O Caso Herzog
Em julho de 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Estado brasileiro pela falta de investigação, julgamento e punição aos responsáveis pela tortura e assassinato do jornalista Vladimir Herzog, ocorrido em outubro de 1975. O tribunal internacional também considerou o Estado como responsável pela violação ao direito à verdade e à integridade pessoal, em prejuízo dos familiares de Herzog.
“A CIDH determinou que os fatos ocorridos contra Vladimir Herzog devem ser considerados como um crime de lesa-humanidade, conforme definido pelo direito internacional”, diz a sentença. Ao ser classificado como um crime contra a humanidade, o Tribunal concluiu que o Estado “não podia invocar nem a existência da figura da prescrição, nem a aplicação do princípio ‘ne bis in idem’, da Lei de Anistia ou de qualquer outra disposição análoga ou excludente similar de responsabilidade, para isentar-se de seu dever de investigar e punir os responsáveis”.
Por meio da sentença, a corte ordenou ao Estado brasileiro que reiniciasse, com a devida diligência, a investigação e o processo penal correspondente àqueles fatos, para identificar, processar e responsabilizar os responsáveis pela tortura e assassinato de Herzog. Além disso, o Brasil deveria adotar as medidas mais idôneas conforme as suas instituições para que se reconheça o caráter imprescritível dos crimes contra a humanidade e crimes internacionais, assim como arcar com os danos materiais, imateriais e custas judiciais e advocatícias.
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Amigo de adolescência de Vladimir Herzog, Luiz Weis foi um dos primeiros a saber do assassinato de Vlado. Jornalista, foi editorialista do jornal O Estado de S. Paulo e é colaborador do Observatório da Imprensa. É membro do conselho deliberativo do Instituto Vladimir Herzog.
Ao lado de Sérgio Bermudes e Marco Antônio Barbosa, Samuel Mac Dowell de Figueiredo foi um dos advogados responsáveis por representar a Família Herzog na ação declaratória movida contra a União Federal em 1978. O processo tinha a intenção de contestar a versão oficial de que Vladimir Herzog havia se suicidado, além de responsabilizar o Estado pela prisão arbitrária, tortura e morte do jornalista.
Fundador da Oboré Projetos Especiais, Sérgio Gomes é um dos jornalistas mais importantes da história do país. Amigo de Vlado, estava preso e chegou a ser torturado nas instalações do DOI-CODI em São Paulo no mesmo período em que Herzog foi assassinado. Atualmente, é conselheiro do Instituto Vladimir Herzog e coordenador do projeto Repórter do Futuro, concebido por ele na Oboré e que se propõe a contribuir com a formação de estudantes de Jornalismo.
Político e ativista ítalo-brasileiro, José Luiz Del Roio fundou, junto com Carlos Marighella, a Aliança Libertadora Nacional (ALN), em 1967. Em 2006, foi eleito senador no Parlamento Italiano pelo Partido da Refundação Comunista. Além de sua intensa e contínua militância, escreveu vários livros, entre eles “Zarattini: a paixão revolucionária”, “A história de um
Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo quando Vladimir Herzog foi assassinado pela ditadura, Audálio Dantas é um dos jornalistas mais importantes da história do país. Atualmente, é vice-presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e diretor executivo da revista Negócios da Comunicação. É autor do livro “As duas guerras de Vlado Herzog”, publicado pela editora Civilização Brasileira em 2012 e vencedor do Troféu Juca Pato no ano seguinte.
Ao lado de Samuel Mac Dowell e Sérgio Bermudes, o advogado Marco Antônio Rodrigues Barbosa foi um dos responsáveis por representar a Família Herzog na ação declaratória movida contra o Estado brasileiro em 1978. Foi presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e do Conselho de Defesa da Pessoa Humana (Condepe).
Um dos maiores compositores da história da Música Popular Brasileira, Aldir Blanc é também escritor. Em parceria com João Bosco, escreveu “O bêbado e a equilibrista”, eternizada na voz de Elis Regina, que se tornou um hino popular contra a ditadura militar.
