Painel 4: “Desafios para Mudar a Cultura da Violência contra as Mulheres”.

Moderadora:
Jacqueline Pitanguy, coordenadora executiva da ONG Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação.

Painelistas:
– Ela Wiecko, subprocuradora-Geral da República. Leticia Cufré Marchetto, psicóloga e pesquisadora da Universidad Veracruzana, no México.
– Aline Yamamoto, secretária adjunta de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República.
– Silvia Pimentel, integrante do Comitê de Acompanhamento da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres da ONU.
– Leila Linhares Barsted, representante brasileira no Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra Mulher.

 

TRANSCRIÇÃO

MESTRE DE CERIMÔNIA

Agradecemos a Tracy Robinson pela importante contribuição. Em sequência, teremos o último painel, né, desse seminário. Lembro que, durante o debate entre as painelistas, as pessoas que quiserem podem fazer as perguntas por escrito e entregar pras recepcionistas, que as perguntas serão encaminhadas e a Tracy Robinson volta no final do painel para responder as perguntas também.

Painel 4 – Desafios para Mudar a Cultura da Violência contra as Mulheres. Para ser moderadora desse painel, convidamos Jacqueline Pitanguy, coordenadora executiva da ONG Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação. Para compor o painel, convidamos Ela Wiecko, subprocuradora-Geral da República. Leticia Cufré Marchetto, psicóloga e pesquisadora da Universidad Veracruzana, no México.

Aline Yamamoto, secretária adjunta de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Silvia Pimentel , integrante do Comitê de Acompanhamento da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres da ONU. Leila Linhares Barsted, representante brasileira no Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra Mulher.

JACQUELINE PITANGUY

Eu acho que nós acabamos de ouvir realmente um apresentação completa, instigante e que, certamente, vai contribuir muito até pro nosso, a nossa conversa aqui. Porque esse último painel se propõe a enfrentar quais são os desafios pra mudança de uma cultura de violência.

Então, eu queria passar imediatamente a palavra pra Ela Wiecko, que é subprocuradora-geral da República e que nos traz, então, a dimensão do sistema de justiça. Em que medida pode o sistema de justiça responder a esse desafio, Ela?

ELA WIECKO

Então, muito boa tarde! É um prazer estar aqui com vocês discutindo esse tema e depois, realmente, dessa instigante fala da Tracy Robinson. Eu tenho só 10 minutos, então eu resolvi focar em alguns pontos e em primeiro lugar, eu tenho que explicar o que eu entendo por sistema de justiça.

Sistema de justiça, ele abrange um conjunto de instituições, que são os juízes, as juízas, os órgãos do Judiciário, Ministério Público, a polícia, toda a execução penal, mas também alguns outros órgãos que, à primeira vista, talvez não sejam pensados como do sistema de justiça, mas são as equipes, por exemplo, psicossociais que auxiliam nas varas de infância, adolescência e de família.

Na verdade, esse termo sistema de justiça, ele é muito usado, mas não existe um sistema de justiça como tal, em que haja uma unidade de propostos, uma integração… mas, enfim, é o nome que se dá e o que eu quero é que vocês tenham a percepção de que ele é muito, muito vasto e aqui no Brasil, nós somos um Estado Federal, então tem o sistema de justiça federal também ou estadual.

Bom, o segundo ponto é… tem a ver justamente com a proposta desse painel, o que que a gente pode fazer para mudar a cultura de violência. E a pergunta que eu faço é: o sistema de justiça, ele tem a capacidade de mudar a cultura de violência? Então, pra essa pergunta, nós temos, basicamente, duas respostas bem radicais, podemos dizer assim.

E uma delas é que nega essa capacidade ao sistema de justiça. Porque diz que o sistema de justiça, ele é um aparato de manutenção da ordem estabelecida, daqueles padrões e valores estabelecidos pela classe hegemônica ou pelo sexo, o gênero hegemônico. Enfim, então, esse sistema de justiça, ele produz e reproduz essa violência e nós não podemos fazer nada por meio dele.

Existe, porém, uma outra visão que acredita que pode, sim, haver uma transformação por meio do sistema de justiça. E quem diz isso é Rebecca Cook, que é uma feminista canadense, em que ela textualmente afirma que “o direito pode mudar as normas e valores para redistribuir poder e recursos.”

Também textualmente, ela diz que “o direito transforma as estruturas econômicas, em alguns países, garantindo que as mulheres sejam remuneradas igualmente aos homens, por exemplo, ou que tenham acesso a cuidados específicos às suas necessidades de saúde.”

