Por Marcelo Pellegrini, da Carta Capital
Má formação policial e omissão do poder público e da sociedade são a base da cultura de violência, afirma delegado e autor de livro sobre tortura
Município Dias D’Ávila, Bahia, 14 de junho de 2015. Um morador de 62 anos tem sua casa invadida por quatro policiais, durante a madrugada, e é torturado por mais de uma hora e meia. A tortura é dolorosa: socos que deixaram feridas nos ombros, mandíbula, joelhos e uma perfuração no ânus causada por um cabo de vassoura. A sessão de violência foi motivada pela suspeita de que o idoso, que não possui antecedentes criminais, seria um narcotraficante. Os policiais, porém, não visavam sua prisão: queriam dinheiro.
A história descrita é representativa da forma de agir da polícia brasileira, segundo Marcelo Barros Correia, delegado em Fernando de Noronha (PE) e doutor pela Universidade de Salamanca, na Espanha. Autor do livro Polícia e tortura no Brasil, Correia entrevistou policiais de todo o País para sua pesquisa e afirma que a tortura é um método amplamente utilizado pela polícia brasileira, embora seja proibida pela Constituição.
Segundo ele, muitos policiais começam a torturar amparados por uma moralidade socialmente aceita de que a tortura é legítima para resolver crimes. No entanto, na prática, “a tortura é usada para fins pessoais como na resolução de crimes patrimoniais que oferecem recompensas e ascensão profissional ao policial”. Para ele, a tortura atual não é fruto da ditadura militar, mas de uma ideia de opressão aos grupos menos organizados da sociedade que remonta ao período colonial.
CartaCapital: A tortura praticada hoje é um resquício da ditadura militar?
Marcelo Barros Correia: Na verdade, o padrão de tortura praticado antes e depois da ditadura é o mesmo. Durante a ditadura, a liberdade de torturar e o poder de não precisar dar resposta às demais instituições eram muito maiores e permitiram a aplicação de uma tortura mais sofisticada. A supressão dos direitos individuais e das garantias legais fizeram com que a tortura fosse praticada de forma mais intensa e com mais requinte. A simplicidade da tortura de hoje seria, de certa forma, um retrocesso nos métodos. Atualmente, a tortura mais realizada pela polícia é a do saco plástico visando o sufocamento, algo muito rudimentar em comparação com a tortura da ditadura. O padrão de hoje é muito mais próximo ao padrão de antes da ditadura. Os policiais usam plástico porque, a princípio, uma sacola na viatura não incrimina ninguém.
CC: Mas por que as torturas do período Vargas ou de períodos anteriores não são lembradas?
MBC: Porque elas atingiam setores vulneráveis e mais pobres da sociedade. A diferença principal é que a tortura do período militar atingia principalmente inimigos políticos do regime, entre eles acadêmicos e pessoas da classe média. A formação das nossas universidades, por exemplo, é posterior à ditadura Vargas. Com uma efervescência acadêmica maior e com a tortura visando acadêmicos ou estudantes que conhecem seus direitos constitucionais, as denúncias e as respostas contra a tortura aparecem mais e são mais contundentes.
CC: Em seu livro, o senhor fala da diferença entre uma tortura contra pessoas “visíveis” e “invisíveis”. A tortura no Brasil ainda faz esta distinção?
MBC: A tortura existe e existirá no Brasil por muito tempo porque os mecanismos que a produzem seguem intocáveis. O caso Amarildo é uma exceção que ganhou repercussão, mas existem vários outros “Amarildos” que seguem sendo torturados e não viram notícia. O Amarildo é um invisível que por uma circunstância ganhou visibilidade. No entanto, isso não altera em nada o quadro de invisibilidade dos demais. A imprensa, por exemplo, trata o caso Amarildo especificamente, mas não discute as circunstâncias que levam a esta prática.
CC: Quais circunstâncias são estas?
MBC: A academia policial, por exemplo, tem um papel fundamental neste processo. As academias deveriam fornecer um conhecimento técnico de como fazer uma investigação sem utilizar a tortura, mas não conseguem atingir este nível técnico profissional. Ou seja, o policial sai da academia sem saber manusear uma arma, sem saber fazer os procedimentos normais de trabalho… o ensino é totalmente desconexo com a atividade policial. A consequência disso é que o policial aprende tudo nas ruas e assimila as velhas práticas. Além disso, também há dentro das academias um currículo oculto, algo ensinado fora da sala de aula, nos corredores. É como se o policial assistisse uma aula de Direitos Humanos, mas nos corredores ouvisse de colegas que, na prática, sem tortura não se descobre nada.
CC: Como alterar essa visão?