Vladimir Herzog, o Vlado, foi jornalista, professor e cineasta. Nasceu em 27 de junho de 1937 na cidade de Osijsk, na Croácia (na época, parte da Iugoslávia), morou na Itália e emigrou para o Brasil com os pais em 1942. Foi criado em São Paulo e naturalizou-se brasileiro. Estudou Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) e iniciou a carreira de jornalista em 1959, no jornal O Estado de S. Paulo. Nessa época, achou que seu nome de batismo, Vlado, não soava bem no Brasil e decidiu passar a assinar como Vladimir. No início da década de 1960, casou-se com Clarice Herzog.
Começou a trabalhar com televisão em 1963. Dois anos depois, foi contratado pelo Serviço Brasileiro da BBC e mudou-se para Londres. Lá nasceram seus dois filhos, Ivo e André. Em 1968, retornou ao Brasil. Trabalhou na revista Visão por cinco anos e foi professor de telejornalismo na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP). Em 1975, Vladimir Herzog foi escolhido pelo secretário de Cultura de São Paulo, José Mindlin, para dirigir o jornalismo da TV Cultura.
Nesse tempo, Vlado foi vítima de uma campanha contra a sua gestão na direção de jornalismo da TV Cultura, levada a cabo na Assembleia Legislativa de São Paulo pelos deputados Wadih Helu e José Maria Marin, pertencentes ao partido de sustentação do regime militar, a ARENA. No dia 24 de outubro daquele ano, agentes do II Exército convocaram Vlado para prestar depoimento sobre as ligações que ele mantinha com o Partido Comunista Brasileiro, que atuava na ilegalidade durante o regime militar.
No dia seguinte, compareceu espontaneamente ao prédio do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, o DOI-CODI, localizado na rua Tomás Carvalhal, 1030, no bairro do Paraíso, em São Paulo. Lá, ficou preso com mais dois jornalistas: George Duque Estrada e Rodolfo Konder. Pela manhã, em depoimento, Vlado negou qualquer ligação com o PCB. A partir daí, os outros dois jornalistas foram levados para um corredor, de onde puderam escutar uma ordem para que se trouxesse a máquina de choques elétricos. Para abafar o som da tortura, um rádio com som alto foi ligado e Vlado nunca mais foi visto com vida. A versão oficial da época, apresentada pelos militares, foi a de que Vladimir Herzog teria se enforcado com um cinto, e até uma foto do jornalista morto na cela do DOI-CODI chegou a ser divulgada. Posteriormente, o autor da foto, Silvaldo Leung Vieira confessou a “farsa do suicídio” e que a imagem foi mais uma mentira contada pelos militares durante a ditadura.
A repercussão da morte do jornalista foi enorme. Ficou exposta aos olhos do país a crueldade do regime ditatorial. Manifestações populares, principalmente de estudantes, começam a eclodir, como não ocorria desde 1968. Uma semana depois do assassinato, mais de 8 mil pessoas participaram de um culto ecumênico na Catedral da Sé, em São Paulo, concelebrado pelo cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o reverendo James Wright. O fato mobilizou não apenas importantes setores da oposição, mas até o conservador empresariado paulista. Começava aí o processo que culminaria na redemocratização do País.
Em janeiro de 1976, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo encaminhou à Justiça Militar o manifesto “Em nome da verdade”, subscrito por 1.004 jornalistas. Era a primeira vez, naquele período de forte censura e repressão, que se ousava contestar publicamente a versão oficial de suicídio e reclamar a completa elucidação dos fatos. Em 1978, a Justiça brasileira, em sentença proferida pelo juiz Márcio José de Moraes, condenou a União pela prisão ilegal, tortura e morte de Vladimir Herzog. Em 1996, a Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos reconheceu oficialmente que ele foi assassinado e concedeu uma indenização à sua família, que não a aceitou, por julgar que o Estado brasileiro não deveria encerrar o caso dessa forma. Eles queriam que as investigações continuassem. O atestado de óbito, porém, só foi retificado mais de 15 anos depois.
