Ex-presos políticos descreveram funcionamento do aparelho de repressão
23/09/2014 14:47 / ATUALIZADO 23/09/2014 20:35
foto Igor Mello / O Globo
RIO — A Comissão Nacional da Verdade (CNV), em uma iniciativa inédita, periciou as instalações do 1º Batalhão de Polícia do Exército (BPE), onde funcionou Doi-Codi do Rio de Janeiro durante a Ditadura Militar. Sete presos políticos acompanharam os membros da comissão e descreveram o funcionamento do aparelho de repressão a peritos levados ao local. Foram feitos, inclusive, registros fotográficos e em vídeo, que darão subsídios à elaboração do relatório final da CNV.
Ana de Miranda Batista, uma das presas políticas que acompanharam a comissão, descreveu a visita como um “momento histórico” para o país.
— É muito simbólico isso, acho que a gente está começando a viver tempos um pouco diferentes. A maior emoção foi quando eu entrei. Eu não conseguia imaginar que a gente estava entrando dessa maneira, pela porta da frente. Nós do coletivo Memória, Verdade e Justiça do Rio de Janeiro tínhamos a posição firme de que nós deveríamos depor nos locais de tortura, para torná-los visíveis e para que a gente pudesse lembrar melhor o que aconteceu. Mas aqui dentro do Doi-Codi, que foi o pior local que eu passei, não imaginava que isso fosse possível — afirmou.
Segundo ela, apesar de alguns locais terem sido alterados com o tempo, foi possível reconhecer todos os locais de tortura que existiam no local. A grande parte deles se concentrava no prédio do Pelotão de Investigações Criminais (PIC), que fica nos fundos.
— Alguns locais de tortura estão bem modificados por dentro, tem paredes novas, mas alguns outros, como a sala Rocha, nós reconhecemos bem. As geladeiras, o local onde me colocaram um jacaré no corpo quando estava nua, o local de fuzilamento simulado, a enfermaria onde o dr. Amílcar Lobo nos atendia para a gente voltar para a tortura — descreveu.
O jornalista Alvaro Caldas, ex-preso político no local e membro da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, cobrou das Forças Armadas o reconhecimento das violações aos direitos humanos no 1º BPE. Segundo ele, não é mais possível negar que tenha havido tortura e morte no local após esta visita.
— Saio com a sensação de ter cumprido uma missão histórica muito importante para o país. Nós estamos resgatando uma memória de um tempo de tortura, mortes e assassinatos. E isso no local, com o registro da imprensa filmando a nossa entrada. Isso para as novas gerações do Brasil democrático que queremos é muito simbólico. As Forças Armadas, incrivelmente, continuam negando a existência de tortura e morte. Viemos aqui dentro do quartel, comprovamos que houve tortura, testemunhamos que o Mario Alves morreu aqui dentro, que o Rubens Paiva morreu aqui dentro. Isso é uma afronta ao Brasil e aos brasileiros. É momento de parar com isso, assumir e pedir o perdão — afirmou, destacando a gentileza dos militares que acompanharam a visita.
O coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari, avaliou como “muito positiva” a diligência do grupo ao local, considerado um dos piores centros de repressão do país durante a Ditadura. Ele afirma que os registros feitos através de imagens, aliados aos depoimentos e ao resultado da perícia, serão usados para representar graficamente como funcionava a repressão no Doi-Codi do Rio de Janeiro:
— O objetivo da visita é levantar dados. O que aconteceu, onde aconteceu e quem esteve envolvido. Nesse sentido, a visita cumpriu seu objetivo e nós fomos recebidos de uma maneira muito adequada pelo Exército, que deslocou oficiais para nos acompanharem e nos deu acesso a todas as instalações. (Isso) Colabora com o detalhamento. Porque o relatório dará enorme importância dos fatos e dos locais. E uma visita como essa, com a presença das vítimas nos indicando com clareza cada local, vai nos permitir ter, para cada uma dessas áreas, um croqui de como funcionava cada um desses lugares.
DESVIO DE FINALIDADE
Apesar de ressaltar que a Comissão Nacional da Verdade não tem a atribuição de propor punições aos agentes públicos que atuaram na repressão, Dallari acredita que a diligência comprove o desvio de finalidade no uso do 1º BPE. Os desvios são um argumento usado pelos defensores da revisão da Lei da Anistia, que impede punições para civis e militares que torturaram e mataram durante o Regime Militar.
— A CNV não tem atribuição em relação à Lei de Anistia. Nós não processamos ou julgamos ninguém. Nossa finalidade é lavantar os fatos. E nesse sentido, claramente se configura o desvio de finalidade desses locais. Se eles foram usados, e hoje está mais do que comprovado, para tortura, morte e situações que resultaram no desaparecimento de pessoas, claramente houve um desvio de finalidade, porque instituições militarens não existem para violações de direitos humanos.
Questionado se essa comprovação poderia ao menos servir para que os militares envolvidos sofressem punições administrativas, como a perda das aposentadorias, Dallari afirmou que, em teoria, a medida é possível, mas dependeria de ações nas próprias Forças Armadas:
— Isso dependeria de processos administrativos, que teriam que ser conduzidos pelas próprias Forças Armadas e pelo Ministério da Defesa, mas é uma possibilidade. Na medida que há o desvio de finalidade, isto é um ilícito administrativo.
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