Painel 1 – “Perspectivas Propositivas Para uma Cultura de Não Violência Contra as Mulheres”.
Moderadora: Ana Flávia de Oliveira, pesquisadora da violência contra as mulheres e coordenadora no Brasil do estudo multipaíses da ONU
Painelistas:
– Luiza Bairros, ex-ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República.
– Flávia Piovesan, procuradora do Estado de São Paulo.
– Rita Laura Segato, professora do departamento de Antropologia da Universidade de Brasília.
O painel é precedido pela exibição do vídeo da campanha “Quem Ama, Abraça: Pelo Fim da Violência contra as Mulheres”.
TRANSCRIÇÃO
MESTRE DE CERIMÔNIA
Boa tarde a todos e todas! Benvindos de volta! Pediria, por favor, pra que todos e todas se acomodassem pra que a gente pudesse dar início às atividades da parte da tarde do I Seminário Internacional Cultura da Violência Contra as Mulheres.
Eu gostaria de dar dois avisos: tem uma cabine, logo na saída do teatro, pras pessoas que quiserem compartilhar suas experiências, deixar um depoimento, estão todos e todas convidados. E durante o painel 1, o primeiro painel da tarde, as pessoas que tiverem interesse em fazer perguntas e comentários, as perguntas devem ser feitas por escrito; há um bloco de papel dentro da sacola do evento. E assim, escrevem suas perguntas e estregam pras moças aqui da organização e as perguntas serão entregues, encaminhadas à moderadora do painel.
Tanto as painelistas quanto a Lori Heisi que, depois do painel da tarde, ela volta, quem tiver perguntas também sobre a apresentação dela…
Bom, para dar início às atividades da tarde, haverá exibição de um vídeo da campanha Quem Ama Abraça, pelo fim da violência às mulheres. Essa campanha é idealizada por Lou Antonioli, Patrícia Mourão e Schuma Schumaher.
VÍDEO DA CAMPANHA ‘QUEM AMA ABRAÇA”
MESTRE DE CERIMÔNIA
Depois desse vídeo lindo vamos dar início ao painel 1, o Painel Perspectivas Propositivas Para uma Cultura de Não Violência Contra as Mulheres. Para ser moderadora desse painel, convidamos Ana Flávia de Oliveira, pesquisadora da violência contra as mulheres, que coordenou no Brasil o estudo multipaíses da Organização Mundial de Saúde…. Ah, está chegando. Gente, está chegando.
Então, a gente pode chamar as painelistas? Então, para compor o painel, convidamos as painelistas Luíza Bairros, ex-ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia e Doutora em Sociologia pela Universidade de Michigan.
(pequena falha técnica)
MESTRE DE CERIMÔNIA
A gente pede desculpa por esse pequeno imprevisto. Agora sim, vamos dar início ao painel da tarde intitulado Perspectivas Propositivas Pra uma Cultura de Não Violência Contra as Mulheres. Para ser moderadora desse painel, convidamos Ana Flávia de Oliveira, pesquisadora da violência contra as mulheres, coordenou no Brasil o estudo multipaíses da Organização Mundial de Saúde.
Para compor o painel, convidamos Luíza Bairros, ex-ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República.
Convidamos Flávia Piovesan, procuradora do Estado de São Paulo.
E por fim, convidamos Rita Laura Segatto, professora do departamento de Antropologia na Universidade de Brasília.
ANA FLÁVIA DE OLIVEIRA
Boa tarde a todos, desculpem o atraso. A gente foi almoçar e aí, demorou um pouquinho. Eu queria começar dizendo que eu estou muito, muito feliz de estar aqui e também muito honrada de estar nesse lugar. E queria começar agradecendo o Instituto Patrícia Galvão e o Instituto Herzog pela ideia, pela realização e pelo ânimo que eles propiciaram pra tanta gente discutir um tema tão importante.
Eu fico muito contente de estar aqui porque eu trabalho com esse tema de violência contra a mulher desde 1994. E trabalho com pesquisa, com intervenção, trabalho com formação e atendo, eu mesma, eu sou médica e atendo num serviço de saúde. Eu trabalhei na pesquisa da UMS de todos os países, que a Lori apresentou de manhã; fui coordenadora principal aqui no brasil, junto com a professora Lilian Schnaider.
E, nesse tempo todo, eu acho que eu compartilho com muitas pessoas que estão aqui na audiência, na plateia, esse esforço grande que nós temos feito pra reconhecer, visibilizar, cuidar e dar acesso à justiça aos casos, às mulheres que sofrem violência todos os dias; são bilhões de mulheres, né, no mundo inteiro e as mulheres brasileiras.
Nesse percurso, eu vi nascer a SPM, a Lei Maria da Penha, diversos recursos… e trabalho bastante com guias de serviço dos diversos grupos intersetoriais para o atendimento às mulheres. Eu vi também, apareceu interesse por trabalhar os autores de violência tanto na responsabilização criminal quanto da perspectiva mais educativa.
Mas, num seminário em Porto Alegre, alguns anos atrás, me caiu a ficha, óbvia, de que atender aos casos não necessariamente reduz a violência. E foi um pesquisador da Espanha que disse isso num seminário que eu estava. E eu pensei: claro, numa certa maneira, todas as políticas, leis e serviços têm um impacto cultural, porque há uma maior visibilidade dos casos nítida hoje.
Eu trabalho com serviços de saúde, não tem comparação 1994, quando eu comecei, de agora. mas os casos continuam acontecendo, os casos têm um certo padrão e as pessoas que trabalham com os casos estão dizendo: pelo amor de Deus, como nós vamos fazer pra reduzir isso?
Então, nesse sentido, eu agradeço muito a ideia do seminário, que é uma ideia que nos persegue, mas que encontra aqui uma forma da gente se unir. Uma outra coisa que eu queria chamar atenção, quer dizer, compartilhar com vocês, é que eu sou professora da Faculdade de Medicina, trabalho com violência há 20 anos, há mais de 20 anos e no ano passado, fui surpreendida por diversas denúncias de violência sexual das minhas alunas, pra quem eu dou aula, perpetrada pelos meus alunos, dentro da faculdade.
E eu participei de uma comissão durante o ano inteiro, o segundo semestre do ano passado, aonde nós nos dividimos em grupos de assédio moral, violência sexual, intolerância religiosa, violência racial, homofobia… e eu fiquei no grupo da violência sexual e recebi diversos relatos de alunas sofrendo violência sexual e nós tivemos uma enxurrada de relatos de diversos tipos de discriminação e violência cometida por alunos, médicos, assistentes da faculdade.
O componente de gênero é fortíssimo nisso que acontece dentro de uma faculdade que é tida como uma das melhores, senão a melhor da América Latina.
Eu estou contando isso pra dizer primeiro do meu desconforto, né, quando me coloquei nessa situação, nós criamos, face à dificuldade das medidas administrativas internas à instituição, nós criamos uma rede de professoras que chama Quem Cala Consente, que é uma rede inspirada no O Silêncio é Cúmplice da Violência, né, pra tentar fazer medidas propositivas, internamente, autonomamente, pra lidar com essa situação.
Eu estou contando isso pra mostrar o quanto a violência faz parte da nossa vida, o quanto ela é presente nas diversas camadas sociais de forma um pouco diferentes e o quanto é difícil a gente trabalhar com os casos e saber que amanhã vai ter outro caso. Porque todo ano tinha um caso de estupro na minha sala e eu não tinha o que fazer. Ou tinha muito pouco o que fazer. É muito ruim dizer isso, né, quando você está numa posição de poder, mas é real.
Porque apesar da gente estar numa posição de poder, ser professora da universidade, a rede que a gente criou, que reuniu mais de 90 professoras, mostrou pra mim há um mês atrás, que as professoras dentro da USP sentem-se discriminadas em relação aos professores, porque a nossa voz não tem a mesma força.
E a gente preciso se juntar num grupo grande de professoras pra ser ouvida. Nós criamos 3 grupos de trabalho: um de educação, um de acolhimento aos casos e um do estudo do regimento e punição. Visibilidade, acolhimento e punição são importantíssimos, importantíssimos.
Mas se a gente não mudar a cultura, não trabalhar com a educação, a gente nunca vai dar conta desse problema. Leis e políticas são superimportantes. E eu trabalho, toda semana eu atendo casos individualmente e vou continuar atendendo, porque eles precisam e é urgente que a gente atenda.
Mas é muito necessário que a gente compreenda os mecanismos mais profundos que reproduzem essa violência. E eu queria chamar atenção bem rapidinho pra duas questões. A primeira, a questão da desigualdade de gênero e a sua relação complexa com a violência de gênero.
