05/07/2010

Arcanjo da imprensa livre

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Mauro Chaves

Por mais que se tenha julgado indissociáveis, nas últimas décadas, a preservação da liberdade de imprensa e a plena vigência do Estado Democrático de Direito, resquícios contagiosos do autoritarismo, às vezes pouco perceptíveis – porque habilmente disfarçados de nobres princípios de “controle social” -, mantêm-se, em nosso país, como um fértil serpentário de cerceamento da liberdade de expressão. Os muitos recuos em tentativas – sejam acintosas ou sutis – de controlar a livre circulação de informações e opiniões na sociedade brasileira não significa que a mentalidade censória tenha sido banida do mapa político nacional.

As formas e os pretextos de que lançam mão os detentores de tal mentalidade podem muito variar.

Valores inquestionáveis são arregimentados numa aleivosa confrontação, como se sua preservação fosse incompatível com o direito de o profissional da comunicação informar e, mais importante, o de a sociedade ser informada. As razões da privacidade, do resguardo da imagem e da intimidade dos cidadãos têm sido, muitas vezes, invocadas para deixar em total opacidade as mais cabeludas falcatruas praticadas com a coisa pública.

Produzem-se projetos para a atividade da comunicação que, a pretexto de impor qualificação profissional ou “responsabilidade social”, o que pretendem, no fundo, é a sujeição sindical, atrelada à conveniência política governamental. Propõem-se “diretrizes” de institucionalização do respeito aos direitos humanos que, além de tolher a liberdade de expressão, ofertam escoras de sustentação favoráveis aos veículos de comunicação que se mostrem mais dóceis aos detentores do poder – inclusive estabelecendo um ranking de classificação, realizado por comissão oficial de julgadores, sobre o que esta entenda ser o “grau de respeito” que cada veículo tenha, em relação aos “direitos humanos”.

Esses projetos de “controle social” da atividade da comunicação – sempre impondo alguma forma de censura ou de cerceamento da liberdade de expressão, o que a nossa Constituição repudia com firmeza sem paralelo em outros textos constitucionais do mundo (afora a Primeira Emenda à Constituição norte-americana, matriz institucional da liberdade de imprensa das democracias contemporâneas) -, por mais que sejam minimizados ou “flexibilizados”, por pressão da opinião púbica ou resistência da própria mídia, sempre dão a impressão de estar com data marcada de retorno – ou de recuperação de sua intolerância original.

Por outro lado, o chamado “segredo de Justiça”, plenamente justificável em conflitos familiares com consequências judiciais – em especial quando há envolvimento de menores -, tem sido usado e abusado para sonegar à sociedade brasileira informações de relevante interesse público, por se referirem a crimes cometidos contra o patrimônio coletivo. Eis aí uma outra forma de cerceamento esconso da liberdade de expressão, das muitas que sobrevivem como entulho autoritário do País redemocratizado.

Acresce que em nosso continente latino-americano muitos já são os exemplos, atuais, de tolhimento e perseguição a veículos de comunicação e profissionais de imprensa não submissos aos detentores do poder. É como se um surto endêmico de censura estivesse incubado e emergisse forte, pondo fim ao prazo de validade do que supúnhamos ser uma vacina democratizante tomada pelas nações deste continente há cerca de duas décadas. É necessário, pois, que a sociedade brasileira se mantenha atenta a quaisquer indícios de ameaça ao sustentáculo maior do Estado Democrático de Direito – ou seja, a plena liberdade de expressão, que nossa dura experiência histórica fez o constituinte proteger com todas as ênfases, na Constituição promulgada há 22 anos.

Por tudo isso e pela preservação da consciência crítica, indispensável ao desenvolvimento da plena democracia no Brasil, independentemente dos partidos ou das pessoas que exerçam quaisquer dos Poderes de Estado, são mais do que oportunos os eventos de comemoração de um ano de existência do Instituto Vladimir Herzog, criado em homenagem ao jornalista morto em outubro de 1975 pelos órgãos de repressão da ditadura militar. O jornalista, que hoje teria completado 73 anos, tornou-se uma figura simbólica de resistência, tal como se fora um arcanjo incumbido de proteger, com coragem e vigor, a imprensa livre em nosso país. O instituto foi criado como um “espaço de reflexão e produção de informação que garanta o direito à justiça e o direito à vida”. Neste primeiro ano de existência já desenvolveu importantes atividades culturais, entre as quais a produção de debates, em escolas, sobre direitos humanos e liberdade de imprensa – com relatos e reprodução de textos do tempo em que a imprensa alternativa consignava sua resistência ao regime autoritário. Mas, por toda a sua carga simbólica, também imagino o Instituto Vladimir Herzog como um observatório avançado, atual, da liberdade de expressão, equipado para detectar quaisquer sinais de recidiva do autoritarismo censório. E nesse sentido merece todo o apoio da sociedade brasileira.

P. S.: Hoje à noite, às 21 horas, na Sala São Paulo, o Instituto Vladimir Herzog fará o evento que denominou Encontro Musical pela Democracia, Educação e Felicidade. Talvez seja para enfatizar que faltando algum dos dois primeiros valores a sociedade brasileira jamais chegará ao terceiro. Haverá a participação da Orquestra Filarmônica Bachiana Sesi-SP, da cantora Fafá de Belém, da bateria da escola de samba Vai-Vai e do coral A Música Venceu, de Paraisópolis, tudo sob a regência do maestro-pianista João Carlos Martins, um mestre exemplar do recomeço.

JORNALISTA, ADVOGADO, ESCRITOR, ADMINISTRADOR DE EMPRESAS E PINTOR. E-MAIL:[email protected]

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