Palestra 1: “Panorama Global das Culturas de Violência Contra as Mulheres”.
Palestrante: Lori Heise, professora titular da London School of Hygiene & Tropical Medicine.
TRANSCRIÇÃO
MESTRE DE CERIMÔNIA
Gostaríamos de registrar a presença de Denise Motta Dau, secretária municipal de Política para as Mulheres de São Paulo, representando o prefeito Fernando Haddad; Claudio Scheffer, secretário adjunto de Segurança Urbana da cidade de São Paulo; Guilherme Canela, conselheiro de Comunicação e Informação da UNESCO e de José Barbosa, gerente de Relacionamento Comunitário da Petrobras.
Agora, na sequência do seminário, nós teríamos a palestra de abertura, que seria ministrada pela ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha. Infelizmente, ela teve um imprevisto e não poderá – pelo menos até o presente momento, não conseguiu chegar. Então, nós vamos adiantar, né, vamos colocar… vamos dar início, então, à palestra 1, intitulada Panorama Global das Culturas de Violência Contra as Mulheres.
Nesta palestra, será apresentada uma análise sobre a prevalência da violência por parceiro íntimo em diferentes países e, para ministrá-la, nós convidamos Lori Heise, professora titular da London School of Hygiene & Tropical Medicine.
LORI HEISE
Bom dia! Eu peço desculpas, mas eu não falo a maravilhosa língua de vocês, então, vocês terão que usar os fones para ouvir a tradução simultânea. Quero agradecer aos organizadores pela oportunidade de estar aqui e de falar com vocês hoje e de falar um pouco sobre a minha vida, sobre de onde eu venho.
Há mais de 30 anos, trabalhei no movimento feminista, que sempre combateu a violência contra as mulheres. Recentemente, eu comecei a trabalhar na área de pesquisa para tentar compreender melhor as causas da violência cultural e, depois de trabalhar durante 30 anos, me sinto frustrada com o pouco progresso que fizemos.
Eu acredito, porém, que os serviços, as leis que conseguimos aprovar são algo absolutamente essencial. Talvez ainda mais importantes e algo em que devemos focar é como acabar com as causas da violência para conseguirmos ter gerações de meninas e meninos com expectativas completamente diferentes sobre as oportunidades e sobre o modo de conduzir seus relacionamentos.
Eu sou a única pessoa que irá mostrar alguns slides a vocês. Se vocês gostam desses dados será ótimo; caso vocês não gostem, peço desculpa. Uma das coisas que eu queria fazer aqui era contar a vocês sobre algumas coisas que aprendemos nos últimos anos a respeito da natureza da violência e sobre como evitá-la.
Uma das coisas que nós aprendemos é que a violência por parte de parceiros íntimos é a forma predominante de abuso que as mulheres sofrem em todo o mundo. Isso é verdade até mesmo em ambientes de crises e conflitos humanitários. Nós focamos muito nisso.
Ocorre muita violência sexual por parte dos combatentes e essas mesmas mulheres que foram vitimizadas por militares, por agentes do Governo, sofreram mais violência de seus parceiros íntimos do que dos conflitos militares. Nós aprendemos também que as consequências na área de saúde vão além dos ferimentos.
As pessoas pensam em ferimentos, machucados em violência física, mas nós sabemos que o trauma, o medo e o estresse que acompanham as mulheres que vivem esse tipo de relacionamento tem impacto na saúde de longo prazo, que as colocam em risco durante todo o seu tempo de vida.
Risco de todo tipo de problemas, desde doenças cardiovasculares, problemas para ter filhos e isso afeta os seus filhos também. Mulheres que estão grávidas e sofrem abuso durante a gravidez têm alta probabilidade de ter crianças de baixo peso. Isso eu quero dizer que essas crianças correm um risco mais alto de morrer. E nós sabemos que a violência é algo terrível.
E nós podemos falar de vários tipos de violência: violência sexual, violência psicológica, nós precisamos avaliar o fardo da violência que as mulheres sofrem ao longo da sua vida. Porque nós não vivemos um tipo de evento; às vezes, não é uma única ocorrência. Há mulheres que foram vítimas no passado e que correm um risco maior de serem vítimas novamente, de sofrerem abusos no futuro.