Linha do tempo
24 de outubro de 1975
Vladimir Herzog é citado a comparecer ao DOI-CODI em São Paulo para ser interrogado sobre seus vínculos com o Partido Comunista Brasileiro (PCB).
25 de outubro de 1975
Após se apresentar ao DOI-CODI, Herzog é detido sem ordem judicial. Membros do exército o torturam e matam, porém, a versão oficial do exército diz que a causa da morte foi suicídio.
31 de outubro de 1975
Devido à pressão do público no Brasil, o Comando do Segundo Exército emite ordens para que sejam determinadas as circunstancias do suicídio de Vladimir Herzog. No dia seguinte, é aberto um Inquérito Policial Militar.
8 de março de 1976
O sistema de justiça militar arquiva a investigação da morte de Herzog, declarando que nenhum delito havia ocorrido por parte do DOI-CODI. A investigação é arquivada apesar do fato de que o médico que supostamente havia realizado a autópsia de Herzog testemunhou nunca ter visto o corpo do jornalista.
19 de abril de 1976
Clarice Herzog, esposa de Herzog, e seus dois filhos apresentam uma Ação Declaratória perante a Justiça Federal de São Paulo, requerendo que a corte declare a responsabilidade do Estado brasileiro pela prisão arbitrária, tortura e morte de Herzog. A família de Herzog declara que o Estado havia sido responsável pela segurança física do jornalista por sua presença no DOI-CODI e que a versão oficial de sua morte foi falsa na descrição dos eventos que haviam ocorrido no dia da morte de Herzog.
2 de julho de 1976
O Estado apresenta sua defesa às alegações e pede que a ação declaratória seja inadmitida.
27 de outubro de 1978
O juiz federal emite sentença sobre o caso Herzog declarando que o jornalista foi detido e morto devido a graves torturas.
28 de agosto de 1979
A Lei No. 6.683, conhecida como “Lei de Anistia”, é aprovada, outorgando anistia aos crimes políticos e aos crimes com eles conexos, praticados entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. A interpretação que se consolidou nacionalmente foi de que os crimes praticados por agentes do Estado do regime seriam conexos aos crimes políticos e portanto amparados pela Lei de Anistia.
27 de abril de 1992
Diante de novas informações publicadas na revista “Isto é, Senhor”, o Ministério Público do Estado de São Paulo requisita a abertura de inquérito policial para apurar as circunstâncias do Homicídio de Herzog.
13 de outubro de 1994
O Tribunal de Justiça de São Paulo determina o trancamento do inquérito policial, por considerar que os crimes descritos teriam sido objeto de anistia.
5 de março de 2008
Com base em fatos novos, procuradores do Ministério Público Federal encaminharam uma representação à divisão criminal da Procuradoria da República, para que fosse instaurada uma persecução penal em face dos responsáveis pelo crime de homicídio e tortura contra Vladimir Herzog.
19 de novembro de 2014
O representante do Ministério Público Federal com prerrogativa criminal proferiu seu parecer pelo arquivamento da investigação, argumentando que o trancamento do inquérito policial anterior havia feito coisa julgada material, e não poderia ser novamente processado.
9 de janeiro de 2009
O pedido de arquivamento é acolhido pela Juíza Federal competente, que defende ainda que os crimes praticados pelos agentes da ditadura militar estariam prescritos.
10 de julho de 2009
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) recebe do CEJIL a petição sobre o caso Vladimir Herzog.
28 de outubro de 2015
A CIDH publica seu Relatório de Mérito nº 71/2015 sobre o caso, no qual conclui que o Estado brasileiro é responsável pelas violações aos direitos à vida, à liberdade e à integridade pessoal de Herzog, e também pela privação de seus direitos à liberdade de expressão e de associação por razões políticas. A Comissão recomenda ao Estado brasileiro que investigue a detenção, tortura e morte de Herzog para identificar os responsáveis.
22 de abril de 2016
A CIDH apresenta o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, devido ao descumprimento do Estado das recomendações feitas pela Comissão.