No ponto de vista, eu me filio mais ao primeiro posicionamento. Eu acho que a gente não pode imaginar que a cultura de violência, ela seja transformada pela operacionalidade do sistema de justiça. Ela tem essa condicionante que é colocada de que é uma superestrutura, mas, apesar disso, eu acho que nós temos brechas e que não é por negar essa capacidade, que nada pode ser feito no sistema de justiça.

Eu entendo que o sistema de justiça, ele é capaz de, por exemplo, validar posições progressistas ainda frágeis. E, quando isso ocorre, pode impulsionar transformações culturais importantes. Então, nesse sentido, vale a pena investir em ações no sistema de justiça que, em sinergia, a gente não sabe quando, como, mas isso de repente acontece, né, em sinergia com outras ações que estejam sendo realizadas em outros, ditos, sistemas ou campos, poderão, então, resultar numa sociedade mais igualitária.

Então, nesse sentido, eu ressalto – isso a Tracy Robinson, de alguma forma também já falou – as medidas de prevenção previstas na lei Maria da Penha, que continuam a representar desafios na sua implementação. E eu indico 3 que estão no artigo oitavo.

A primeira medida, que é integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, com áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação. E essa, essa medida, ela é muito interessante porque ela, inclusive, ela vai contra, assim, àquela forma do sistema de justiça trabalhar que… de aplicar a lei sem conversar com outros campos de conhecimento e com outros setores, né, das políticas públicas do Estado.

A segunda medida é a implementação de atendimento policial especializado para mulheres, em particular nas delegacias de atendimento às mulheres. A Lei Maria da Penha, ela… ela, ela visualizou a entrada das demandas, né, de modo geral, das demandas das mulheres que estão sofrendo violência doméstica pela delegacia de polícia, pela… no caso, a delegacia de… especializada para as mulheres. E tem que ter mais delegacias e, realmente, especializadas.

E a terceira medida que está prevista num dos incisos do artigo oitavo é a capacitação permanente das polícias civil e militar, da guarda municipal, do corpo de bombeiro e dos profissionais pertencentes áreas que foram antes referidas. Não só do Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, mas também a área de saúde, assistência social, educação, trabalho e habitação.

A lei fala em capacitação e essa palavra, ela tem que ser entendida de uma forma que não se refira apenas a conteúdos, mas sobretudo à sensibilização. Quer dizer, as pessoas, ao serem capacitadas, elas têm que ser sensibilizadas a entender o outro, a outra e qualificação para exercer o ofício com a percepção de gênero.

E aqui também, esse ponto, a Tracy Robinson falou o que que é exatamente nós qualificarmos as pessoas… na perspectiva de, de gênero. Então, eu tenho pensado nisso e, inclusive, na universidade onde eu também sou professor, quer dizer, as minhas pesquisas, elas estão direcionadas… o objeto é o funcionamento do sistema de justiça.

E, num primeiro momento, as minhas pesquisas eram a de demonstrar – e eu trabalho mais com o sistema penal – as diferenças de classe, mas depois eu fui vendo que… pra fazer a crítica do funcionamento, tinha que incorporar também a perspectiva feminista, a perspectiva racista, né, antirracista, também anticolonialista e… ver como esse, esses, essa.. como o racismo, como o sexismo, como o colonialismo, eles estão dentro da prática do sistema de justiça e são argumentos que são utilizados por advogados, advogadas, pelos promotores, promotoras, juízes e juízas.

Então, a tarefa que… é preciso desenvolver dentro do sistema de justiça é identificar na prática de cada um desses profissionais… de identificar nos casos concretos que são trazidos ao sistema, os diferentes estereótipos de gênero e como eles, em concreto, afetam os direitos das mulheres e de outros segmentos também.

E pra terminar, eu queria me referir a uma resolução do… 30º Congresso das Nações Unidas Sobre Prevenção do Crime e Justiça Criminal, que aconteceu agora, recentemente, de 12 a 19 de abril, em Dorra. E, pra minha surpresa e satisfação, acho que pela primeira vez uma resolução das Nações Unidas nessa área do sistema criminal dá tanta importância da incorporação da perspectiva de gênero.

Nessa resolução, são 4, 4 diretrizes, que são direcionadas aos Estados-partes, né, de como eles devem atuar. Então, rapidamente, a primeira diretriz diz respeito a integrar – que novamente, né, essa ideia – de integrar a perspectiva de gênero no sistema de justiça criminal e implementação de estratégias nacionais e planos para promover a completa proteção de mulheres de todos os atos de violência.