Uma das coisas extremamente importantes que aprendemos nos últimos 5 anos é que a violência, na verdade, pode ser evitada. Uma das coisas que nós dizíamos é: ela é tão arraigada, é um problema tão grave e tão onipresente, que não podemos fazer nada a respeito. Mas nós estamos começando a conduzir alguns estudos, onde conseguimos demonstrar, utilizando os mais altos padrões de pesquisa, que os pesquisadores adoram, que é possível reduzir significativamente os níveis de violência em 3 ou 4 anos.
Um exemplo é um programa que nós implantamos em Uganda, ele se chama Sasaj, que significa “pare” em swahili, trata-se de uma abordagem de mobilização da comunidade. Os membros da comunidade são treinados, se tornam ativistas e esse movimento é baseado na teoria e foi demonstrado que é possível reduzir os índices de violência por parceiros íntimos em 50%.
Um outro programa chamado Ujamaa, do Quênia, para educar meninas e jovens em autodefesa e em poderamento. Mais uma vez, se olharmos para as meninas que receberam esse treinamento e após compararmos com as outras que ficaram de receber esse treinamento depois, as que foram educadas e treinadas conseguiram ter a taxa de estupro reduzido a 60%.
Há um terceiro programa aqui. É só pra dar a vocês um exemplo do tipo de programa e como é preciso pensar para evitar, prevenir a violência. Esse é um programa de proteção social que tenta aliviar os fardos da pobreza, da miséria, que trata-se de dar diretamente dinheiro a cada domicílio e considerar que eles saberão qual a melhor maneira de usar esse dinheiro.
Essas transferências de dinheiro incondicionais reduz a violência física em 50% e a violência sexual também. Então, eu mostrei esses exemplos a vocês apenas para dizer que é possível, sim, trabalhar com a prevenção e dentro de um cronograma que tentamos trabalhar para melhorar a vida das pessoas através dos nossos programas.
Uma outra mensagem que eu acho muito importante tem a ver com os níveis de violência, eles variam muito de um lugar para outro. Eu não sei se vocês conseguem enxergar direito esse gráfico, mas temos aqui dados de um estudo que nós fizemos cerca de 10 anos atrás. É um estudo que envolveu diversos países sobre a violência, conduzido pela UMS(?).
O que eu queria mostrar pra vocês aqui é o seguinte: que em dois lugares… um estudo foi conduzido em Yokohama, no Japão e um na Sérvia, na capital, “Belgrávia”. E nós podemos ver que 3,7% das mulheres sofrem violência sexual por parte dos seus parceiros e aqui vocês podem ver que metade das mulheres sofreu violência, isso foi na Etiópia.
Se vocês querem ver o caso do Brasil, nós conduzimos um estudo aqui, no Brasil, isso foi com a ajuda de uma universidade de São Paulo e em Pernambuco. Então, nós pegamos amostragens domésticas para conduzir o estudo. E nós vimos que em São Paulo, o índice médio de violência sofrida pelas mulheres nos últimos 12 meses foi 9,3%.
No estado de Pernambuco, o índice foi 14,8%. Então, isso pode dar uma ideia da amplitude desse problema. Mas ainda mais importante que a diferença entre os países é que nós vemos as mesmas diferenças geográficas dentro de um mesmo país. Então, o que eu estou mostrando aqui a vocês são dados de São Paulo. O que são essas barras?
Basicamente, vocês podem ver na parte debaixo do gráfico, que ela vai de zero a 20%; 20, 29, chega até 70%. Essa é a porcentagem de mulheres que sofreram abusos em bairros específicos. E o que vocês podem ver aqui é que 6,48% dos lares, as mulheres não sofreram nenhum tipo de abuso no último ano, zero por cento.
Já no… desculpe, eu não consigo ler daqui, mas eu acho que é 8,9% das mulheres, nessas vizinhanças, foram abusadas, mais de 40. Entre 40 e 49% sofreram abusos. Vocês podem ver que há uma variação. E no estado de Pernambuco, vocês podem ver o mesmo tipo de curva, mas ela está um pouco mais à direita.
Então, é menos mulheres em menos vizinhanças e altas taxas de violência também em alguns outros bairros. Isso faz com que nós coloquemos uma pergunta importante. Qual é o problema desses locais ou desses bairros, essas vizinhanças no mundo, até mesmo aqui em São Paulo, que faz com que haja lugares em que ninguém sofre abusos e em outros lugares, de 70 a 80 % das mulheres sofrem abusos. É isso que eu tenho pesquisado nos últimos 5 ou 6 anos.