16 de agosto de 2016
É submetido à Corte Interamericana o Escrito de Petições, Argumentos e Provas dos representantes da vítima e seus familiares.
14 de novembro de 2016
O Estado brasileiro apresenta sua Contestação.
24 de maio de 2017
Realização da Audiência Pública na sede da Corte Interamericana em San José, Costa Rica, com a presença dos representantes da vítima, e do Estado, contando com o depoimento de familiares e peritos.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos
A Corte Interamericana de Direitos Humanos é um órgão judicial autônomo, criado pela Organização dos Estados Americanos, cujo propósito é interpretar e aplicar tratados de Direitos Humanos, entre eles a Convenção Americana de Direitos Humanos. Trata-se de um tribunal composto por sete juízes dos Estados-membros da OEA, eleitos a título pessoal dentre juristas de autoridade moral, de reconhecida competência em matéria de Direitos Humanos e que reúnam as condições requeridas para o exercício das mais elevadas funções judiciais.
O caráter do tribunal é consultivo e contencioso. No plano consultivo, a Corte tem desenvolvido análises elucidativas a respeito do alcance e do impacto dos dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos, emitindo opiniões que têm facilitado a compreensão de aspectos substanciais da Convenção, contribuindo para a construção e a evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos no âmbito da America Latina.
No plano contencioso, a Corte tem jurisdição para apreciar questões que envolvem denúncias de violação dos direitos protegidos pela Convenção. Caso reconheça que efetivamente ocorreu alguma violação, o tribunal pode determinar a adoção de medidas que se façam necessárias à restauração do direito então violado, podendo condenar o Estado, inclusive, ao pagamento de uma justa compensação à vítima.
Composição atual da Corte. Na linha de cima: Eugenio Zaffaroni e Patricio Freire. Na linha de baixo: Humberto Porto, Eduardo Poisot, Roberto Caldas, Eduardo Grossi e Elizabeth Benito.
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O programa JC Debate, da TV Cultura, convidou Nemércio Nogueira, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, e Marlon Weichert, procurador da República e especialista em Direitos Humanos, para repercutir o julgamento do Caso Herzog na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Além deles, o programa também trouxe depoimentos de Clarice Herzog, viúva de Herzog e presidente do Instituto Vladimir Herzog, e de Beatriz Affonso, diretora do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), entidade que representará a Família Herzog no julgamento.
O Jornal da Gazeta, da TV Gazeta, levou ao ar trechos do depoimento de Clarice Herzog à Corte Interamericana de Direitos Humanos, durante a audiência realizada no dia 24 de maio. A reportagem também ouviu Ivo Herzog, filho de Vladimir Herzog e, atualmente, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog. Confira!
O programa Seu Jornal, da TV dos Trabalhadores (TVT), ouviu Ivo Herzog sobre o julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos do Caso Herzog. A reportagem também conversou com o jornalista Sérgio Gomes, amigo de Vladimir Herzog, que fez uma manifestação na Praça Vladimir Herzog durante a audiência na corte. Assista!
Por que o caso está na OEA?
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) enviou o Caso Herzog à Corte Interamericana de Direitos Humanos para que o Estado brasileiro seja julgado pela ausência de investigação e de punição aos responsáveis pela tortura e execução de Vladimir Herzog. O tema só chega à Corte porque o Estado brasileiro não realizou a justiça, mesmo depois de um relatório da CIDH determinar a investigação, o processamento e a punição dos envolvidos.
Antes disso, houve três supostas tentativas de investigação do caso. A primeira, logo depois do crime, pela própria Justiça Militar, que concluiu pelo suicídio do jornalista. Tal versão foi posteriormente desmentida após uma ação declaratória na Justiça Federal. Na segunda, em 1992, o Ministério Público do Estado de São Paulo pediu a abertura de um inquérito com base em novas informações, mas o Tribunal de Justiça decidiu pelo arquivamento, com base na Lei da Anistia, de 1979. Finalmente, em 2009, houve ainda uma tentativa do Ministério Público Federal, que novamente não obteve sucesso, desta vez sob argumento de prescrição.