Então, esse é o foco do sistema de justiça da mulher como sendo… a vítima, né, da violência. Mas uma segunda diretriz, ela se refere às mulheres infratoras. Então, chama a atenção da necessidade de levar em consideração normas que já foram editadas pela ONU, são as regras para o tratamento das mulheres encarceradas e medidas não custodiais para as mulheres infratoras.

E… e 2 outras diretrizes, que também não são uma total novidade, mas eu acho que elas tiveram um relevo nessa resolução e que me parecem muito importantes. A primeira delas é que o Estados, eles devem desenvolver e implementar estratégias e planos apropriados e efetivos para o avanço das mulheres nos níveis de direção, gerência e outros níveis no sistema de justiça criminal e instituições.

Quer dizer, isso não é novidade, mas no nosso país, nós ainda continuamos muito atrasados. No Conselho Nacional do Público, por exemplo, nós não temos nenhuma mulher. No Conselho Nacional de Justiça, nós temos poucas mulheres e já houve um momento em que não havia nenhuma mulher. Mas ninguém garante que, nos próximos anos, de repente, novamente, o Conselho Nacional de Justiça seja composto por um conselho apenas de homens.

O Conselho Nacional do Ministério Público, talvez agora… mas provavelmente não haverá nenhuma mulher. Nas grandes decisões, no âmbito de administração policial, Ministério Público, Judiciário, nós vemos sempre aquela presença masculina muito forte.

E a quarta diretriz é que… assegurar igualdade de todas as pessoas perante à lei, incluindo igualdade de gênero pra pessoas pertencentes a grupos minoritários e povos indígenas. Então sugere o recrutamento pelas instituições da justiça criminal de pessoas pertencentes a esses grupos.

E realmente, o… o sistema de justiça no Brasil é um sistema de justiça predominantemente, ou quase, né, totalmente branco, sexista, em que… no Ministério Público Federal que eu faço parte, nós não conseguimos, as mulheres, passar da barreira dos 30%, né.

Alguns Ministérios Públicos, alguns Judiciários Estaduais têm um número um pouco maior de mulheres. Mas, enfim, numa visão macro, realmente nós temos que possibilitar não apenas um número maior de mulheres, um número maior de negros e negras… o recrutamento das pessoas com deficiência existe… as cotas, né.

Mas não existem pra negros e negras, não existe para outros segmentos minoritários(?), como ciganos, ciganas, para os indígenas e, realmente, eu penso que isso faria uma grande diferença se nós tivéssemos essa diversidade representada na administração da justiça.

E agora, terminando mesmo, Jacqueline, como conclusão, incorporar a perspectiva de gênero é o grande… no sistema de justiça, é o grande desafio, é uma tarefa, assim, muito exigente, implica a reformulação da linguagem utilizada , implica pensar diuturnamente, sistematicamente como qualquer decisão, ela vai afetar as mulheres ou outros segmentos minoritário, implica a presença de mulheres e o exercício de poder por elas no sistema de justiça. Desculpe se eu falei um pouco demais.

JACQUELINE

Ela, muito obrigada! Pra nós, militantes, feministas, ativistas, ter você no sistema de justiça, é certamente uma porta aberta pra vencer os desafios. E eu acho muito interessante essa colocação de que as leis, realmente, não têm essa capacidade de mudar o sistema de justiça. A mudança é feita por fora, né, através das brechas, como você mesma colocou.

Pois não… está ruim?… Então, a partir, então, dessa apresentação da Ela, eu gostaria agora de passar a palavra pra Letícia Cufré, que é psicóloga e é pesquisadora e que eu acho que vai procurar responder a esse desafio a partir de uma perspectiva multicêntrica, digamos, que ela vai incorporar universidade, governo, sociedade civil e vai acrescentar outro desafio, qual seja o  de como diminuir a violência sem usar os aparatos repressores do Estado. Então, é um grande desafio.

LETÍCIA CUFRÉ (SEM AÚDIO DE TRADUÇÃO)

Bem, em primeiro lugar, muito obrigada pelo convite. Realmente, pra mim é um gosto imenso estar aqui no Brasil novamente.

Eu acho… e gostaria também de agradecer às pessoas que falaram do público e também dos oradores, porque eu senti que eu aprendi muitas coisas com vocês nesse dia e meio que eu fiquei aqui com vocês, portanto eu sou muito grata a todos vocês. Eu vou transferir tudo isso pra equipe com a qual eu trabalho.

Bom, eu acho que se alguma coisa ficou clara nesse dia e meio de debates, pelo menos pra mim, é que não pode existir um único olhar que realmente atenda a todo o objeto enorme com o qual nós estamos querendo trabalhar. Quer dizer, não há uma única forma de garantir que nós vamos ver uma cultura da violência se nós colocamos num lugar onde obviamente somente podemos ter um olhar a partir dessa perspectiva.

