Foto: Júlia Lima/PNUD Brasil
10/12/2024

Alerta contra impunidade ignorado há dez anos

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Ausência de responsabilização pelos crimes na ditadura militar abriu caminho
para perpetuação de práticas autoritárias

Uma década depois, desde a entrega do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), onde das 29 recomendações, apenas duas foram cumpridas, podemos afirmar que a certeza da impunidade se consolidou em um legado perigoso: o de que crimes graves contra o Estado Democrático de Direito podem ser ignorados, seja em nome de uma suposta “reconciliação”, de um apaziguamento que nos obrigou a conviver com as sombras de um passado que hoje se faz mais do que nunca presente.

A ausência de responsabilização pelos crimes cometidos durante a ditadura militar (1964-1985) não apenas deixou cicatrizes abertas, mas também pavimentou o caminho para a perpetuação de práticas autoritárias e ataques à democracia.

Portanto, nesse marco é preciso considerarmos os aprendizados que nos foram colocados e os desafios a serem superados. Parte deste exercício consiste em relembrar o período em que a CNV foi gestada e ter como referência o papel que figuras como Lula, Dilma Rousseff e Paulo Vannuchi desenvolveram para que a CNV fosse possível.

Em 2005, Vannuchi, assumia a Secretaria de Direitos Humanos e o compromisso de enfrentar o legado do regime militar. Com sua articulação política e o apoio de Lula, criou a CNV que, em 2012, viria a ser instalada por Dilma, em um gesto de necessária coragem.

Anos depois, o relatório da CNV, não só revelava as já conhecidas atrocidades da ditadura, mas apontava caminhos para, em certa medida resolver e, sobretudo, reparar nossa história de violações. No entanto, 10 anos depois, o balanço feito pelo Instituto Vladimir Herzog sobre as recomendações da Comissão revelou poucos avanços nas políticas de reparação e responsabilização. De 29 recomendações, 48% não foram realizadas e 24% sofreram retrocessos. As 13 específicas para os povos indígenas estão em estado de retrocesso e as 7 recomendações que envolvem a população LGBTQIA+ foram parcialmente realizadas.

A pergunta que fica e seguirá provavelmente sem resposta é: Se essas recomendações tivessem sido plenamente implementadas, o Brasil seria um país diferente hoje? Talvez pudéssemos afirmar que, no mínimo, teríamos uma democracia com menos cicatrizes golpistas.

O Instituto Vladimir Herzog, como amicus curiae da ADPF 320 – arguição protocolada em 2014 que questiona a interpretação dada à Lei de Anistia – considera que essa é uma discussão fundamental para a consolidação de um futuro democrático.

O relatório da CNV já alertava que a falta de justiça pelos crimes da ditadura alimentava a repetição de práticas autoritárias que legitimavam movimentos que atentam contra a democracia.

Apesar das recomendações da CNV e de compromissos internacionais, esses delitos seguem sem responsabilização. Tal brecha histórica legitima pedidos atuais de anistia para crimes explícitos contra a democracia, como os ataques de 8 de janeiro, por exemplo.

O recente desmantelamento de um plano para assassinar o presidente Lula, seu vice, Geraldo Alckmin, e o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, evidencia a perigosa continuidade de práticas golpistas sustentadas pelo histórico de impunidade.

Neste marco de dez anos do relatório da CNV devemos nos lembrar que a luta pela memória, verdade e justiça é contínua, e que romper com esse ciclo de não responsabilização é essencial para proteger o futuro democrático do país. 

Rogério Sottili é diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog. 

O artigo foi publicado originalmente no jornal O Globo.

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