Nesse meio tempo, o julgamento de uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2010, deu força aos defensores da Lei da Anistia. Por sete votos a dois, o STF endossou a interpretação vigente de que, em função de um acordo político, a Anistia beneficiou tanto os perseguidos políticos quanto os agentes de Estado e particulares que os perseguiram.
Diante disso, em dezembro de 2007, o procurador regional da República, Marlon Alberto Weichert, do estado de São Paulo, ofereceu uma representação à Corte Interamericana de Direitos Humanos em que propõe a persecução penal dos autores do assassinato do jornalista nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo, no dia 25 de outubro de 1975. O documento apresentado por Weichert trata dos crimes contra a humanidade cometidos no Brasil durante o regime militar e reivindica que o Estado deve apurar os fatos e responsabilizar os autores.
A Lei da Anistia
A Lei da Anistia Política foi promulgada em 1979 para reverter punições aos cidadãos brasileiros que, entre os anos de 1961 e 1979, foram considerados criminosos políticos pelo regime militar. A Lei garantia, entre outros direitos, o retorno dos exilados ao país, o restabelecimento dos direitos políticos e a volta ao serviço de militares e funcionários da administração pública, excluídos de suas funções durante a ditadura. Para ver as disposições completas da Lei, clique aqui.
No entanto, segundo recomendações da Comissão Nacional da Verdade, a lei não poderia ser aplicada para agentes públicos que realizaram crimes como detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres, pois tais violações são incompatíveis com o direito brasileiro e a ordem jurídica internacional, uma vez que se tratam de crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não passíveis de anistia.
A jurisprudência internacional ratifica a impossibilidade de existência de uma lei interna que afaste a obrigação jurídica do Estado de investigar, processar, punir e reparar tais crimes. A Comissão Interamericana considera que a Lei foi aprovada no período da ditadura, sem liberdades democráticas, numa espécie de autoanistia. Com base nisso, em 2010, a Corte da OEA responsabilizou o Brasil pelo desaparecimento de participantes da Guerrilha do Araguaia e considerou que as disposições da Lei da Anistia eram manifestamente incompatíveis com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Da mesma forma, em 2018, a Corte IDH condenou o Brasil pela detenção arbitrária, tortura e assassinato de Vladimir Herzog.
Charge do cartunista Latuff, publicada em 2014, intitulada “A Lei de Anistia e os torturadores de pijama”.
A importância deste julgamento nos dias atuais
Mais do que apurar o que efetivamente aconteceu, identificar e, se for o caso, responsabilizar os agentes envolvidos no episódio, esperamos que a repercussão internacional do Caso Herzog ajude o Brasil a rever sua política de segurança pública. O tenebroso período da ditadura militar no Brasil, que vigorou entre 1964 e 1985, aniquilou as possibilidades de construção de uma cultura democrática e enfatizou o controle do Estado em relação às chamadas “classes perigosas”. Em boa medida, o conceito da “doutrina de segurança nacional”, criado durante os anos de chumbo, continua vigorando na estrutura de nossos sistemas de segurança.
Tal situação perdurou mesmo depois da promulgação da Constituição Federal de 1998. Ou seja, apesar da mudança na política, houve pouca – ou quase nenhuma – transformação nas ações de segurança pública. E isso precisa mudar. “O caso Vladimir Herzog poderia ser um ponto de partida para um debate sério sobre o fim das polícias militares. A segurança pública vem sendo tratada secularmente da mesma maneira, em que a população é inimiga da polícia. O que aconteceu com ele, 40 anos atrás, continua acontecendo nos dias de hoje. A polícia de São Paulo mata por ano a mesma quantidade de pessoas que morreram na ditadura”, afirma Ivo Herzog, filho do jornalista assassinado e, atualmente, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog.