Como a Lori demonstrou de manhã, vários estudos mostram que não é uma relação tão direta entre a desigualdade de gênero e a violência de gênero, como disse uma vez um homem autor de violência num dos grupos: se o machismo funcionasse, ele seria ótimo. Quando ele funciona, ele é bom.
21:40 – Então, quando há uma desigualdade de gênero e não há resistência, pode haver até menos violência. Quando a gente começa a transformar a desigualdade e caminhar em direção a uma maior acuidade entre homens e mulheres, a gente pode, eventualmente, ampliar, aumentar a violência como reação, que é o que, em alguns espaços da sociedade, eu imagino que esteja acontecendo.
Por isso é tão importante a gente trabalhar a mudança cultural. Pra gente poder acompanhar isso – eu sou uma pessoa, eu sou uma sanitarista, trabalho com prevenção – a gente precisa ter séries históricas onde a gente possa saber fazer uma medida hoje, outra daqui 5 anos, outra daqui 10 anos, outra daqui 15 anos, pra saber o que está acontecendo com a situação.
Porque os dados que a gente tem no Brasil, ainda são muito irregulares, baseados na denúncia, então a gente tem pouca condição de acompanhar longitudinalmente. Eu fiquei pensando qual terá sido o impacto das mudanças legislativas na situação da mulher e da família no Brasil em relação à violência; e a gente não sabe. E a Lori mostrou hoje de manhã que isso é uma coisa importante quando você faz estudo ecológico.
A última coisa que eu queria chamar atenção e lançar pro debate – porque aqui nós estamos todo mundo aprendendo, nós estamos abrindo um campo novo muito importante e complexo – é a conexão da violência de gênero com as outras formas de violência. Porque também eu acho que a mesa vai trabalhar essa questão, né.
E eu queria lembrar de particularidades da cultura brasileira. Apesar de ser uma média, humildemente eu me atrevo a dizer que nós vivemos num país colonizado, não é, que foi colônia por muito tempo, que teve escravidão por muito tempo e que, por muito tempo da sua república, foi uma ditadura.
Então, o quanto a ditadura, a colonização e a escravidão ainda fazem parte e estão entranhados na nossa cultura e precisam, de alguma forma, ser enfrentados e o quanto as diversas formas de violência atuam em rede, né.
Hoje de manhã, o Suplicy – não sei como eles falam na frente do nome dele – falou de uma violência policial misturada com uma violência de gênero. Quando os meninos negros morrem na periferia – eu trabalho num centro de saúde, né – as meninas sofrem, as esposas, as mães e elas também, de alguma forma, estão envolvidas.
O quanto a violência policial está articulada com a violência de gênero, o quanto a violência urbana está articula à homofobia, à violência racial. Porque, na verdade, a questão do respeito à diversidade, à dignidade de todas as pessoas é o que nos une aqui. Então, eu queria chamar pra nossa necessidade de ver essa articulação das diversas formas de violência pra gente ser mais efetivo no combate, no enfrentamento e na eliminação de todas as formas de violência e desrespeito.
Só pra dar uma aquecida e aí, então, eu vou passar a palavra. Nós vamos ter 3 falas de 10 minutos e depois, as palestrantes vão conversar entre elas. Eu vou passar a palavra pra Luiza Bairros, que vai ser apresentada pelo cerimonial ou não? Eu sei, mas é que eu achei que iam te apresentar, então…
LUIZA BAIRROS
Tudo bem. Boa tarde! Boa tarde a todas, a todos, prazer enorme estar aqui. Quero agradecer a organização pelo convite e dizer que a encomenda que me foi feita é no sentido de apenas utilizar esses 10 minutos pra lançar algumas provocações, o que é uma encomenda que me deixa bastante confortável, porque eu não preciso me responsabilizar por nada… eu não preciso me responsabilizar muito por nada do que eu vou dizer, não é, fica a cargo, digamos assim, de quem nos acompanha aqui nesse debate buscar desenvolver, se for o caso, essas questões.
Ah, também quero cumprimentar as pessoas que estão nos acompanhando pela Internet, algumas delas já me mandaram mensagens dizendo que estão aí nos assistindo desde de manhã, então são benvindas também nesse debate.
A primeira coisa, na verdade, que eu queria dizer é que, depois de ter aceito o convite, eu descobri que não me sentia muito confortável com o conceito “cultura da violência”. Fui tentar entender um pouco mais o que isso significava e fiquei um pouco com a impressão de que, se eu admito, a priori, a cultura da violência como um dado, talvez eu esteja deixando pouco espaço pra criação de uma contracultura, digamos assim, da violência, como se a situação tivesse dado.
Ou seja, a cultura de uma sociedade, ela fosse completamente montada em cima de princípios, de valores, digamos assim, que fomentam, que produzem, que aprofundam a violência em todas as relações, em todas as relações sociais.
Eu, sinceramente, não sei se isso é possível, considerando que violência, na verdade, é uma situação que é dada histórica e culturalmente e, na verdade, talvez o que aconteça é que as culturas nas sociedades é que criam os padrões pra definir o que é violência, qual é o grau de violência aceitável, com que tipo de situações nós podemos conviver e que outras situações, tidas como violentas, serão passíveis de punição, ok, ou serão criminalizadas ou passíveis de punição.
Então, nesse sentido, sem querer criar aqui uma falsa questão, não é a violência que cria a cultura, mas é a cultura que define o que é violência, está certo. E ela vai aceitar isso em maior ou menor grau a depender obviamente do ponto em que nós estejamos enquanto sociedade humano, no ponto que nós estejamos de compreensão do que seja a prática violenta ou não.
Então, pensando nisso, primeira questão a levantar. A segunda tem a ver com o fato de mesmo que eu ache, que eu questione um pouco esse conceito de uma cultura da violência, eu entendo por outro lado, que no caso brasileiro – e eu peço licença aqui às nossas convidadas internacionais pra me referir mais especificamente à situação do Brasil – no caso brasileiro, nós temos uma sociedade que, onde a violência é fundante, não tenho dúvida nenhuma com relação a isso.
Só fazendo um pequeno parêntese, desde que eu fui, que eu aceitei vir pra cá e trabalhando essas coisas na minha cabeça, veio insistentemente à minha memória Desmundo, que é o livro de Ana Maria Miranda, que depois se transformou num filme que trata exatamente, que busca exatamente se pensar o modo como o racismo e o sexismo influenciaram as relações que determinaram a criação, determinaram a sociedade brasileira no seu momento fundador, vamos dizer assim.
Então, isso está lá colocado no nosso DNA. A mesma força violadora dos homens em relação à natureza, naquele momento onde se atraía de qualquer forma recursos naturais pra serem levados pra Europa, essa mesma força violadora estuprava mulheres indígenas, mulheres negras, mulheres brancas. A mesma força violadora que torturava, muitas vezes até a morte, africanos escravizados. Isso está lá completamente.
E é por isso que eu também acho que hoje, mesmo levando em conta tudo que já mudou sobre aquilo que nós, enquanto sociedade, conceituamos como violência, não há hoje como discutir violência sem discutir racismo e sexismo.
Se nós não retornarmos – porque é um retorno – a – essa discussão das bases ideológicas do que nos trouxe, digamos, até esse momento agora, nós vamos simplesmente reproduzir um certo senso comum extremamente perigoso e despolitizado que vigora na sociedade brasileira hoje, no qual as pessoas repetem e repetem que nós estamos vivendo numa sociedade que é violenta e pra combater essa violência, nós precisamos de mais polícia; pra combater, nós precisamos diminuir a maioridade penal; pra combater, nós precisamos fazer com que as mulheres se comportem pra que não sejam estupradas, mortas e etc.
É um pouco nessa direção que o senso comum no Brasil hoje tem caminhado. E isso, sem dúvida alguma, do nosso ponto de vista, se constitui num retrocesso, se constitui num retrocesso. Porque nós vamos passar, por conta de uma mudança de valores, a legitimar como válidas práticas que nós consideramos violentas até pouco tempo atrás, por conta dos ganhos de aprendizado políticos, que nós fomos capazes de fazer no interior da sociedade brasileira.
E pra que a gente discuta racismo e sexismo, nós vamos ter que recolocar dentro dessa discussão, mesmo quando se trata de violência contra as mulheres, nós vamos ter que inserir nessa equação os homens.
Talvez não da forma como foi levantado aqui em outros momentos hoje, mas no sentido de discutir os sentidos do que seja a masculinidade e de como a violência é importante para a constituição da masculinidade na sociedade brasileira.
E quando eu digo, quando eu falo masculinidade, eu não estou colocando – embora eu saiba que os homens são os principais agentes e em alguns sentidos os principais beneficiários dessas construções, eu quero dizer que, na verdade, masculino e feminino são categorias pelas quais nós, mulheres, também transitamos; nós, mulheres, também transitamos.