Ficou claro, pela riqueza das formas em que os diferentes oradores conversaram e conseguiram mostrar a todos que um objeto complexo está relacionado com que nós não podemos analisar as suas partes, mesmo sendo heterogêneas sem levar em consideração o relacionamento e a articulação com as outras partes.

Isto que eu estou falando, assim, em termos gerais, porque eu acho que ficou muito claro no trabalho que foram mostrando todas as companheiras e companheiros, que cada uma trouxe pontos de vista que pareciam diferentes, mas que estavam relacionados com o nosso objeto.

Tudo isso eu vou colocar no que eu gostaria de transmitir a vocês. Eu vou falar sobre o México, que é o meu país. Vocês vão ver se alguma coisa do que eu falo pode também se aplicar a vocês. Vocês já entenderam que eu estou parafraseando alguém que fala “eu vou falar disso que eu conheço e vocês vão ver se realmente pode servir pra toda as outras partes da América Latina ou não ou se serve especificamente para o Brasil o que eu vou falar.

Isto realmente é uma determinação de vocês, mas de qualquer forma, a primeira coisa que eu gostaria de conversar a partir de onde nós partimos. Nós partimos de uma pergunta e a pergunta pode parecer óbvia e até um pouco tonta, mas na verdade é assim: se nós estamos todos de acordo, por que custa tanto implementar essa situação?

Se todos os governos – eu nunca escutei m=nenhum governo falar que estava a favor da violência contra as mulheres – se todos os organismos internacionais e todos os partidos políticos, se todas as igrejas… o que que falha dentro de tudo isso que nós não conseguimos chegar a obter resultados que realmente sejam satisfatórios?

Cuidado! Nós temos resultados, nós conseguimos avançar muito, eu escutei falar sobre experiências maravilhosas, mas também eu escutei falar que falta alguma coisa, nós não conseguimos realmente concluir este trabalho. O trabalho de hoje de apresentar o que acontece no México, mas porque eu trabalho lá, é o lugar onde eu pesquiso e sobre o que eu consigo falar a vocês, com todo o carinho pelo Brasil, mas eu não poderia falar com o Brasil, embora eu tenha… embora eu tenha nascido na Argentina, não poderia falar da Argentina porque eu trabalho no México.

Entretanto, temos diversas respostas que nós podemos tratar de estabelecer sobre esta pergunta. O que que está faltando ou quais são as coisas que realmente falharam? A primeira, seria esta que eu já tratei. Se o objeto é complexo não pode ser analisado de uma forma simples e linear.

Não há forma de homogeneizar o que é heterogêneo sem quebrar o critério de diversidade e até mesmo o critério de tolerância. Quando eu trato de trabalhar com consensos absolutos, nós já sabemos que estamos falando de pelo menos da américa Latina, de alguma outra ditadura que está querendo ter um consenso absoluto de uma forma que não é legal.

Então, a primeira coisa é que nós não podemos isolar os elementos e, portanto, eu me pergunto: podemos lutar contra a cultura da violência contra as mulheres sozinhas? Ou será que precisamos lutar contra a cultura contra a violência ponto(?) e, dentro disso, reconhecer que a nossa especificidade está no campo, na área das mulheres, mas reconhecer a relação que tem isso com as outras coisas?

Aqui temos o primeiro problema. Aprendi muito, mas houve algumas coisas que realmente eu acabei não entendendo muito bem, como por exemplo, nós não podemos falar sobre cultura e falar somente sobre normas; precisamos falar sobre as formas que a sociedade simboliza ou se o mundo é sua realidade.

Como se situa tudo aquilo que é social dentro da construção social de subjetividades e também das normas. Mas nós não podemos falar somente das normas. Muito cuidado, porque se nós não falamos de uma sociedade de prescrição e nós sabemos o que é isso, portanto, nós não temos realmente muita fé nisso.

Então, vamos ficar nesse ponto: o “solamente”, os olhares únicos, a tentativa única. A outra coisa é que nós poderíamos falar de uma perspectiva história. No México, falar sobre uma perspectiva histórica obviamente é falar sobre a revolução mexicana e também em falar sobre o que são as violências atuais.

Vocês vêm esta imagem mais ou menos da Adelita, que agora está mudando, quando as historiadoras, as adelitas não (?) cozinhar com o exército, mas também que elas iam lutar. E por outro lado, esse trem , não sei se todos vocês conhecem, que é nominado “a besta”. Esse trem dos imigrantes econômicos, que vai do sul até os Estados Unidos. Se eles sobrevivem, porque eles precisam passar por determinadas regiões muito perigosas, ás vezes são assassinados, sequestrados etc., etc.