A ação declaratória na Justiça Federal
Em 1978, a Família Herzog moveu uma ação declaratória contra a União Federal a fim de contestar a versão oficial então vigente de que Vladimir Herzog havia se suicidado e de responsabilizar o Estado pela prisão arbitrária, tortura e morte do jornalista. Os advogados responsáveis por propor a ação contra o Estado foram Sérgio Bermudes, Samuel Mac Dowell de Figueiredo e Marco Antônio Rodrigues Barbosa. No primeiro momento, o juiz responsável pelo caso seria João Gomes Martins, mas o regime militar entrou com um mandado de segurança e impediu que Martins prolatasse a sentença. O raciocínio dos militares era de que Martins, às vésperas de completar 70 anos e se aposentar compulsoriamente, teria menos a perder condenando a União do que um jovem juiz substituto, com toda a carreira pela frente. O caso então caiu nas mãos de Márcio José de Moraes, auxiliar de Martins e juiz federal há apenas dois meses. Ele conta que tirou férias para se dedicar ao processo e, para garantir a segurança da esposa e das duas filhas, mandou-as para o interior.
Até que no dia 27 de outubro de 1978, três anos depois do crime, o juiz proferiu a sentença: “Pelo exposto, julgo a presente ação procedente e o faço para declarar a existência de relação jurídica entre os autores e a ré, consistente na obrigação desta, indenizar aqueles danos materiais e morais decorrentes da morte do jornalista Vladimir Herzog, marido e pai dos autores”. Graças à sentença do juiz Márcio José de Moraes, a Família Herzog recebeu, em março de 2013, um novo atestado de óbito que, ao invés do suicídio, aponta como causas da morte do jornalista lesões e maus-tratos. No entanto, falta ainda determinar os culpados. E o julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos pode, finalmente, fazer isso.
O culto ecumênico
Em 31 de outubro de 1975, o arcebispo emérito de São Paulo, cardeal Dom Paulo Evaristo Arns realizou um culto ecumênico em memória de Vlado, na Praça da Sé, região central da cidade de São Paulo. A manifestação reuniu 8 mil pessoas e se transformou na maior manifestação pública de repúdio à ditadura militar, desde 1964. Ao lado do arcebispo, estavam o rabino Henry Sobel e o reverendo evangélico Jayme Wright.
D. Paulo não se convenceu com a teoria do suicídio. Em seu discurso no dia da missa, ele foi direto: “Não matarás. Quem matar, se entrega a si próprio nas mãos do Senhor da História e não será apenas maldito na memória dos homens, mas também no julgamento de Deus”, disse D. Paulo, em trecho publicado no livro Dossiê Herzog – Prisão, Tortura e Morte no Brasil, de Fernando Pacheco Jordão.
No dia do culto, Erasmo Dias, então secretário de Segurança Estadual, bloqueou a cidade inteira com barreiras policiais, impedindo o acesso à Catedral da Sé. Ainda assim, as pessoas desceram de seus ônibus e automóveis e se dirigiram até o local. A própria Praça da Sé, situada em frente à Catedral, estava totalmente tomada por policiais. Apesar da repressão, a missa ocorreu normalmente até o final. Após o encerramento, carros sem placa atiraram bombas de gás lacrimogênio contra os participantes que tentavam sair da Catedral em passeata, dispersando o movimento. O assassinato de Vladmir Herzog e a grande manifestação popular na Catedral da Sé foram catalisadores da abertura política e da restauração da democracia no Brasil.
O manifesto “Em nome da verdade”
Em janeiro de 1976, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo encaminhou à Justiça Militar o manifesto “Em nome da verdade”, subscrito por 1.004 jornalistas. Além disso, o documento também foi publicado nos jornais Unidade e O Estado de S. Paulo – neste último como matéria paga. A manifestação dos jornalistas foi entregue à Justiça com 467 assinaturas e, desde então, recebeu novas adesões em outras capitais e já continha, até o fechamento daquela edição do Unidade, 1.004 nomes.
Era a primeira vez, naquele período de forte censura e repressão, que se ousava contestar publicamente a versão oficial de suicídio e reclamar a completa elucidação dos fatos. A repercussão do corajoso manifesto foi um importante marco na resistência à ditadura militar, ao repudiar publicamente o Inquérito Policial Militar (IPM) concluído pelo Exército.