Ao longo de um dia, ao longo de uma vida nem se fala, a gente vai pra todos esses lugares pra se viabilizar, né, como pessoa no mundo. Assim fazem os homens também. Agora, no que essa – tempo esgotado… e é o último ponto que eu estou levantando – no que essa questão do racismo e do sexismo interessa para a questão do masculino?
É que, do mesmo modo que o racismo dá ao homem branco a ideia de uma suposta superioridade que, na intersecção com o masculino, vai fazer com que esse masculino seja vivido na plenitude do poder que ele acha que tem. Então, uma coisa, na verdade, reforça a outra, uma coisa reforça a outra.
Do mesmo modo que a atribuição de uma masculinidade de uma segunda categoria para um homem negro, na intersecção com o racismo, também gera determinados efeitos. Efeitos que não podem ser separados, por exemplo, disso que nós vemos hoje, das altas taxas de homicídio entre os homens negros no Brasil.
Isso é uma dimensão da vivência de uma masculinidade de segunda categoria, onde o patriarcado supostamente dá aos homens, mas não a todos os homens, apenas a alguns, principalmente os homens brancos, a primazia sobre o poder a ser exercido sobre a sociedade como um todo e o poder a ser exercido mais especificamente sobre as mulheres.
Com isso, eu estou querendo dizer, minha gente, que é preciso que nós reconheçamos que a condição racial, seja ela vivida por um homem branco, por um homem negro, por uma mulher branca, por uma mulher negra, nem sempre ela aparece na sua integridade à primeira vista.
Muitas vezes, a condição racial é vivida por meio da condição de gênero. E é isso que acontece com a superioridade que se atribuíram ou foram atribuída ao homem branco na sociedade brasileira e que hoje, sem dúvida alguma, traz em si essa – eu não quero dizer possibilidade, mas – exerce um poder que está intimamente ligado à capacidade de poder exercer a violência nos seus mais diversos tipos, não apenas a violência física.
Então, era isso que eu queria colocar como provocação inicial. Muito obrigada!
ANA FLÁVIA DE OLIVEIRA
Então, eu quero agradecer muito a Luiza e a plateia, que está animada, e quero passar a palavra à Flávia Piovesan.
FLÁVIA PIOVESAN
Uma boa tarde a todos e a todas, eu queria dizer da minha gratidão, da minha alegria, do meu entusiasmo a me somar a este movimento aí deflagrado pelo Instituto Patrícia Galvão, pelo Instituto Vladimir Herzog, de pensar estratégias e perspectivas e propostas para uma cultura de não violência contra as mulheres.
Eu creio que todas e todos que estamos aqui reputamos esse um dia, um marco histórico, simbólico de um novo momento, um “locus” privilegiado para enfrentar o construído da violência contra a mulher e para que, de forma urgente, possamos avançar na desconstrução deste construído.
Que possamos aqui transitar da cultura da violência contra as mulheres para a cultura do respeito para com as mulheres. Que nós possamos transitar da cultura da violação dos direitos das mulheres para a cultura da afirmação, promoção e proteção aos nossos direitos.
Então, eu quero dizer da importância desse momento, da importância do foco. Creio, é o primeiro encontro em que nós investimos aí atenção no tema da cultura da violência e da contracultura da não violência. Então, muito obrigada e parabéns por esse extraordinário espaço que permite esse aprendizado tão emancipatório.
E os meus 8 minutos serão usados para duas reflexões centrais. Eu venho da área do direito dos Direitos Humanos. Então, a primeira questão que eu gostaria de pautar é que há o direito a uma vida livre de violência. E qual é o alcance desse direito? Porque vejam, o que nós podemos perceber com dados e estatísticas, eu trago aqui ao menos 3 dados alarmantes.
Segundo a ONU, 7 em cada dez mulheres no mundo já foram vítimas da violência física e/ou sexual em algum momento da sua vida. Para a ONU também a violência doméstica – esse é o segundo dado – é a principal causa de lesões em mulheres ente 15 e 44 anos no mundo, manifestando-se não apenas nas classes socialmente mais desfavorecidas em países em desenvolvimento, mas em diferentes classes, culturas.
Era um fenômeno, lembrava a querida (?), absolutamente democrático. Alcança mulheres de todas as raças, etnias, seja qual for a condição social, econômica, nacionalidade. E eu lembro o caso do Brasil: a cada 100 mulheres assassinadas, 70 o são no âmbito doméstico.
Então, a minha primeira provocação é que realmente há a violência contra a mulher como uma violência generalizadas, como uma violência sistemática, como uma violência epidêmica, como uma violência endêmica e como uma violência difusa e democrática.
Então vejam, como lidar com esta violência, que acaba por impactar o exercício pleno dos nossos direitos, ou seja, essa violência acaba por violar os direitos de mais da metade da população mundial e das mães da outra metade.
Então, como enfrentar este padrão? E aqui eu chamo a atenção a 3 documentos internacionais extremamente relevantes e emancipatórios pra transformar esse estado de coisas. Lembro aqui a declaração da ONU sobre a eliminação da violência contra a mulher, de 93; lembro a convenção de Belém do Pará para erradicação e prevenção à violência contra a mulher e lembro a convenção da ONU sobre nação da discriminação contra a mulher.
Esses 3 documentos internacionais, convergem em reconhecer o componente cultural da violência contra a mulher. Ou seja, a violência contra a mulher é reflexo de uma relação assimétrica de poder entre homens e mulheres. Aí está a raiz do problema, aí está o reconhecimento.
E esses documentos afirmam o nosso direito a uma vida livre de violência, seja no âmbito público, seja no âmbito privado. E a violência contra a mulher é baseada no gênero, causando dano, morte, sofrimento físico, sexual, psicológico |à mulher tanto na esfera pública como na privada.
E é baseada no gênero por quê? Ocorre essa violência porque o ato é dirigido às mulheres porque são mulheres e porque afetam as mulheres de maneira desproporcional. E desse direito, nós extraímos deveres por parte dos estados para que, por meio de marcos legislativos, medidas de prevenção, de combate à violência, assegurem plenamente o direito a uma vida livre de violência.
E aqui eu termino lançando a segunda pergunta: quais então as perspectivas, as propostas para uma cultura de não violência contra as mulheres? E eu, de forma meteórica – suponho que eu tenha 6 minutos – vou aqui – 4 minutos – vou lançar aqui 7 desafios.
O primeiro deles é transformar a cultura do patriarcado e outras relações de dominação e subordinação, por meio, sobretudo, de campanhas permanentes de sensibilização que eliminem atitudes discriminatórias e estereótipos. Há o dever de atuar na modificação dos padrões socioculturais discriminatórios. Portanto, temos que enfrentar aí esse primeiro desafio de transformação da cultura do patriarcado.
Segundo desafio, adotar medidas de prevenção. É fundamental capacitar agentes públicos, em especial, q atuam na esfera da segurança pública, da justiça para que compreendam os direitos humanos das mulheres à lua da igualdade e gênero numa perspectiva integral demarcada pelo dever do Estado de respeitar, proteger, implementar os direitos humanos das mulheres.
Também uma terceira medida: não basta prevenção, é fundamental o dever do Estado de agir com a devida diligência, com eficácia em casos de violação aos direitos humanos das mulheres, com a punição dos perpetradores da violência e com medidas de reparação voltadas às vítimas de violência; com a criação de serviços especializados e modelos de atenção integral.
Também fundamental aqui é fomentar bancos de dados, estatísticas, mapeando o diagnóstico da violência da mulher. Qual é o perfil do violador, o perfil da vítima, as causas, as consequências. E hoje nós tivemos uma excelente aula a respeito disso, com muita solidez, com muita tecnologia, aclarando as penumbras do complexo fenômeno da violência contra as mulheres.
Veja, uma sexta medida, eu acabo de retornar de uma reunião da comissão interamericana de mulheres em Washington na OEA, participei na sexta-feira passada, a respeito de indicadores para mensurar, para medir o progresso na implementação do direito a uma vida livre de violência.
É uma experiência que eu diria inovadora, que trabalha com 5 categorias: legislação, planos nacionais, acesso à justiça, informações estatísticas e diversidades. Ou seja, como mensurar, como medir a implementação dos nossos direitos.
E finalmente o sétimo desafio e aí eu me somo a essa necessidade de nós reunirmos as perspectivas de gênero, a perspectiva da orientação sexual, da etnia, da diversidade étnica racial para que seja conferido especial destaque às diversidades à luz das formas múltiplas de discriminação, que são aí, fruto da violência, do racismo, do sexismo, da homofobia e outras intolerâncias que têm a mesma raiz.
