roda de choro, eu tenho 70 anos e chego com o meu sax, e tem um menino de 14 anos tocando bandolim, tem uma moça LGBTQIA+ tocando um sete cordas, tem um senhor de 90 anos tocando um clarinete. Tem gente que é preta, branca, de origem indígena. Ali se tem uma espécie de pequena demonstração do que a utopia futura vai ser um dia.
Gente de qualquer idade, de qualquer orientação, qualquer maneira de existir; pintando o cabelo de qualquer cor, qualquer cor de pele, qualquer religião, qualquer maneira de ver o mundo, desde que olhe o outro. E o músico olha o outro, ele precisa tocar com os outros. Então, de certa maneira, eu acho que é um microcosmos da utopia que eu quero.
Como esses temas podem educar e inspirar mudanças na sociedade?
São os temas que decidem o futuro, né? Como chargista, eu falo das leis que são injustas, das leis que não existem e que deveriam existir. Falo da ação dos homens e mulheres, seres humanos que exercem, que executam e que impõem essa lei. Falo das pessoas que sofrem as consequências disso. Quando falo lei, me refiro ao Estado. Eu não sou um neoliberal de forma alguma, eu quero o Estado até o dia em que ele não possa existir.
Mas é um processo longo de reconstrução, de aprendizado crítico. Então acho que, de certa forma, a escolha de temas segue uma espécie de protocolo que é ao mesmo tempo de estar inserido no mundo, é o noticiário que existe, é a linguagem que eu tenho em comum com quem vai me ler, mas é também pedagógico, no sentido de que é preciso explicar alguma coisa, explicar o que está errado ou o que parece tão errado e que precisava ser diferente.
Explicar às vezes a perversidade de uma boa ideia que foi transformada, explicar a necessidade de uma nova mudança, mas sempre levando em conta o diálogo. Eu não sou um cara que quero derrotar meu inimigo, massacrá-lo ou eliminá-lo. Eu cito deus aqui, sem querer dizer nenhum deus especificamente. Acho que o mundo vai ter gente pensando de forma muito diferente, o que nós precisamos é encontrar maneiras de que isso não implique na eliminação do outro, daquele que pensa diferente.
Como você enxerga o futuro da ilustração política no Brasil?
Eu vejo um problema maior até do que na questão do Brasil, porque é no mundo. São vários aspectos, várias abordagens. Uma delas é a própria existência da inteligência artificial. Eu vi uma brincadeira na internet outro dia em que a moça fala assim: ‘Poxa, eu queria inteligência artificial para pagar minhas contas, arrumar meus negócios, arrumar minha cozinha, deixar a minha comida pronta. Aí eu poderia pintar, fazer poesia, tocar um instrumento. Mas é exatamente o contrário do que está acontecendo. Eu estou ralando pra caramba e a inteligência artificial tá se divertindo’.
A ilustração, assim como a música e como toda forma de expressão artística, está sofrendo uma espécie de concorrência desleal. Em segundo lugar, em um universo tão sensível, com tudo à flor da pele, é muito difícil fazer um desenho crítico, porque o cancelamento está sempre no horizonte de todo artista. Se ele escorregar em uma vírgula, em uma ideia, é pouco provável que ele obtenha perdão. Acho que é um momento difícil para expressar opinião. Acho que eu nunca vi, em meus 70 anos de existência, uma sociedade tão intrinsecamente censuradora. Em outros momentos não era assim.
Você sofreu censura em 2019, certo?
Sim, fui censurado em 2019. Fui atacado pela Lei de Segurança Nacional. Mas com a solidariedade dos colegas, com o apoio de advogados que ofereceram para trabalhar pra mim pro bono, conseguimos dobrar [o ataque]. Inclusive, criou-se até uma espécie de jurisprudência. A defesa do Miro Teixeira, que foi meu advogado, acabou sendo utilizada em outros casos de segurança nacional e a maneira como ele estruturou serviu de base argumentativa para o fim da LSN.
De certa forma, fui, mais uma vez, um daqueles caixotes, né? A onda chegou, me enrolou todo,caí na praia, e quando levantei a LSN tinha acabado e o meu processo tinha sido arquivado. Eu tive a solidariedade de centenas, de mais de 1000 cartunistas pelo mundo todo. E assim que funciona a vida. Você é um peão, mas às vezes o peão tem um papel que ele nem imaginava.
Que conselho você daria para jovens que desejam seguir uma carreira na caricatura ou na ilustração com foco em crítica social e política?
Apesar da concorrência, apesar da maior parte dos jornais, hoje, terem muito medo de publicar o cartum, acho que o desenho, a ilustração, é uma maneira tão elegante e tão bonita de se entender o mundo.
A arte, em geral, é uma das belas explicações do mundo. A ciência explica, a religiosidade explica o mundo, mas a arte tem uma maneira tão particularmente bonita e tocante. A arte faz a gente se arrepiar o tempo todo. Então eu aconselho que corram atrás disso, porque na pior das hipóteses, mesmo que o jornal esteja utilizando inteligência artificial, vai existir um nicho de pessoas que vai querer ver o seu desenho.
Eu reparei uma coisa nos TikToks da vida, que hoje em dia o método e a ação são um processo muito bonito. Então se vê o pintor pintando, o desenhista pintando. Então recomendo aos artistas, desenhem sim e muito, e filmem enquanto fazem isso, porque as pessoas ficam fascinadas. E aquilo é tão didático, hoje em dia se aprende tanto observando. Então lembre só disso: desenhe e não se esqueça de dividir com todo mundo tudo que você sabe a respeito.