Audálio Dantas, presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo na época, contextualiza este grande ato de bravura dos mais de mil jornalistas que concordaram em assinar o documento em plena época de repressão militar: “Cada assinatura constante daquele documento expressava um gesto de coragem: todos sabiam que o seu conteúdo, uma clara contestação à mentira oficial, poderia levar a represálias. E ninguém duvidava de que o texto, com as assinaturas, seria publicado. E como havia dúvida de que os jornais o publicariam, os signatários contribuíam com dinheiro para custear uma eventual publicação como matéria paga. Ou seja, pagavam para correr um risco”.
De fato, nenhum jornal publicou como notícia a íntegra do documento produzido pelos jornalistas indicando minuciosamente e denunciando as falhas do IPM. Com o dinheiro arrecadado, o abaixo-assinado foi publicado como matéria paga no jornal O Estado de S. Paulo em 3 de Fevereiro de 1976, com o texto e a lista completa dos 1.004 jornalistas que o subscreviam. Em breve, a Praça Memorial Vladimir Herzog, no centro da cidade de São Paulo, receberá uma transcrição do documento histórico, com texto e assinaturas. No local, hoje é possível encontrar um mosaico que reproduz a obra “25 de outubro”, do artista plástico Elifas Andreato, assim como a escultura “Vlado Vitorioso”, versão ampliada por Giusepe Bôsica do conceito de Andreato.
O Instituto Vladimir Herzog
Criado em 25 de Junho de 2009, o Instituto Vladimir Herzog luta pelos valores da Democracia, Direitos Humanos e Liberdade de Expressão. Essa missão requer o resgate da nossa História – especialmente da mais recente, ocultada pela ditadura sob sistemática censura – e a sua exposição às novas e às próximas gerações. Almejamos transformar a cultura da sociedade para transformar a própria sociedade. Trabalhamos na formação dos valores do indivíduo, desde os seus primeiros anos de vida, buscando a vivência do respeito à diversidade em todas as dimensões e a consciência de seus direitos e como buscá-los. Inspirados na grandeza e nos valores de Vlado, não é o medo que nos move, mas a confiança no ser humano e em seu potencial. Por isso, garantir a plena Liberdade de Expressão é uma de nossas missões. Este valor não é um direito garantido; é preciso estar atento para assegurar o diálogo e a tolerância às opiniões diversas na sociedade.
Tendo como bandeira a frase de Herzog “Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados”, o Instituto é uma organização sem fins lucrativos e com neutralidade político-partidária. Temos o privilégio de caminhar, no presente, com a sociedade, em direção a um país mais íntegro e socialmente responsável. Trabalhamos para resgatar as convicções de Vladimir Herzog: uma sociedade que mantenha sua capacidade de indignação e sua ação transformadora.
É esse o caminho que tem percorrido o IVH para cumprir sua missão: nos nossos oito anos de existência, concentramos ações e esforços na concepção e implementação de ações eminentmente educacionais. Todos os projetos e programas que o IVH cria, implementa ou dos quais participa como parceiro têm um visível rótulo educacional e se destinam a construir uma cultura de respeito e formação do cidadão – educação em direitos humanos nas escolas e nas empresas, prêmios de jornalismo, palestras, cursos, seminários, portais de internet, livros, teatro, concertos, entre outros.
O Centro Pela Justiça e o Direito Internacional
No início dos anos 90, o Sistema Interamericano para a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos começou a emergir como um importante fórum para a proteção dos direitos das Américas. A jurisprudência foi evoluindo constantemente, como resultado das novas resoluções emitidas pelos órgãos do Sistema. O surgimento deste novo sistema normativo representou um grande desafio para as organizações e defensores de direitos humanos que trabalhavam na região e não tinham o conhecimento e técnica necessários para aproveitar ao máximo o potencial do Sistema Interamericano.