O sexismo, a homofobia, a xenofobia têm o mesmo componente cultural pautado em relações assimétricas de poder, relações de subordinação. Então, eu termino aqui lembrando o quão importante é avançarmos em estratégias e medidas para prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher em todas as suas manifestações, como imperativo de justiça, como imperativo de respeito aos direitos das mulheres, que sofrem com essa gravíssima violação que ameaça, tanto ameaça o seu destino e rouba a vida de tantas e tantas mulheres, que têm vidas desperdiçadas em razão da violência que sofrem.
Muito obrigada a todos.
ANA FLÁVIA DE OLIVEIRA
Muito obrigada à Flávia, que cumpriu o tempo, assim, com precisão e agora, eu quero convidar a Rita Segatto pra fazer as suas provocações.
RITA LAURA SEGATTO
Ok, não tenho tempo para cumprimentar, mas eu estou feliz de estar aqui, claro. Me sinto muito honrada, porque muitas vezes eu sinto que tenho mais oportunidades de falar fora do brasil que no Brasil, que é minha segunda pátria.
Então, eu acho assim, que para ter eficácia no combate à violência contra as mulheres, contra nós, frente a um cenário que nós estamos vendo que a gente está sendo derrotado. Essa é a minha avaliação.
O principal é compreender. Não podemos desenhar boas estratégias se não entendemos a complexidade da questão. Então, eu listei aqui 6 campos que eu acredito que devemos entender mais e melhor.
O primeiro – então, vou listar e deixar aberto para a discussão – o primeiro campo é o campo da diversidade das mulheres, né. Vocês sabem que tem nesse momento 3 posições do feminismo, né: um que diz que o problema das mulheres são os mesmos ou muito próximos globalmente, na perspectiva global, que poderíamos chamar que esse feminismo é de um feminismo eurocêntrico, ou seja, que diz que uma mulher de Paris, de Nova York, enfim do outro lado, né, do hemisfério, do outro hemisfério, pode vir e desenhar políticas para nós, que estamos aqui nessas costas que forma paisagem da colonização e da escravidão.
Então, conhecer, entender a diversidade das mulheres é complexo para nós porque nós temos o vício da superioridade moral. A gente pensa que pode ter uma plataforma branca, europeia, dos países centrais, né, de dar lição de moral para os outros mundos.
Eu tenho (?) muitos anos com mulheres e também com mulheres indígenas – mais de uma década – e aprendi a entender que as estratégias delas não podem ser as mesmas que uma mulher europeia, né, no sentido de que tem um conflito de lealdades.
O primeiro é a lealdade com o povo, né, e dentro dessa lealdade com seus povos, suas comunidades negras ou indígenas, ali dentro vem a lealdade como mulheres, com as lutas das mulheres. Enquanto o Estado não compreenda essa diferença das estratégias possíveis pras mulheres negras e mulheres indígenas, que estão na posição diferenciada com relação aos branqueados, né…
Todos nós, então, seríamos os que… alguns autores, hoje, chamam de ‘blancoides’ ou brancoides, em português, não é, do nosso mundo, mas que não podemos desenhar as estratégias.
Por exemplo, o ano passado. 2014, eu passei vários meses no ano construindo uma perícia, né, para o próximo tribunal de (?) na Guatemala. E foi para mim muito surpreendente, muito espantoso inclusive, quando escutei os depoimentos das mulheres que e eu tinha que escutar para poder escrever a perícia, falar com a mesma dor, com intensa dor, a escravidão sexual a que elas foram sujeitas no que se chama um quartel de repouso, quartel de descanso, né, do exército guatemalteco na região deles, falaram com a mesma dor dessa sujeição sexual como da sujeição doméstica.
Eu fiquei muito impressionada, que quando falavam de ter que entregar um “palmo na tortilla de milho”, tirar da sua “milpa”, do seu milharal o milho para alimentar um soldado, um soldado que a cargo da repressão e do assassinato dos seus próprios maridos; era tão doloroso ter que alimentar essa figura como ter que se curvar sexualmente a essa figura.
Para mim isso foi estranhíssimo. Porque para nós, a violência sexual, digamos, tem um sino a mais, mas para elas o alimentar e o entregar o corpo era falado exatamente com a mesma dor. Então, essa é uma diferença muito grande, a gente tem que prestar atenção a essas diferenças, na diversidade das mulheres.
A segunda. Um mandato de masculinidade, que foi falado aqui, e entender essa mandato de masculinidade numa perspectiva histórica, né. E vou sintetizar a minha ideia sobre isso aqui dizendo que, naqueles povos que sentem, sentiram a colonização na sua pele, o homem se transformou no colonizador dentro de casa.
O homem da família negra e o homem da família indígena – nesse caso eu conheço um pouco mais da parte indígena – esse homem indígena ele fez o papel, por sua fragilidade e vulnerabilidade às masculinidades brancas… quer dizer, porque ele é frágil e vulnerável à masculinidade do opressor.
Então, ele vai reproduzir dentro da casa dele, esse mandato de masculinidade que lhe chegou de fora, mas que o capturou. Então, ele se torna imensamente violento. Eu observei, 10 anos trabalhando com a FUNAI com políticas públicas, escuta de mulheres, divulgação da Lei Maria da Penha.
Junto com esse com esse serviço do Estado e essa entrada do Estado nas comunidades indígenas, eu vi como a violência dentro dos lares aumentou, o que é um grande paradoxo, né, algo que nós temos que entender. Porque, às vezes, a modernidade entrega com uma mão o que ela já tirou com a outra.
Às vezes, o mundo do Estado, que é um mundo permanentemente colonial e colonizador, né, dá o remédio para o veneno que já inoculou. Então, se a gente não compreende que na complexidade dessa quadro, dessa cena, a gente não vai poder produzir estratégias adequadas para essa cena.
O terceiro elemento que temos que temos que entender é a diversidade dos crimes. E nós temos a tendência, especialmente no Brasil, a empurrar tudo o que acontece com a mulher para o plano do íntimo, para o plano da intimidade, para o espaço do lar, da família nuclearizada, esse resto, esse resíduo político que é a vida familiar.
Então, temos que fazer um esforço muito grande, especialmente no Brasil… porque nos países da américa Central: Honduras, El Salvador, México, Guatemala, já está bastante desenhada a diferença entre os crimes que acontecem com as mulheres na fase atual de “mafialização”, de gangues, avanço das economias criminosas, né, capturando amplas parcelas da sociedade, capturando inclusive a política, né.
E as mortes de mulheres e os tipos de crueldade contra o corpo das mulheres que acontece nisso que estamos chamando de as novas formas da guerra, né, e a violência íntima, doméstica vincular. Então, a gente tem que aprender a pensar com especificidade essas duas cenas da diversidade dos crimes.
Em quarto lugar, entender o Estado. E aí, eu vou mencionar o que a Luiza falou, que esse Estado é um Estado que tem no seu DNA o sangue da conquista e o sangue da colonização do território, Então, esse Estado, digamos, ele é, no seu DNA, misógino e racista. Embora, às vezes, suas posições institucionais sejam ocupadas por mulheres.
Mas a instituição mesma, não poderíamos agora explicar por que, ela contém, ela atravessa o DNA da conquista e da colonização e das formas específicas que se reproduziram de ataque às mulheres, de toma do seu corpo, de massacre dos seus corpos não brancos e femininos ou feminizados.
Então, o Estado não é inocente, porque é um Estado contraventor, né. E o que temos feito no movimento feminista é colocar todas as nossas fichas de batalha dentro do Estado. E por isso que nós estamos perdendo, perdendo terreno, perdendo espaço. Porque não podemos…
O que aconteceu… Então, o nosso caminho tem que ser um caminho anfíbio. Nós temos que fazer lutas dentro do Estado, mas também estratégias como existiram, como foram praticadas no início no feminismo, nos anos 70, quando eu me tornei feminista. Nós tínhamos um feminismo de rua, um feminismo de autogestão, um feminismo vincular, de amigas, de irmãs, às vezes composições diferentes.
E hoje temos um feminismo de profissões, um feminismo de carreiras. Então, todas nós vivemos dos nossos pensamentos, das nossas carreiras, nas ONGs, nas universidades, nos espaços das instituições públicas. Mas nós necessitamos voltar também, dar importância também à vida inteligente que acontece por fora do Estado.
Então, entender a época. Eu acho que nós estamos na fase apocalíptica do capital. A época atual coloca as pessoas, homens e mulheres, pois todos sofrem. O homem violador, o homem violento, ele também sofre. De uma forma diferente de sofrimento, mas ele também sofre.
E a erupção, a efervescência, digamos, o auge de letalidade, né, das mulheres, os números não somente do aumento da vitimização letal das mulheres, mas também o aumento da crueldade sobre seus corpos não pode ser separado das pressões da intempérie da vida, né, do risco permanente de cair na vida precária e não ter como sobreviver.