Isso mostra também que é possível desenvolver realidades matérias e sociedades de tal forma que as mulheres não sofrerão abusos. Pelo menos não haverá grandes índices de abusos. É preciso que tentemos compreender quais insights devemos ter para criar programas de intervenção para reduzir os índices de violência nesses locais onde há altos índices.
E uma das coisas que eu considero muito importantes quando pensamos em prevenção é pensarmos da forma correta sobre as causas da violência. Frequentemente, nos movimentos de mulheres, pensamos o que causa a violência. A desigualdade de gêneros, o abuso de álcool.
E como alguém que já trabalhou na área da saúde, o que eu penso é o seguinte: esse tipo de pensamento tem a ver com doenças sexuais, que são causadas por um único fator. E um fator é insuficiente. Se eu tiver o HIV, se eu tiver o vírus do HIV, eu terei a doença do HIV. Se eu tiver o vírus da gripe, eu desenvolverei uma gripe.
Mas há uma maneira melhor de pensarmos nas causas de violência, que é pensarmos no modelo das doenças cardíacas. Então, esse coitadinho aqui, tem muitas coisas que o afetam. Ele é fumante, ele come BigMacs, ele é obeso, tem diabetes. Todos esses são fatores de risco que aumentam a probabilidade de ele ter problemas cardíacos.
Nenhum desses fatores é um determinante, no sentido de que se você fuma, você terá uma doença cardíaca. Todos nós temos tios que fumaram a vida toda e nada de ruim aconteceu com eles. Isso ocorre porque esse problema tem diversas causas sobrepostas muitas vezes. É assim que devemos pensar em termos da violência.
Se pensarmos nisso… vou mostrar pra vocês um modelo, uma forma de pensar nisso. Vamos começar com o homem, O homem tem algumas heranças genéticas, algumas propensões, ele tem uma história, aquilo que aconteceu com ele quando ele era criança, se ele tinha bons pais, se os pais dele eram muito duros. E ele também tem as suas crenças, as suas atitudes e ele tem os comportamentos que desenvolveu.
Talvez ele beba, talvez ele não beba e aí, ele conhece uma mulher, eles ficam juntos e ela também tem a socialização de gênero, tem a sua própria história e eles têm um relacionamento que tem várias dimensões. Alguns dos fatores que nós conhecemos estão ligados ao maior risco de violência.
Caso eles não se comuniquem bem por exemplo, se houver várias formas de conflito nesse relacionamento. Mas esse relacionamento também está inserido em uma comunidade e essa comunidade tem crenças, tem normas. Com frequência, isso vem daquilo que chamamos da macroestrutura, o fato que nós vivemos envolvidos com instituições. Instituições religiosas ou instituições da cultura da honra, regimes de gêneros diferentes em que vivemos.
Tudo isso pode influenciar esse casal. E uma coisa que acontece em seguida, é que há algumas coisas que geram conflitos no seu relacionamento. Com a violência por parte de parceiros, o que reconhecemos frequentemente é que os motivos dos conflitos têm alguns gatilhos em torno das expectativas de gênero.
Se a mulher não chegar em casa, se o jantar não estiver pronto na hora ou se ela desobedecer ao marido em um ambiente onde os homens são considerados a autoridade. Essa pode ser uma desculpa ou pode ser um gatilho para desencadear a violência. Então, isso já é algo importante em que devemos pensar. E é importante compreendermos que devemos avaliar as mulheres individualmente e devemos também ver o que aumenta os índices de violência dentro de uma população.
Porque eu trabalhava na área de saúde pública e o meu trabalho é tentar reduzir a violência como um todo dentro de uma população. É difícil demais tentar salvar uma mulher por vez. Devemos, então, descobrir o que devemos implementar para tentarmos mudar essa curva que nós vimos em São Paulo e Pernambuco, para que haja mais locais com baixos índices de violência.
Então, esses são alguns fatores que são considerados importantes para o risco corridos pelas mulheres individualmente. O que nós podemos ver é que há muitas evidências causais aqui se você tiver sofrido abusos quando criança ou tiver sido punido duramente, com violência ou se você tiver assistido cenas violentas, você terá um risco muito maior de perpetrar violência ou de ser uma vítima da violência.
Isso não é algo automático. Lembrem-se: nós não achamos que qualquer um causa violência. A grande maioria das pessoas que sofreram abusos quando crianças não cometem abusos. Mas a grande maioria das pessoas que cometem abusos têm abusos na sua história de vida. E se você for jovem, você correrá um risco maior.