Em resposta a esta situação, em 1991, um grupo de proeminentes defensores de direitos humanos de todas as Américas se reuniram em Caracas, Venezuela, com a intenção de criar uma organização regional que buscaria justiça, liberdade e uma existência digna para os habitantes de todos os países do hemisfério, concentrando seus esforços no uso do direito internacional dos direitos humanos e os órgãos do Sistema Interamericano. Assim nasceu o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL).
Em seus primeiros anos, o CEJIL focou principalmente na proteção dos direitos civis e políticos, litigando a maioria de seus casos com base no direito à vida, à integridade física, ao devido processo legal ou a liberdade de expressão. Mais tarde, em resposta às necessidades emergentes, o CEJIL expandiu sua atuação ao dedicar maior atenção aos direitos econômicos, sociais e culturais e aos direitos coletivos dos grupos vulneráveis (incluindo povos indígenas, mulheres, crianças e defensores dos direitos humanos).
A missão do CEJIL é assegurar a plena implementação de normas internacionais de direitos humanos nos Estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), mediante o uso efetivo da Comissão e Corte Interamericanas e outros mecanismos de proteção internacional.
A organização oferece um serviço jurídico gratuito a centenas de vítimas de violações de direitos humanos, especializada no sistema interamericano de proteção. O programa de defesa do CEJIL, único com alcance em todos os países do continente e consequente diversidade, procura assegurar reparação de danos a vítimas, sanções legais aos responsáveis envolvidos nas graves violações e, principalmente, atua na intervenção junto aos estados para concretizar a prevenção de violações futuras. Baseado em sua extensa experiência prática, o CEJIL também realiza uma importante tarefa de educação e difusão para facilitar o conhecimento e uso de ferramentas do direito internacional dos direitos humanos a nível local.
O CEJIL possui como visão a construção do Continente Americano plenamente democrático, livre do temor e da miséria tal qual estabelece a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o preâmbulo da Convenção Americana de Direitos Humanos. Uma região com instituições fortes, baseadas no Estado do direito, que assegurem, mediante um marco legal adequado – práticas e políticas públicas de acordo com os estandartes de direitos humanos que se complementem com uma proteção regional ágil, efetiva e capaz de tutelar os direitos fundamentais das pessoas e dos povos.
Nossos objetivos:
- Contribuir para diminuir a desigualdade e exclusão que impera na região, para garantir o direito de igualdade e o respeito pela dignidade das pessoas;
- Abordar as graves violações de direitos humanos vinculadas com a vulnerabilidade da vida, integridade e segurança por diferentes atores, e contribuir para a realização de justiça;
- Contribuir para o fortalecimento das democracias, em particular do Estado de Direito e das instituições democráticas de controle, os sistemas de administração de justiça, a sociedade civil, defensores e defensoras de direitos humanos e outros atores sociais imprescindíveis.
- Contribuir para o aumento da eficácia do Sistema Interamericano, favorecendo o acesso igualitário de todas as pessoas aos mecanismos de proteção, as em seu funcionamento e a plena implementação de suas decisões.
Como exemplo do nosso trabalho, destacamos o caso Maria da Penha, em que o CEJIL Brasil denunciou o país perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos por não tomar medidas efetivas para prevenir e erradicar a violência de gênero e pelo padrão de impunidade refletido nas respostas do Poder Judiciário frente a este tipo de agressão. A comissão responsabilizou o Estado brasileiro pela violação dos direitos humanos, culminando na Lei Maria da Penha e na exigência de adoção de medidas para garantir a efetiva punição, prevenção e erradicação da violência contra as mulheres no país.
Outro caso emblemático litigado pelo CEJIL na Corte Interamericana de Direitos Humanos foi o caso dos desaparecidos políticos da Guerrilha do Araguaia, cuja sentença da Corte foi publicada em 2010. E representou uma nova página relacionada os crimes da Ditadura Militar realização de verdade e justiça e seu trâmite na Corte Interamericana promoveu a criação da Comissão Nacional da Verdade e a Lei de Acesso a Informação.
Para mais informações, acesse a nossa página na Internet http://www.cejil.org.