Então, toda essa pressão que é econômica, que é desta fase final do capital, fase apocalíptica do capital, dessa nova fase de conquista, de “plassamento”(?) das pessoas nos seus territórios, seus espaços vitais, né, a toma desses espaços, a(gagueja)…. o levantamento, né, a suspensão dos direitos dos trabalhadores, o declínio dos salários, inclusive, com um aumento do trabalho servil e escravo, né.
Porque nós hoje no planeta temos o mesmo número de escravos – em números absolutos, naturalmente, não em proporção, mas – temos o mesmo número de escravos que existiam na época da lei escravocrata. Isso é assustador; quer dizer que há uma suspensão de todas as formas de proteção da vida. Ali dentro as pessoas se tornam mais violentas, os homens restauram sua masculinidade perdida frente aqueles com quem eles podem restaurar essa masculinidade, que são seus filhos, suas mulheres, seu meio familiar.
E por último, né, entender a diferença, que também se mencionou aqui, entre a diferença de gênero no campo íntimo e no campo público e como elas se interagem. Só vou relatar muito brevemente uma historinha.
No processo da Guatemala, eu tive uns enfrentamentos com a cooperação espanhola, né, as assessoras da Espanha, porque o modelo delas era dizer, por razões compreensíveis, que a família indígena, que a família das comunidades, ela é violenta porque ela é hierárquica. E que essa violência da família passa para a guerra.
E o que a gente está vendo é exatamente o contrário. É do clima bélico, tanto nas guerras repressivas como nas guerras mafiosas que estão se expandindo no nosso continente, desse ambiente bélico da rua passa para os lares. Então, é muito fácil colocar o dedo nas famílias negras ou nas famílias indígenas como bárbara, selvagem, hierárquicas, ruins para as mulheres. Não é meu pensamento.
As pressões da vida do trabalho, as pressões da suspensão dos direitos e as pressões das guerras mafiosas que se expandem de México pra baixo, estão chegando até nós, os números de mortes no Brasil são altíssimos. E esses números de morte não podem ser causados por violência, por assassinatos avulsos de pessoas nervosas, vingativas.
São crimes, são números de morte que têm a ver com a empresa mafiosa. Então, esse clima, esse clima bélico entra nos lares e produzem que as pessoas, nos espaço domésticos, se tornem, os homens se tornem mais violentos com suas mulheres. Então, deixo esses 6 temas.
MESTRE DE CERIMÔNIA
Eu quero agradecer, então, a contribuição das nossas painelistas e convidamos para retornar ao palco e pra poder receber as perguntas do público, a professora Lori Heise.
Bom as perguntas, né, já foram encaminhadas por escrito. Devido ao tempo, nem todas as perguntas poderão ser feitas, mas nós informamos que todas serão encaminhadas para a moderadora para fins de conhecimento e encaminhamento. E pra ler algumas perguntas, nós convidamos a Marília Caiano.
MARÍLIA CAIANO
Olá a todos e todas, a gente queria agradecer por todas as perguntas que chegaram. Devido ás restrições de tempo, nós estamos tentando fazer um agrupamento temático e vamos passar algumas perguntas que tentam pegar pontos de várias que chegaram. As outras que nós não conseguirmos contemplar, por favor, compreendam, nós passaremos pra moderadora e pediremos para que, de repente, ela possa estar nos ajudando a gente a encaminhar essas questões.
Coisas que nos chegaram aqui até agora, principalmente falaram questão, quando a Lori colocou na apresentação dela que uma das características pra se fortalecer a situação das mulheres e diminuir essa violência e o tal do autoritarismo econômico, né.
“Chegou” muitas questões com relação a isso e, principalmente, abordando questões trabalhistas. Quer dizer, principalmente considerando a população negra e a população negra terceirizada também… aí vai pra Luiza Bairros é como fazer a aglutinação de todos esses elementos, quer dizer, independência econômica, questionando o modelo econômico que está aí, ao mesmo tempo trabalhando as questões trabalhistas e de gênero vinculadas à questão de raça.
Então, seria uma primeira provocação agrupada aqui, que a gente colocaria pra mesa…. Podem comentar, por favor…. Ah, é, já pode colocar? Tá bom!
A outra questão é com relação ao que foi dito sobre a questão do alcoolismo e das drogas na questão da violência, né. Quer dizer, houve algumas questões aqui que foram levantadas, pra que se fosse explicado melhor, pra como combater a visão de que o homem é vítima do álcool e das drogas nesse cenário em que ele perpetra uma violência com a sua parceira ou com os seus filhos na questão da violência doméstica.
E um outro fator também que foi importante, que seria interessante colocar e que esbarra nesse fator também do álcool e das drogas, com relação à educação. Quer dizer, quando a gente fala de educação voltada pra gênero, né, como a gente aborda essa questão de gênero dentro da educação e considerando que, por exemplo no caso do Brasil, alguns fatores atrapalham, como congressos mais conservadores que podem vetar essas ou essas iniciativas.
Então, é uma provocação também que foi feita aqui pelo público, né. Então, por favor, quem gostaria de começar?
ANA FLÁVIA DE OLIVEIRA
Eu queria falar esse negócio do álcool e das drogas, né, porque é uma questão… eu sei que é uma questão delicada e eu quero falar isso… Eu quero falar isso…
ALGUÉM GRITANDO DA PLATEIA
Nos represente!
ANA FLÁVIA
Não, porque é uma questão controversa e eu estou… eu trabalhei com pesquisa de violência contra a mulher 20 anos e eu, agora, estou numa pesquisa com homens dependentes de álcool e drogas, usuários de “Caps-AD”, que são serviços da saúde que trabalham dependência de álcool e drogas pra fazer a prevalência de perpetração de violência contra as suas parceiras.
Então, eu estou fazendo um inquérito nos “Caps-AD”, fizemos entrevistas qualitativas com os profissionais e também entrevistas qualitativas com os homens.
E há, eu acho, uma barreira pra gente, no feminismo, de trabalhar o papel do álcool e das drogas nos casos de violência. Mas todo mundo que trabalha com vítima de violência sabe que uma parte, mais ou menos metade, dos casos de violência doméstica tem álcool e droga envolvido. E uma parte tem um parceiro dependente envolvido e, às vezes, a própria mulher com dependência.
Como a gente interpreta isso é uma questão. Todos os profissionais e também os próprios usuários e a literatura diz que o álcool e a droga não causam violência. Ou a maioria da literatura, a maior parte da literatura. Mas agrava, faz com que seja mais grave, mais frequente. E as mulheres também dizem isso. E os profissionais que trabalham com as mulheres também sabem disso.
Que medidas a gente vai tomar “é outras”, mas a minha surpresa ao trabalhar com os homens dependentes foi a extrema, extrema vulnerabilidade dos homens que vão pra Caps-AD na cidade de São Paulo.
Se vocês forem pro Caps-AD Sé e ver o tipo de população, é uma população extremamente excluída. É uma população negra, gay, travesti. São homens que tiveram… é uma masculinidade praticamente impossível. E eles são envolvidos com todo tipo de violência e sofrem muita violência e perpetram muita, muita violência.
Chama a minha atenção abuso sexual na infância, violência, como nas pesquisas mostram, violência, castigo físico pesado quando eram crianças, testemunhar a violência entre o pai e a mãe. Eu acho importante a gente lembrar isso aqui pra lembrar a cultura da violência e a dificuldade que a gente tem quando a gente fica, vamos dizer assim, aderido a um padrão muito simplista e maniqueísta de mulheres boas, né, e homens misóginos, malvados, ruins.
Eu acho que essa dicotomia que ás vezes nos serve instrumentalmente pra um ou outra ação, ela nos solapa o chão de lutar contra a violência. Eu não estou querendo dizer, eu não estou querendo nem justificar nem desresponsabilizar nem dizer que o álcool é o culpado e os homens são uns coitadinhos, mas escutando os homens, feministas de 4 costados, feministas lésbicas, minhas entrevistadoras voltam com uma outra visão da situação, que eu acho que tem a ver com a questão da compreensão que a Rita chamou atenção.
Quer dizer, compreender é também você se isentar de julgamento e tentar entender o que que está acontecendo. E o que que está acontecendo são homens excluídos nas periferias da cidade ou no centro da cidade fazendo… onde a droga, onde o álcool e a droga são, assim, o menor dos problemas. É um sintoma de uma vida de exclusão.
E essa vida de exclusão vai virar violência contra mulher, cachorro, criança que estiver no caminho dele, que for mais fraco. Então, a gente tem que ter uma certa compaixão e uma esperteza de entender a situação como um todo e o papel da dependência nisso.
