Pouco antes das 10h da manhã do último sábado (16), a movimentação nos degraus da Catedral da Sé ainda era tímida, mas já sinalizava que aquele não seria um dia típico na igreja. Em pequenos grupos, pessoas chegavam portando cartazes, panfletos e camisetas com mensagens em defesa da democracia.
Bem próxima da entrada principal, uma senhora entregava rosas brancas de papel aos recém-chegados, que eram recepcionados também por um grande mural com as fotos de Bruno Pereira, Dom Phillips, e indígenas vítimas do genocídio dos povos originários, além de Chico Mendes e Dorothy Stang. Apoiada em uma das paredes, uma faixa laranja e preta falava mais alto que qualquer burburinho na escadaria: “Justiça para Dom e Bruno”.
Organizado pela Frente Inter-religiosa Dom Paulo Evaristo Arns por Justiça e Paz, em parceria com o Instituto Vladimir Herzog, a Comissão Justiça e Paz de SP, a Comissão Arns e a OAB-SP, o ato inter-religioso em defesa dos povos indígenas e homenagem a Dom Phillips e Bruno Pereira, assassinados em 5 de junho, lotou a Catedral da Sé em um piscar de olhos. Presencialmente, a estimativa era de que cerca de 1.500 pessoas compunham a multidão, online o público era 30 vezes maior: mais de 47.000 espectadores acompanharam o ato através das transmissões ao vivo nas redes sociais.
Após uma abertura musical do coral indígena Opy Mirim, o ato foi iniciado pelas falas das lideranças indígenas Máximo Wassu e Maria Guarani. “É uma tristeza que nosso povo esteja morrendo por nossos territórios. Somos um povo que vem da terra e que sobrevive dela. Hoje não estamos pedindo só justiça, nós queremos os nossos direitos”, disse Maria. Lamentando o que aconteceu com o jornalista e o indigenista, Máximo pediu a todos os presentes que levassem adiante a mensagem da luta indígena e fez uma oração dedicada aos dois. “E lá no pé do cruzeiro, Jurema, eu canto com maraca na mão. Pedindo a Jesus Cristo a nossa proteção”, entoou de mãos dadas com Beatriz Matos e Alessandra Sampaio, esposas de Bruno e Dom, respectivamente.
Também presentes no altar-mor da Catedral, representantes católicos, anglicanos, metodistas, pentecostais, judeus, muçulmanos, bahá’ís, budistas, kardecistas, dos povos tradicionais de matrizes africanas e da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias fizeram falas focadas na importância de defender os povos originários, o meio ambiente e aqueles que lutam para preservá-lo. “Por todas as vidas tiradas, pelo sangue derramado em nossa terra, peço a cada ancestral e aos meus orixás que abençoe todas as famílias que vêm perdendo pessoas importantes”, disse a ialorixá Omi Lade.
Recordando o culto ecumênico de 1975 em memória de Vladimir Herzog, o arcebispo Dom Pedro Luiz Stringhini apontou como mais uma vez a Sé era palco de um ato em favor dos direitos humanos, da justiça e da paz.
“Naquele momento, anunciaram e aconteceu que a ditadura ia acabar e a democracia ia chegar. Hoje, 50 anos depois, estamos aqui para dizer que a democracia não vai embora”, declarou sob fortes aplausos. E completou: “É hora de se mobilizar, se necessário indo às ruas, para defender a democracia e as eleições. (…) Para que a civilização vença a barbárie. (…) É preciso sonhar, reconstruir nosso país, vislumbrando um horizonte mais belo e mais feliz para todos os brasileiros, pela democracia, pela justiça social e pela paz”. Afirmou Dom Pedro Luiz Stringhini.
Um dos momentos de maior emoção foi o abraço compartilhado entre Clarice Herzog e Alessandra Sampaio e Bruna Matos. Ainda que breve, o gesto simbolizou um encontro entre passado e presente marcados pela resistência diante de um Estado que, no lugar de proteger seus cidadãos, contribui diretamente com suas mortes. Destacando a persistência, a ética e a esperança de Dom, Alessandra falou sobre o profundo amor que o marido tinha pela natureza e a importância do engajamento coletivo na conservação e respeito aos povos tradicionais: “Não tem opção, a gente tem que seguir essa luta. É uma luta de todos nós brasileiros.”
“Eu acredito muito que a força deles, inclusive espiritual, é também o que está movendo a gente”, disse Beatriz, comentando o quanto os dois eram parecidos. “O Bruno também era muito movido por um amor ao que realmente importa. Pra ele, nada era mais importante que a defesa dos direitos dos povos indígenas, no sentido de que são eles que garantem a nossa biodiversidade e a nossa existência nessa terra”. Ecoando as palavras de Alessandra, ela finalizou sua fala com um clamor para que casos como o de Dom e Bruno não se repitam.
Além das apresentações musicais que intercalaram os discursos das autoridades presentes, também foram exibidos vídeos produzidos pela organização do ato e pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), região onde o crime ocorreu, chamando atenção para a escalada de violência contra os indígenas. Com tom semelhante, o manifesto lançado pelos realizadores do ato foi lido na íntegra. “Devemos relatar e denunciar a violência que se impõem sobre esses povos, exigir que sejam tomadas as providências devidas para a sua proteção, e transformar todas as crenças e estruturas que dão espaço para a violência”, diz o documento.
Os momentos finais da solenidade foram marcados pelas canções Béradêro e Deus me proteja, de Chico César, e O canto da cidade, de Daniela Mercury. Ladeada por Alessandra, Beatriz e os demais convidados, a cantora baiana encerrou o ato puxando um coro do hino nacional brasileiro que foi entoado por todos os presentes.
Após o ato, uma coletiva sobre o andamento das investigações do caso foi realizada com a presença das esposas, lideranças indígenas, Chico César, Daniela Mercury e representantes de organizações ligadas à defesa dos direitos humanos, entre eles Ivo Herzog e Rogério Sottili, respectivamente presidente do Conselho e diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog. “Se a gente não olhar para a importância que tem a defesa da democracia, nós teremos muitos Doms e Brunos. O ato de hoje foi um grito de ‘Basta’, um grito de resistência”, declarou Sottili que também destacou a responsabilidade do atual presidente Jair Bolsonaro frente ao aumento da violência contra os povos indígenas, defensores dos direitos humanos e jornalistas.
Ainda na coletiva, o Presidente do Conselho do Instituto Vladimir Herzog, Ivo Herzog, afirmou que tais violências e os assassinatos de Bruno e Dom resultam também da impunidade que existe no Brasil em relação aos crimes cometidos por agentes do Estado, especialmente durante a ditadura, afirmando ser urgente a revisão da Lei Geral de Anistia. “Se tivéssemos feito justiça no passado de fato, não estaríamos aqui hoje”, diz Herzog.