MBC: A academia deveria desconstruir a imagem das pessoas que entram para a polícia e fornecer alternativas ao modelo atual. Temos um imaginário coletivo de que a polícia é violenta e devemos evoluir essa percepção. Também é preciso existir um interesse institucional de diversas áreas. As instituições policiais estão no limite da capacidade que podem atender, por isso, é impossível que elas se auto reformem.
Por outro lado, o Poder Judiciário é omisso e conivente com casos de tortura policial. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) tampouco fala sobre isso. Nas universidades, há muitos debates sobre violência policial, mas todos incapazes de oferecer propostas de mudanças para o modelo de polícia que temos. O Executivo, por sua parte, também é omisso em criar diretrizes para melhorar controlar a polícia. Ou seja, todas as instituições do Estado ajudam a perpetuar a tortura.
CC: Não há interesse ou organização dos setores da sociedade para reformar a polícia?
MBC: Sim. A população brasileira, em sua maioria, é bastante favorável às práticas de violência da polícia. Cerca de seis em cada dez brasileiros legitimam a tortura policial. Esse apoio da população, de certa forma, acoberta as práticas dos policiais. O que eu vejo é que a instituição policial não tem força para se reformar e as outras instituições não são propositivas para resolver este problema. Há uma inação cultural e não tentamos mudá-la.
A violência contra a mulher, por exemplo, é uma questão cultural, mas a sociedade está tentando sair deste padrão. Em relação à tortura, não vejo esse desejo. Por isso, arrisco dizer que a tortura é uma política de Estado no Brasil.
CC: Para que a tortura é usada no Brasil?
MBC: Na investigação de crimes patrimoniais, principalmente. Entre os policiais entrevistados, todos faziam referência às delegacias especializadas, como roubos e furtos, roubos de carga, roubos de bancos… Essas unidades têm uma vocação maior para a tortura. Isso é interessante porque, quando os policiais evocam a tortura, eles sempre o fazem como algo necessário para salvar vidas. Na prática, porém, não há nada de nobre nisso. A maioria dos policiais está interessada em recuperar uma carga visando a recompensa ou ascensão profissional. Ou seja, a tortura é motivada por interesses financeiros e pessoais.
CC: No Brasil, o torturador é punido?
MBC: Há várias falhas nas corregedorias de cada estado em relação à punição do policial. Por exemplo, na maior parte das corregedorias, é o chefe de polícia quem dá a última palavra sobre a investigação realizada na corregedoria. Isso é um problema porque, ao mesmo tempo em que se cobra resultados, se obriga o chefe de polícia a punir os policiais que se excederam para atingir as metas da instituição. Seria como pedir ao chefe de polícia para dar um tiro no próprio pé. Por isso, a necessidade de uma maior independência ou de uma carreira diferenciada nas corregedorias. Sem isso, é comum um policial estar investigando um colega hoje e amanhã ser deslocado para trabalhar ao lado de quem investigava. Eu posso dizer com tranquilidade que praticar tortura na polícia é mais tranquilo do que investigar um colega acusado de tortura.
CC: Por que a tortura ainda é comum no Brasil?
MBC: Temos que ter consciência de uma coisa: poder sem controle gera violência em qualquer relação ou ambiente. E a atividade policial tem um grau de violência intrínseco. Por isso, temos que criar instrumentos de controle. A polícia europeia é menos violenta porque a sociedade exigiu determinados padrões de investigação e de comportamentos. A violência policial na Europa está muito associada a grupos terroristas ou de imigrantes. Ou seja, assim como nós, brasileiros, eles oprimem grupos que possuem uma baixa capacidade de lutar por seus direitos.
CC: A tortura funciona como método de confissão e de investigação?
MBC: Ela é útil, mas não pode ser vista como eficiente. Ela seria eficiente se alcançasse a verdade sem punir inocentes, o que nem sempre acontece. Mas, em geral, ela é bastante útil. Se um policial tortura alguém para descobrir onde estão os objetos roubados e descobre, a tortura foi útil no entendimento do policial. É por isso que a tortura é usada em todo o Brasil e, infelizmente, de uma forma muito maior do que as pessoas supõem. Hoje, as polícias não tem treinamento para realizar investigações de forma técnica. Além disso, há uma demanda e uma pressão grande sobre as polícias, o que faz com que a tortura seja um caminho mais rápido e certo para se investigar algo.
CC: Mas nada garante que o torturado não te forneça uma atividade falsa que complique ainda mais a investigação, correto?
MBC: Na prática, a tortura dá resultados em muitos casos. Diante de intensa dor e sofrimento, há casos em que alguém confessa algo que não fez ou que suporta e não confessa nada, mas estes casos são exceções. Resta saber se os fins justificam os meios. Sabemos que há o risco de se atingir inocentes antes de chegar ao culpado. Outra questão que devemos nos fazer é se é legítimo usar a violência para descobrir crimes. Isso é um problema porque o crime de tortura é mais grave do que os crimes que se propõe a descobrir.