Porque esses homens de Caps-AD estão nos dizendo: ninguém nunca nos ouviu como vocês estão nos ouvindo, ninguém nunca perguntou sobre as nossas relações afetivas, ninguém nunca perguntou sobre a nossa infância. E homem tem afeto também. Então, quando a gente acha que homem não é afetivo e não se importa de falar de relação, a gente está reproduzindo a cultura de gênero, os padrões mais estereotipados.
E isso você descobre na hora que você está falando com eles. As minhas entrevistadoras e os meus entrevistadores estão voltando modificados e eu estou modificando, porque eu estou escutando em primeira pessoa relatos de homens dependentes de álcool e drogas, que cometeram violência sexual, física, psicológica e tudo que eles sofreram também. E a culpa que eles têm e o sofrimento que eles têm.
Claro que a estrutura é injusta, né, mas ela é injusta com esses homens, especialmente eu estou falando de homens que estão em Caps-AD, SUS. E a gente tem que reconhecer essa injustiça também ainda que tenha que responsabilizá-los pela violência que eles praticam.
Então, sim, trabalhar com a questão da dependência tem relação com a violência de gênero. E é uma questão pra se trabalhar, mas você tem que trabalhar tendo consciência das desigualdades de gênero, das desigualdades raciais e da questão de classe, que eu queria chamar… assim, a minha provocação pra plateia é que a gente não fala mais de classe social. E eu queria chamar atenção da miséria, da pobreza e da exploração econômica, que não só continua como acirra, né, nessa sociedade globalizada que a gente vive.
E a gente um pouco esqueceu. Então, eu acho que eu queria relembrar. Se é pra relembrar o sexismo, o racismo, vamos relembrar o classismo e a desigualdade econômica entre países, dentro dos países, dentro das cidades, nos seus bairros e nas suas convivências.
FLÁVIA PIOVESAN
Eu queria tecer duas reações aqui, dois comentários com a questão do igualitarismo econômico, no sentido de afirmar o quanto o empoderamento das mulheres demanda autonomia física, ou seja, o controle sobre os nosso corpos, autonomia econômica – a capacidade de gerar recursos próprios e autonomia política, que é o poder de democratizar as esferas políticas.
Então, eu vejo que o nosso empoderamento está nesta tríplice autonomia física, econômica e política. E no caso, como foi dito pela Ana Flávia, se nós tomarmos a questão de gênero e raça na questão do igualitarismo econômico, nós vamos perceber que 70% dos pobres no mundo são mulheres, 70% dos analfabetos adultos no mundo são mulheres.
Ou seja, a pobreza é feminizada e etnizada. A violência também é etnizada. Se nós tomarmos aqui como exemplo a pirâmide salarial brasileira, nós vamos ter na base as mulheres negras, seguidas das mulheres brancas… Perdão, seguidas dos homens negros, mulheres brancas e homens brancos.
Então, nós temos um racismo estruturante que se alia e deve se aliar sempre á perspectiva de gênero. E lembro mais: o quão importante pra nós, mulheres, é repensarmos também não só a democratização do público, mas do privado. Também há indicadores do que há de se transformar nessa esfera.
Ao menos indicadores do Brasil apontavam que as mulheres que trabalham fora, dedicam às atividades domésticas ao menos 4 horas do seu dia, portanto as 40 horas de jornada de trabalho, nós temos aí mais 28 horas, o que resultaria em 68.
Já os homens que trabalham fora, segundo pesquisas do economista Pastore, dedicam 0.7 hora do seu dia à esfera doméstica. 0.7 vezes 7 dá 4.9, o que geraria uma jornada de trabalho de 45 horas. Então, se nós queremos o empoderamento na esfera pública, temos que transformar o público e o privado, temos que democratizar as duas esferas.
E a minha última observação se refere ao nosso Congresso, foi uma das perguntas, ao nosso Parlamento, o mais conservador das últimas décadas. O Parlamento BBB, não é: bala, bíblia e business, agrobusiness. As nossas pautas estão reféns das bancadas religiosas hoje, nós logramos vitórias extraordinárias no judiciário, no Supremo Tribunal Federal.
Por exemplo, quando reconhece as uniões homo-afetivas em maio de 2011, numa atuação antimajoritária, porque este tema estava absolutamente estagnado no nosso Parlamento. Nós vencemos uma outra batalha fundamental sobre a antecipação terapêutica do parto no caso de anencefalia fetal e essas vitórias hoje estão sendo ameaçadas no Parlamento por meio do Estatuto da Família, por meio do Estatuto do Nascituro, que é uma reação conservadora das bancadas religiosas à essas vitórias democráticos.
Então, fiquemos atentas e atentos a esse panorama desafiador e que possamos lutar por direitos, por justiça, com as estratégias eficazes. Muito obrigada!
LORI HEISE
Não, eu acho que duas questões estão relacionadas a algo que eu mencionei anteriormente. A Flávia falou sobre a questão do alcoolismo e eu gostaria de mencionar isso como feminista, porque acredito que não temos realmente ouvido o que as mulheres têm a dizer sobre essa questão. Eu acho que não se trata de desculpar esse comportamento e sim de reconhecer o papel do álcool ao desencadear a violência e tornar essas ocorrências mais graves.
Quando falamos com as mulheres, frequentemente elas relacionam a violência ao fato dos maridos beberem e chegarem embriagados em casa, mas essa não é uma única coisa que causa a violência, essa é a armadilha em que nós entramos quando tentamos discutir e definir se essa seria uma causa ou não.
Gênero, poder, diferentes tipos de desigualdade são algo essencial, mas essas outras questões simplesmente rodeiam esse problema. Para mantermos as mulheres em segurança, devemos considerar isso simplesmente porque é algo instrumental.
Nós podemos mostrar estudos que mostram que se você controlar a disponibilidade de álcool, se for mais difícil conseguir bebidas alcoólicas, se você conseguir ter normas para os homens para o alcoolismo, bebedeira, já há estudos sobre isso.
Às vezes, basta apagar o padrão do comportamento dos homens nas minas, por exemplo, na África. Em vez de todos serem pagos no mesmo dia, irem para os bares para se embebedarem, irem para casa e depois baterem nas mulheres, as pessoas eram pagas em dias diferentes e isso ajudou a reduzir a violência doméstica.
Então, eu acredito que seja necessário repensar de alguma forma. Não que não devemos ter preocupações com o fato disso ser usado como desculpa, mas temos que pensar numa maneira de tirar alguma vantagem do fato do álcool ser algo fácil.
É fácil fazer uma intervenção para manter as mulheres mais seguras. Isso não irá eliminar a violência das nossas vidas, mas poderá, sim, reduzir a gravidade e as ocorrências dessa violência. Isso pra mim é algo importante. Essa seria a minha resposta sobre a questão das bebidas alcoólicas.
Agora, em relação à questão do trabalho, eu acho que o que foi dito foi o seguinte: mulheres que encontram oportunidade de trabalho, essas mulheres são exploradas no emprego. E essas situações normalmente são ruins para as mulheres.
Acho que o que nós devemos fazer é o seguinte: temos que trabalhar sobre… avaliar as questões trabalhistas e melhorar as condições de emprego. O que nós podemos ver e que está claro com a nossa busca é que, no final, basicamente as mulheres têm mais opções econômicas quando conseguem sair de relacionamentos que as colocam em risco, houve o risco de violência… é reduzido para essas mulheres.
Temos que descobrir uma maneira de sair de onde estamos agora. A entrada das mulheres na força de trabalho, colocar as mulheres e risco num curto prazo; é preciso ter uma quantidade suficiente de mulheres empregadas e independentes financeiramente para vermos um tipo de mudança, para que essas mulheres passem de ser um fator de risco… para que as taxas de violência sejam reduzidas.
É possível ver isso em todos os países em que coletamos dados, onde as mulheres têm mais direitos e maior independência econômica, os níveis de violência são mais baixos.
ANA FLÁVIA DE OLIVEIRA
Bom, agora a gente tem o privilégio de debater entre nós; eu queria, eu queria começar só pontuando duas questões. Uma, eu queria repercutir isso que a Rita falou sobre o papel do Estado e sobre o quanto a gente tem remetido as nossas demandas e reivindicações desde o início ao Estado e o quanto, repetidamente, quando a gente consegue, enfim, formalizar serviços e políticas dentro do Estado, elas acabam por, de alguma forma, perder a virulência que elas tinham no início.
A nossa pequena experiência agora com a violência sexual dentro da universidade repete um pouco isso, porque a gente teve que sair, fazer um movimento pra conseguir, né, acionar as questões que a gente achava importantes, apesar de a gente estar dentro da instituição.
