Por Marcelo Freixo*, para a Folha de S. Paulo
A crise de representatividade a que assistimos é um dos muitos sintomas do esgotamento do atual modelo de democracia, inaugurado após 21 anos de ditadura civil-militar.
O sistema democrático não amadurece naturalmente, ele está em permanente construção e disputa. Por isso, nesta viragem entre o crepúsculo de uma experiência e um futuro a ser preenchido, forças políticas se confrontam para decidir os caminhos que trilharemos nos próximos anos.
Um dos principais pontos dessas disputas é o sentido da defesa dos direitos humanos.
No Brasil, que historicamente fomenta a desigualdade e a submissão e violência contra índios, negros, mulheres e pobres, essa luta se desenrola de forma peculiar.
Não se trata apenas de garantir direitos, é algo mais elementar: reconhecer a humanidade de alguém.
Milhares de brasileiros não são vistos como pessoas. O resultado dessa desumanização é uma democracia mutilada, marcada pela negação da cidadania aos chamados menores, vagabundos, marginais, favelados. São os ninguéns, os nenhuns do poema de Eduardo Galeano.
A reação do secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, ao título do relatório da Anistia Internacional “Você matou meu filho!”, sobre assassinatos praticados por PMs, revela como o Estado está longe de compreender a importância da defesa dos direitos humanos para a democracia.
O nome do estudo, publicado na segunda (3), é certeiro por rasgar o véu que invisibiliza as principais vítimas da violência policial: jovens negros moradores de favelas.
Ele mostra que os mortos não são meras estatísticas, são filhos de alguém, têm família e história. São pessoas.
O envolvimento com o crime não pode justificar uma execução. A sociedade que dá à polícia o direito de decidir sobre a vida e a morte abre mão da democracia. O resultado é uma violência que atinge os próprios policiais: no Rio, são os que mais matam e mais morrem.
Esse não é apenas um problema de segurança pública. É uma questão de concepção de mundo, pois por meio dela traçamos as fronteiras entre os incluídos e os descartados da democracia. O historiador Sérgio Buarque de Holanda escreveu que a democracia brasileira sempre foi um lamentável mal-entendido, inventada por aristocratas rurais para acomodar seus interesses.
Esses mal-entendidos continuam sendo reinventados e perpetuados ao longo de nossa história. Eles só serão superados quando a defesa dos direitos humanos unir aqueles que sonham com um novo regime democrático, cuja essência seja a dignidade humana. Só assim construiremos um país mais justo e igualitário.
*Marcelo Freixo é professor de História e deputado estadual do Rio. Presidiu as CPIs das Milícias, em 2008, e do Tráfico de Armas e Munições, em 2011. Foi candidato a prefeito do Rio em 2012. Escreve às terças-feiras na Folha de S.Paulo.