25/10/2021

Elizabeth Lorenzotti

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Aqueles tempos tão terríveis continuam enevoados na minha memória. Eu me lembro bem é da notícia do assassinato de Vlado. Companheiros avisavam de casa em casa, pois além de os telefones serem censurados quase ninguém os tinha ainda.

Eu me lembro do chamado para a grande assembleia no dia seguinte, que ainda não sabíamos que seria enorme, umas trezentas pessoas, eu me lembro que havia quem quisesse fechar o Sindicato e estender uma faixa de luto, sem assembleia nenhuma. Pavor.

Mas houve e foi a partir daí que se deu o início da luta pela redemocratização do país.

Eu me lembro também de ter ido, na noite que se seguiu à notícia do assassinato, de casa em casa avisar para a assembleia. Eu me lembro especialmente de um rosto medroso dizendo não, e a mãe também, a filha era minha amiga, mas não foi.

Eu era militante desde que retomamos o Sindicato dos Jornalistas das mãos da pelegada. Vivia dia e noite na Rego Freitas, 530, sobreloja, morava perto, na mesma Vila Buarque.

Não me lembro como surgiu a ideia do abaixo-assinado que agregou tantos jornalistas no país todo. Eu tinha 25 anos e me lembro vagamente de discussões sobre as listas para pagar o espaço no Estadão. Também não me ocorre se o vetusto matutino cobrou menos ou mais.

Vai saber, não é?

Muitos assinaram, 1 mil 4, vejo agora a lista. Muitos não, por medo ou por conveniência. Vejo que vários já se foram, vejo amigos queridos e amigas queridas que continuaram na luta contra o terror.

Vejo outros que hoje fazem papel bem vergonhoso, cães de guarda de patrões, e quem imaginaria que se tornariam? Sim, sei, é anacronismo histórico falar hoje do que não era. E que fomos convocados a essas memórias para lembrar o enorme papel que um abaixo-assinado desses teve na denúncia da farsa do suicídio de Vladimir Herzog. Mas eu não me esqueço disso.

E sim, era preciso ter coragem, e juntos somos fortes e as forças progressistas todas estavam juntas.

Eu era redatora dos noticiosos da Rádio Tupi, dos Diários e Emissoras Associados, naquele edifício que ainda existe, no Alto do Sumaré. O antigo império então já estava em decadência. Como na maioria das redações, havia policiais e dedos-duros infiltrados. Eu me lembro que, no setor de Jornalismo, que abrigava redações de rádio e TV, um sujeito ameaçou quem fosse à missa ecumênica por Vlado. Mas não conseguiu nos deter. Fomos todos e driblamos a repressão da Operação Gutemberg, para que não chegássemos à Sé, lotada. O resto é História.

Não é fácil escrever agora, 23 de maio de 2021, tantos anos depois de restaurada a verdade, sobre um estado policial, sobre dias terríveis de anos terríveis de uma longa e mortal ditadura, vivendo em outro estado policial, pelo século 21.

Não, jamais imaginaríamos que um ser eleito por voto direto elogiasse torturadores, a tortura e a morte, e assim agisse sem que nada nem ninguém o impedisse.

Daqui, deste maio de 2021, lembro desta página de jornal amarela que acabo de doar, dentre outros documentos históricos do jornalismo recente, para o Acervo do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Guardei durante todos esses anos e encontrei mais uma vez fazendo pacotes para uma mudança.

Então finalmente, em meio à mesma mudança, consigo escrever esse pequeno relato desmemoriado. Leio na página do Instituto Herzog que aos 1 mil 4 jornalistas foi dedicado o livro de Fernando Pacheco Jordão Dossiê Herzog: Prisão, Tortura e Morte no Brasil, publicado pela primeira vez em 1979. A sexta edição é de 2005 e está em preparo uma sétima edição, por iniciativa da viúva de Fernando, Fátima Pacheco Jordão.

Não acho a primeira edição, em meio aos caixotes, com a carinhosa dedicatória do querido companheiro Pacheco Jordão, que escreveu o texto do abaixo-assinado.

Sinto saudades de tantos desses companheiros, bravos companheiros e companheiras, com quem atravessamos aquelas trevas com dignidade, coragem, mas morrendo de medo. Continuamos nas mesmas trevas, embora com outra embalagem. Que consigamos sair delas.

23/5/2021.

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