Então, eu queria um pouco chamar, né, isso. Sempre me chama atenção na questão dos direitos, a questão dos direitos individuais serem direitos que um pouco tiram o Estado da jogada ou permitem o indivíduo ou o cidadão ter propriedade privada e ter suas crenças religiosas e quando a gente chega nos direitos econômicos e sociais, a gente remete um pouco ao Estado. Então, eu queria um pouco provocar isso.
E queria provocar a Lori com a violência contra a mulher e as questões de gênero na Europa e nos Estados Unidos, nos países ditos desenvolvidos. Como se tem trabalhado a prevenção na Europa e nos Estados Unidos, a questão da prevenção e da transformação da cultura e mesmo das taxas de violência lá também. Pra gente poder também, pro público poder ver isso ao redor do mundo.
RITA LAURA
Eu acho assim – também a dificuldade realmente é a luz, a gente está com que violentado por essa… não, eu sou fotofóbica, não posso olhar de frente, por exemplo, tenho que estar assim de canto.
Então, nesses anos todos que tenho trabalhado com as outras mulheres de cujas civilizações eu não faço parte, mas é o que me tocou e que eu escolhi como vocação minha. O que eu cheguei a entender que um bom estado… o que seria um bom estado? Isso é uma grande…
Por anos trabalhei com estudantes (?) na Papuda, na cadeia, na penitenciária da cidade. E finalmente concluí, nós deveríamos perguntar aos presos o que é uma boa pena, porque são os únicos que são capazes de dizer o que é, o que seria uma boa pena.
Então, da mesma forma, né, o que seria um bom estado? E aí eu vou ser… imagina… não gosto de dizer utópica, porque… mas vou usar a imaginação. Um bom estado, ou seja, eu acho que a frente, que eu tenho chamado num dos meus últimos textos, Frente Estatal Empresarial Midiática Cristã tem trazido às políticas públicas, às comunidades, tem intervindo ás comunidades com um discurso benigno, moderno, de igualdade.
Mas junto com esse avanço, como mencionei antes, veio mais violência. Então, isso é importantíssimo compreender. Porque ele atravessou, ele rasgou, ele desmantelou estruturas que, se eram hierárquicas internamente, se tinha um sistema de autoridade própria, mas tinha uma blindagem, porque o espaço que as mulheres habitavam…
Estou falando no passado porque esse espaço do mundo aldeia, ele está “intervenido” hoje. Mas se nós tínhamos um espaço público, não uma esfera pública, um espaço dos homens, espaço público, mas não esfera, no sentido de que o homem aí não é um homem com maiúscula. Um homem a cargo da política, mas a cargo de um espaço particular, que é o espaço da política.
E um espaço doméstico habitado pelas famílias, mulheres, cheio de gente, onde não existe o íntimo, o privado, aquela forma nuclearizada da família que é onde as mulheres morremos. Porque com a aparição da esfera pública e do doméstico como nuclear, como encapsulado entre quatro paredes, o nosso risco aumentou.
Não importa o que digam as mulheres nas entrevistas de que, sim, meu marido pode me bater. Isso, eu não acredito muito em entrevistas – dirigido à Lori – porque as entrevistas são, digamos, um meio muito, muito inadequado para saber como vivem as pessoas, por uma razão muito simples: de que entrevistas se baseiam na ideia de que as pessoas usam a língua para informar. E na maior parte, a maior parte dos povos do mundo não utilizam a língua prioritariamente para passar informação, mas utiliza a língua para se relacionar.
Então, as pessoas respondem, às vezes, qualquer coisa. Então, não é confiável a entrevista como método de pesquisa, tem que ver como as pessoas vivem realmente. Então, naquele mundo hierárquico, né, a gente poderia dizer, se no mundo da modernidade a gente fala diferentes mas iguais, no mundo das comunidades o que fala seria: desiguais, mas diferentes. Ou seja, cada um no seu lugar, cada um no seu espaço.
Então, estou hipersintetizando, porque disseram que a gente deveria polemizar, então estou polemizando assim. Então, nesse mundo desigual, mas com diferença, o espaço das mulheres é político também, tem menos prestígio, sim, em geral. Mas o espaço doméstico habitado por muitas pessoas, não íntimo, não privado, é plenamente político, quer dizer, totalmente dotado de politicidade. E as mulheres se blindam aí.
Então, na comunidade, as mulheres estão menos expostas à morte, pelos seus… digamos, pelos membros do seu mesmo povo e das suas mesmas… estão menos expostas à morte e estão menos expostas à crueldade. A forma de crueldade que hoje vemos proliferar no nosso continente, América Latina, com as novas formas da guerra, com a tortura sexual, com o uso… a intervenção sexual e a tortura sexual do corpo, já não como antigamente, nas guerras entre…
A história da guerra entre as guerras tribais até as guerras entre estados na Segunda Guerra Mundial, a mulher sofria, sofria, digamos, violação multitudinária. Mas era o dano colateral da guerra. Se tomava o território e se tomava o corpo das mulheres. Hoje o dano ao corpo das mulheres é uma arma, é uma estratégia, é o objetivo estratégico da guerra. Isso é uma mudança na história das guerras muito importante pra tomar em conta.
Então, hoje se aterrorizam comunidade e se obrigam elas a sair dos seus espaços de habitação mediante à crueldade, à crucificação, desmembramentos e outras formas terríveis de crueldade contra o corpo das mulheres como objetivo estratégico das guerras, que não é mais um dano colateral da guerra nos corpos das mulheres.
Até estudiosas que falam numa continuidade da guerra, como por exemplo, Elizabeth Odio, da Costa Rica, fala de que, como juíza da corte penal, do Tribunal Penal Internacional, ela observou um aumento do relato de crueldade ao longo do tempo em que ela atuou no tribunal. Então, esse aumento da crueldade, ele está associado à modernidade, não à vida comunitária.
Então, o que seria um bom Estado, para concluir? Seria um Estado que cuidasse da devolução do tecido comunitário, da restauração desse tecido comunitário que conseguia proteger as mulheres muito melhor que nós, os brancos do Estado.
LORI HEIZI
Você perguntou sobre os Estados Unidos e a Europa. Pela minha experiência, posso dizer que a questão mais interessante sobre a prevenção não está nem nos Estados Unidos e nem na Europa. E sim, em muitos países com que eu já trabalhei na África, na Ásia, porque é preciso trabalhar com as estruturas das comunidades e, de certa forma, há um cenário diferente por lá, porque a maioria dos países que trabalhamos agora, em cooperação com vários grupos, não há Estados, não há governos que funcionem. Eles são muito frágeis lá.
E as pessoas não confiam no Estado e não procuram o Estado, estão tentando reconstruir o Estado. Mas, enquanto isso, as pessoas estão tentando desenvolver estruturas nas comunidades indígenas, reformá-las, descobrir como criar uma espécie de santuário e também sancionar o comportamento e formas de reduzir e de modificar o que as pessoas sentem, o que as pessoas pensam, mas a nível comunitário.
Eu acho que nós estamos vivendo uma situação hoje em dia em que os países de alta renda têm muito o que aprender com as inovações criativas que estão ocorrendo em outras partes do mundo.
LUIZA BAIRROS
Na verdade, eu não estou me sentindo tão provocada pelo que está sendo colocado aqui. Não, verdade, porque eu acho que a gente meio que se descolou daquilo que nós dissemos no início, digamos. Como veio essa questão do Estado, por exemplo, eu acho que a gente meio que se descolou. Porque eu estava querendo ficar um pouco com o sentido que Rita Segatto deu pra isso na primeira intervenção dela, que foi uma coisa que… era uma provocação que nos dizia respeito mais diretamente.
O fato de que, ultimamente no Brasil, nós colocamos todas as nossas fichas no Estado e esquecemos de fazer o trabalho que temos que fazer enquanto sociedade, que é na sociedade que reside esse papel de manter as consciências críticas acesas em relação ao que acontece. Porque dentro do Estado, a verdade é que não vai se fazer isso mesmo, ok. Porque ele não está aí pra isso, ele não está aí para isso, ele não está aí para isso.
E por uma outra questão, nós não… nós chegamos, as nossas questões… e eu digo isso com relação à população negra, eu digo isso em relação às mulheres e não digo isso em relação aos pobres, Ana Flávia, porque eu não preciso dizer isso em relação aos pobres, a questão de classe nunca foi questionada como um produtor de hierarquia.
O que é questionado é a capacidade de racismo e sexismo estruturarem a sociedade brasileira. Essa que é a questão e por isso que a gente dá ênfase pra isso, está certo. Não é porque desconsidera a existência da classe como estruturadora de hierarquia, mas isso é reconhecido. Programa pra pobreza no Brasil existiu desde sempre, desde sempre.