Para as mulheres, isso é provável porque os homens mais jovens são mais violentos que os homens mais velhos e, normalmente, elas escolhem parceiros com uma idade próxima às suas. Agora, falando de proteção, as mulheres que concluíram o Ensino Médio têm risco mais baixo de sofrer violência. Infelizmente, esse efeito protetor ainda não tem muito efeito até que você tenha terminado o Ensino Médio ou o Ensino Superior.
Então, é preciso focar em como manter as mulheres estudando, como mantê-las na escola. Se pensarmos nos parceiros, eles têm coisas parecidas envolvidas. Sofreram violência quando eram crianças. Em países de alta renda, aqueles homens que abusam de suas mulheres têm normalmente um comportamento antissocial ou estão envolvidos em outras atividades criminosas. Às vezes, são violentos com outros homens.
E há também uma associação muito forte com a bebida alcoólica. O álcool é algo que potencializa uma situação. Então, nós sabemos que ele aumenta a frequência e a gravidade de ocorrências violentas entre casais. Todas essas atitudes e essas crenças em relação a aceitação de espancamento das mulheres e violência doméstica são juntas com o uso de bebida alcoólica frequente e pode estar ligado também às noções de masculinidade, o que significa ser um homem.
Vamos falar um pouquinho sobre algumas dessas atitudes, porque há algumas crenças culturais e eu trabalho muito em países de baixa e média renda. Então, esse estudo que envolveu vários países veio da Organização Mundial de Saúde. E nós perguntamos às mulheres: vocês acham que os homens têm uma boa razão, uma justificativa para espancar a mulher caso você faça…? E aí, colocamos várias perguntas diferentes.
Se você desobedecê-lo, se você não cuidar das crianças, se ele achar que você pode estar tendo um caso… e eu anotei algumas coisas aqui para que vocês possam ver a variação. Se vocês olharem, por exemplo, para o Peru, a província de Cuzco, 46% das mulheres disseram que, sim, um homem tem o direito de espancar a mulher se ela desobedecer.
Elas fizeram algumas distinções de acordo com a razão, porém apenas 25,8% das mulheres de Cuzco disseram que o homem pode espancar uma mulher se ela recusar ter relações sexuais com ele. Então, algumas crenças culturais ar espeito de q doo homem pode bater na mulher e quando não pode.
Na Etiópia, por exemplo, quase 78% das mulheres acreditam que é correto um homem espancar a mulher se a mulher desobedecer. Infelizmente, aqui no Brasil, alguns desses comportamentos não mudam muito… mudaram muito. Felizmente, esses comportamentos mudaram muito. Então, apenas 11% das mulheres acreditam podem bater se elas desobedecerem e apenas 4,7% acham que não há problema em sofrer uma agressão se ela se recusar a ter relações sexuais.
Mas imaginem num cenário em que essas porcentagens altas de mulheres e homens que acreditam não apenas que tudo bem, mas sim que é obrigação do marido ser violento com a mulher. Aí, sim, você terá taxas elevadas de violência.
Estamos observando o que pode prever essa distribuição geográfica da violência por parceiro íntimo. Por que é alto numa região e baixo em outra? Pra isso, usamos uma técnica chamada análise ecológica. Em vez de perguntar por que essa mulher está apanhando, fazemos a pergunta: Por que esta população ou esse cenário tem esse nível de violência por parceiro?
E há uma informação que está saindo hoje, está sendo publicada num jornal especializado Lancet, vai ser publicado hoje. Nós observamos o status feminino e a desigualdade de gênero, as normas sociais pra testar se o status da mulher e a desigualdade de gênero podem servir pra prever a violência.
Sempre dissemos que a desigualdade de gênero… o gênero é essencial, mas a gente nunca teve dados para comprovar essa afirmação. E agora nós temos. Podemos mostrar que, em diferentes situações, os fatores que preveem a violência, os fatores mais fortes que preveem a violência são a falta de direitos econômicos pras mulheres, discriminação de gênero, direito de família…
Ou seja, lugares onde a mulher possa perder a guarda dos filhos, não receba pensão alimentícia nesses casos. Então, tudo isso diminui a probabilidade que a mulher se afaste de uma relação de abuso ou violência. Também a discriminação no acesso à propriedade, ou seja, quando as mulheres têm menos acesso à terra ou outros tipos de propriedade, as taxas de violência são maiores.