Agora, uma secretaria de programas pras mulheres é um fenômeno recente, uma secretaria da promoção da igualdade racial é um fenômeno recente. O que a gente tem que ver é isso, até que ponto a criação dessas estruturas acabaram criando fragilidades na atuação do movimento social. Que eu acho eu acho que era mais nessa direção que Rita, que Rita Segatto estava procurando, estava procurando caminhar.
E eu, pra dizer honestamente, eu acho que essa questão é uma falsa questão. Eu estive recentemente no debate, que as pessoas apelidaram a minha fala de “engole o choro”. Porque tem uma tendência nossa no movimento de ficar dizendo: ah, porque tudo piorou muito, porque tudo não sei o que, todo aquele trabalho que a gente teve está indo por água abaixo. Tem que engolir esse choro, gente, tem que engolir esse choro.
Eu não acho que nós estejamos, que nós tenhamos perdido ou estejamos perdendo uma determinada batalha. Eu acho que nós estamos enxergando o adversário no seu verdadeiro tamanho pela primeira vez. E esse adversário só se mostra agora com esse tamanho todo porque perceber a nossa força.
Então, esse momento, esse momento não é um momento em que nós estamos perdendo. É um momento em que nós temos que nos reagrupar de alguma forma pra uma luta maior do que aquela que nós fazíamos completamente na margem, completamente na margem.
Quer dizer, nesse processo de que, na medida que algumas questões foram… que a gente levantava enquanto movimento social, algumas questões foram absorvidas pelas instituições, a gente deixou de falar completamente da margem. Ou melhor, a margem mudou de lugar, a margem mudou de lugar.
Porque agora você está discutindo na margem, mas dentro da instituição. E isso é avanço. Isso é avanço. Agora, uma coisa que é certa, eu te digo que é pelo seguinte: eu fui numa, numa comunidade quilombola na região do Bico do Papagaio lá em Goiás, tá certo, lá em Goiás. Goiás não, Tocantins, em Tocantins.
Uma região remota, remotíssima, próxima dali onde aconteceu a Guerrilha do Araguaia, então é um lugar que fica um pouco com aquela sombra, né, de um passado recente triste, não totalmente desvendado etc.
Aí, eu cheguei nessa comunidade quilombola totalmente preparada para ouvir o que geralmente você ouve, que são muitas reivindicações relativas à regularização de terra. Isso aí é o que você tem que se preparar pra ouvir. Foi onde nós caminhamos – embora tenhamos feito avanços – caminhamos menos nessa questão.
E pra minha surpresa, uma mãe quilombola levanta pra discutir comigo a questão da bolsa-permanência dos alunos cotistas da universidade de Tocantins. Quer dizer, eu não posso achar que não mudou nada, entendeu como que é, eu não posso achar que não mudou. Porque essa mulher tem uma percepção, digamos assim, do que ela tem, ela e a família e a comunidade toda têm pra reivindicar do Estado que, definitivamente, não é mais a mesma de 10 anos atrás, de 15 anos atrás, né.
Então, eu acho que a gente fez, de algum modo, as instituições brasileiras se moverem na direção da resposta ás demandas, os direitos, os interesses, não é, do conjunto da população. Mas acho também que, quanto mais a gente anda nessa direção, mais está colocado pra nós mulheres, e pra nós mulheres negras mais especificamente, a necessidade da gente avançar mais na ocupação dos espaços de poder efetivos.
Porque nesses espaços de poder efetivo é que as nossas questões realmente vão conseguir chegar lá pela nossa boca diretamente. Porque, repito, no avanço que nós fizemos, nós criamos uma margem lá dentro do institucional e a discussão ainda continua desigual.
Dentro daquilo que Flávia levantou como importante: autonomia econômica… como que é? O empoderamento físico… físico, econômico e político, eu acredito que aí sim, nossas fichas, enquanto movimento social, deveriam e deverão ser jogadas nesse empoderamento político, porque ele é que vai dar consistência pra essas outras possibilidades, inclusive pra isso, Laura, que você definiu como sendo qual e o estado que nós queremos. Esse Estado, sem nós lá dentro, nunca vai existir.
LAURA SEGATTO
Só Brevemente para complementar o que a Luiza falou que me toca, como você sabe Luiza, muito de perto, “por causa que” eu sou coautora da primeira proposta de cotas para estudante negros e da (?) para estudantes indígenas no Brasil. Ela saiu de Brasília, né, foi uma luta que nós fizemos.
Então, acompanhando, como foi a manobra do Estado? Quer dizer, porque o estado, a gente pode colocar aí o exemplo de como o Estado foi (?), as instituições falando, instituições estatais ao aplicar a proposta de cotas. Porque a… Universidade de Brasília, que foi a primeira federal, digamos, que começou… federal, mas a UERJ foi consequência das propostas que já corriam nos meios sim. A gente vai discutir sobre isso num outro momento.
Mas é o seguinte; o Estado implementou, a instituição do Estado implementou, mas com 3 condições: primeiro, estimulou as pessoas a fazerem carreiras individuais: segundo, promoveu uma amnésia e um desvinculamento dessas pessoas com relação ao povo, às famílias, o meio social dos qual elas faziam parte, de forma que essa amnésia provocou uma desvinculação, muitas vezes, com seu mundo de origem, com suas tecnologias de sociabilidade, com sua corporalidade de origem. Entraram na universidade, mas entraram a título individual.
E em terceiro lugar também o Estado promoveu uma amnésia com relação às lutas que conseguiram finalmente fazer… tornar real essa política institucional de forma que muitas pessoas hoje passam pela universidade e pensam que um dia o presidente Lula ou o reitor da universidade ou alguém lá em cima pegou uma caneta e assinou o documento que implementou a medida.
O Estado acatou. Cotas “é” lei, na diversidade de formatos dependentes de cada universidade, cada região. Mas acatou a medida quando já não foi mais possível evitar, mas desvirtuou.
ANA FLÁVIA DE OLIVEIRA
01:47:37 – Por favor… tá bom… tudo bem… talvez depois vocês conversam melhor. Flávia.
FLÁVIA
Bom, eu também aqui me somo à sua voz, eu entendo que o Estado não desvirtuou, entendo eu aqui, aqui polemizo – mas muito brevemente, que eu tenho um minuto – então, entendo que é uma política fundamental pra promoção da igualdade, da diversidade; entendo que nós estamos vivendo um experimentalismo também, com erros e acertos, mas temos que ter a ousadia do risco, já que as políticas universalistas são absolutamente estáveis no que se refere à manutenção das desigualdades no campo racial.
É a minha visão e as estatísticas e os indicadores apontam a isso. Eu acho fundamental densificar e aprofundar a experiência das ações afirmativas, cotas para afrodescendentes, indígenas, mulheres, com erros, com acertos, com ajustes, com acompanhamento detido.
No meu último minuto, eu só gostaria aqui de me somar a esse debate afirmando o quanto o Estado, ao mesmo tempo viola direitos, mas promove direitos. Então, há uma relação de complexidade, uma relação que também, como lembrou a Luisa, como lembrou a Rita, a esse fenômeno… e vou me valer da sua expressão, Rita, do anfíbio, o quanto temos que ter atuações, ações emancipatórias dentro, mas claro, fora do Estado.
E é claro que há impactos mútuos e recíprocos; o quanto fora acaba transformando dentro, o quanto dentro acaba transformando fora. E aqui, eu penso que nós, mulheres, muitos convergem nessa direção, o quanto que nós revolucionamos esse século, o quanto a história das mulheres, dos nossos direitos é uma pré e pós a década de 70.
As reivindicações dos movimentos de mulheres chegaram, transformaram políticas públicas, transformaram marcos legislativos nessas lutas obstinadas por justiçam por políticas igualitárias e por direitos e por respeito.
Então, vejam, quais os ganhos? Lei Maria da Penha, tardamos 506 anos, estamos aqui tentando avançar essa agenda. Uma insularidade democrática – lembrava a Luisa – que hoje contempla uma secretaria, uma pasta específica que mira a temática de gênero, que mira a questão da igualdade etno-racial, que pensa em plataformas, em programas de ação, em políticas públicas. Tudo isso é fundamental.
Então, eu creio que nós temos esse desafio de lutar por direitos, essas lutas incessantes, em que cada ponto de chegada sempre simboliza um novo ponto de partida nessa utopia realista que os Direitos Humanos nos movem. Muito obrigada!
ANA FLÁVIA DE OLIVEIRA
Então, com essa nota otimista e de chamado pra mais luta, nós vamos encerrar essa mesa e vamos passar pra próxima atividade do seminário. Não vai resolver o problema aqui, né, a gente já sabia, então vamos adiante.