Outro dado forte é a questão das normas sociais, as expectativas culturais. Os lugares onde é aceitável que os homens batam nas mulheres, não surpreende saber que as taxas de violência são maiores. E também os lugares onde existe essa expectativa de que o homem controle o comportamento feminino;
Ou seja, a expectativa de autoridade masculina sobre as mulheres, aí há níveis de violência mais elevados. Uma das coisas que é importante e às vezes a gente não pensa muito nisso é que o mesmo fator pode ter efeitos diferentes em diferentes níveis daquele modelo ecológico que eu mostrei pra vocês.
Em muitos países, por toda a África e também algumas partes do mundo em desenvolvimento, as mulheres que têm emprego correm mais risco. E principalmente quando elas são a vanguarda, quando elas são as primeiras a entrar no mercado de trabalho ou a ter renda enquanto a maioria das mulheres daquela comunidade não trabalha.
Nós sabemos, no entanto, que, se observarmos diferentes países, uma das coisas que prevê níveis baixos de violência em um país como um todo é a proporção de mulheres que está no mercado formal de trabalho. Ou seja, é preciso passar pelo olho do furacão. Talvez a princípio, a violência aumente, porque as mulheres estão nadando contra a corrente, indo contra as expectativas, as normas culturais…
… mas uma vez que um número suficiente de mulheres está empregada, aí a taxa de violência cai. Então, é importante verificar o funcionamento desses mecanismos.
Eu gostaria de falar rapidamente sobre os modelos e o que nós sabemos que funciona na prevenção. Temos elementos-chave que estamos extraindo daquilo que precisa acontecer se há uma tentativa de reduzir a violência numa comunidade específica ou na população como um todo. Eu vou passar rapidinho agora por isso.
O primeiro item é a capacidade de aspirar ou simplesmente esperança. Em diferentes lugares onde já trabalhei no mundo, descobri que as mulheres… bom, quando você entra numa comunidade, às vezes, as mulheres já internalizaram totalmente aquela ideia cultural de que elas são as culpadas.
Elas dizem: eu tenho que apanhar se eu fizer algo errado. Não há nada que eu possa fazer para mudar essa situação. Às vezes, a gente entra numa comunidade, aí as mulheres sabem que é errado, elas sabem que não é justo, mas elas acham que não há nada que é possível fazer.
E em outras comunidades, elas são mais politicamente organizadas, elas dizem: não é certo, não é justo e juntas a gente consegue mudar essa situação. E é preciso fazer com que as mulheres atravessem esse processo. Porque, de as próprias mulheres não conseguem enxergar uma vida sem violência, será muito difícil avançar.
Descobrimos também uma coisa que vocês aqui na América Latina já sabem há milênios, que é o poder da educação popular, da experiência de uma educação popular. Sabemos que não basta ter oficinas, workshops; é preciso que haja um processo de aprendizado de capacidades básicas de reflexão.
Ensinar como pensar, como fazer uma análise política do problema. É preciso encontrar um ponto de entrada que evite a demonização do homem, isso costuma ajudar bastante. Na África, na Ásia, começamos a falar sobre direitos femininos e, muitas vezes, nas comunidades, as pessoas acabavam se fechando, as mulheres começavam a defender os homens.
Quando a gente começava a falar sobre poder, como as pessoas usam o poder e como o poder e utilizado contra os homens algumas vezes, como eles aprenderam a utilizar o poder, você consegue dar início a uma conversa em que as pessoas têm a mesma visão, têm a mesma análise, mas elas fizeram esta análise, então, elas aceitam mais essa ideia.
Outra descoberta recente é que temos que dar capacitação às pessoas. Os programas que funcionam para ajudar as jovens, as jovens a evitar, por exemplo, uma gravidez indesejada ou interromper a violência de gangs ou quando se trabalha com violência doméstica, é preciso capacitar as pessoas para que elas se comportem de maneira diferente.
No caso da violência doméstica, essas capacidades estão relacionadas à comunicação, à gestão dos eventos que disparam a violência. Por exemplo, se é bater nas crianças. Se você bate no seu filho, é assim que você faz, é preciso ter a capacidade de educar os filhos de uma maneira positiva.
E descobrimos também que é preciso ir além de grupos individuais de pessoas. Sabemos que trabalhar nesses grupos, quer sejam homens, meninos, mulheres e meninas ou líderes religiosos, sabemos que é possível haver mudança nessas pessoas. Mas isso não se espalha, não vai muito além daquelas pessoas com quem você está trabalhando, a não ser que você tenha uma maneira organizada de disseminar isso por toda a comunidade.
E agora, nós conseguimos atingir mudanças em toda a população de uma comunidade, mesmo com aquelas pessoas que jamais tiveram contato com o programa de fato. Esse é o tipo de mudança que a gente precisa atingir se quisermos atingir os nossos objetivos de longo prazo de acabar com a violência.
Finalmente, eu nem preciso dizer isso pra esse público, é o poder das ações coletivas. Não basta que mulheres individuais tenham essa sensação de poder, é preciso que isso seja uma questão política. Aqui no Brasil, ou na América Latina, isso já é uma questão política, mas isso não é o caso em outras partes do mundo onde trabalho.
Então, ajudar as pessoas a passar desse poder individual para a organização coletiva é uma parte fundamental desse quebra-cabeça. Então, alguns comentários finais sobre ideias que eu acho que a gente deve considerar à medida que a gente avança nesse trabalho. Uma é o nível macro.
Passamos décadas fazendo legislações, criminalizando a violência contra as mulheres, mas não centramos esforços em algumas coisas que estão surgindo da análise daquilo que é mais relacionado aos níveis de violência. Então, mais do que a legislação em relação à violência doméstica, temos a legislação sobre herança, guarda de crianças…
Eu não sei qual é a situação aqui no Brasil, mas eu acho que é importante pensar nesse tipo de coisa pra atingir mais gente. Também temos que ter pensamentos mais sofisticados sobre a mudança dessas normas culturais. Essas normas são fundamentais.
Mas aprendemos que campanhas genéricas não bastam. É preciso identificar o conjunto específico de normas e comportamentos que estão impulsionando essa violência. Ou seja, qual o sistema de crenças? É preciso atacar esse sistema de forma criativa. Quem estiver interessado, eu posso depois explicar como se faz isso.
Eu coloquei duas frases aqui, porque uma das coisas que incentiva a violência, principalmente em áreas rurais, em populações nativas ou de baixa renda é a ideia de que os homens têm direito de agredir as mulheres como forma de disciplina.
Aqui, nós temos uma mulher indígena do México dizendo: “eu acho que se a mulher tem culpa, o marido pode bater nela; se eu fiz uma coisa errada, ninguém deve me defender; mas se eu não fiz nada errado, aí eu tenho direito à defesa”.
Em Tamil Nadu, na Índia, aqui um homem diz: “bom, se for um erro muito grave, o homem tem razão de bater na mulher; por que não? Uma vaca não obedeceria se ela não apanhasse”. Esse tipo de lógica é algo que se escuta repetidas vezes. Então, parte do que é preciso fazer quando se trabalha num cenário como este é desconstruir esse tipo de conceito, do direito do homem por qualquer razão que seja.
Para encerrar, eu acho que é preciso focar em mulheres mais jovens; eu acho que os movimentos femininos relutam um pouco em fazer isso porque a gente não quer desviar a atenção das mulheres mais velhas e colocar isso nas crianças. Mas no meu trabalho de prevenção, eu aprendi que todas elas estão enfrentando o mesmo problema.
A violência contra crianças, crianças como um todo é uma razão fundamental da violência contra as mulheres. E é preciso encontrar um terreno comum aí. Outro tema controverso no movimento feminista é o papel do álcool. Sempre tivemos medo de falar sobre o consumo do álcool, porque é uma desculpa para os criminosos, para o comportamento dos criminosos.
Mas eu estou convencida e acho que as evidências demonstram isso claramente, de que o álcool potencializa o problema. Se quisermos garantir a segurança das mulheres, é preciso mostrar que é possível se reduzir, se reduzirmos a disponibilidade de álcool na comunidade, as taxas de violência doméstica caem.
Então, eu proponho este desafio: vamos observar os nossos pressupostos, as nossas ideias preconcebidas, vamos tentar abrir a nossa cabeça pra novas maneiras de enfrentar essa luta juntos pra desconstruir a cultura de violência. Então, se algum de vocês tiver interesse, tem uma edição especial da revista Lancet, que acabou de ser publicada, foi publicada há dois meses, com o panorama geral da situação global.
Temos também outros materiais nesses sites aqui. Muito obrigada pela oportunidade de falar aqui diante de vocês hoje!