E estas mulheres que vocês vêm aqui são as patroas, são denominadas as patroas no México, porque há uma estação de trem denominada “as patroas”. As patroas não aceitam ajuda oficial nem do governo, elas desconfiam muito do governo e elas se aproximam do trem cada vez que o trem passa com… levando algo de arroz e de feijão para entregar isto para estas pessoas que são imigrantes.

Nós estamos falando de muita força, de muita violência e estamos falando de uma diferença bastante dolorosa entre aquelas guerras revolucionárias e estas guerras atuais, miseráveis, por denomina-las de alguma forma.

Bom, então, agora, antes de colocar isto, eu vou passar um vídeo pra vocês, vamos ver um vídeo para simplificar esse relacionamento que existe entre todas as violências no México. Vocês devem saber isto. Então, para exemplificar esta situação de todas as violências do México, pra isto, eu gostaria de esclarecer que, desde o ano 2006, o então presidente da República, então presidente da República, declarou guerra ao narcotráfico.

Desde então, não há data, não há nenhum número certo nem data da quantidade de mortos e desaparecidos no México por exemplo. Um número, quando o presidente Felipe Calderón saiu da presidência era de desaparecidos de 26 mil e a cifra de mortos era 100 mil pessoas .Depois, passaram uma cifra de 26 mil pra 13 mil. Claro, não encontraram ninguém, mas os números mudaram.

É como o petróleo; o petróleo, na verdade, abaixa, mas a gasolina sobe. Então, esta é uma outra coisa. Da mesma forma que estes números sobem e descem, ninguém sabe porquê. Portanto, digamos que nós temos entre 13 e 14 mil desaparecidos, 26 mil a 30 mil desaparecidos, nenhum banco de DNA pra saber onde eles estão nem ninguém que realmente consiga resgatar isso. E temos aproximadamente 100 a 130 mil mortos, mas como continuam acontecendo mortes todos os dias, nós não podemos falar o número exato de mortos.

Porque as… porque, na verdade, os números chegam a 92%. Temos mortes não registradas que chegam a 92%. São algumas mortes que não são lamentadas, nós podemos falar de algumas mortes que, na verdade, nem sabemos que aconteceram. Já não são choradas, já não são lamentadas, mas são ignoradas. No meio de toda esta situação, eu gostaria de mostrar pra vocês um exemplo pra vocês conseguirem ver como funciona e como vocês conseguem imaginar esse tipo de violência existente no México.

Vão ver um exemplo que parece, na verdade, um filme, mas na verdade, são fatos verídicos. É um vídeo de 3 minutos que tem 3 partes. A primeira parte, vocês vão escutar um discurso, que eu espero que vocês consigam traduzir, as companheiras tradutoras para o português ou para o inglês, porque é o discurso de um senhor que… é denominado… eu acho que já esqueci até o nome. Eu comecei (?), por isso não quero nem lembrar o nome dessa pessoa, mas é o presidente municipal de San Blas.

Nacharid(?) é um estado muito pequenininho que fica do lado de (?), do estado de (?), que são muito próximos daquela história que vocês conhecem como (???) e está na área norte do país, quer dizer, onde, por onde passam todos os cartéis de drogas e parece que não acontece nada naquele território, parece que não acontece nada.

Buscar outros especialistas, narco e crime organizado falam que não acontece nada porque os narco já compraram tudo que precisavam comprar, até mesmo alguns políticos. E, na verdade, não tem porque brigar. Então, como eles não têm porque brigar são estados muito tranquilos.

Mas temos este cara, esse senhor, que vocês agora vão ouvir esta primeira parte, é o discurso que foi feito, foi elegido uma vez e foi elegido uma outra vez com este discurso que vocês vão ouvir mesmo que vocês considerem que é mentira.

Tem uma segunda parte com uma festa, que fez este homem pro seu aniversário, convidou a cidade inteira e comprou um milhão de garrafas de cerveja e fez esta festa que vocês vão ver, deu esta festa que vocês vão ver aqui. Depois, tudo isso apareceu nas redes sociais e depois está o direito a resposta dessa pessoa numa entrevista que ele fez na TV que, além da verdade de uma resposta, é uma coisa que é desopilante, vocês vão se matar de rir.

Mas vocês vão ver o… digamos, os marcos da delinquência organizada e do crime organizado. Vocês vão ver corrupção, vocês vão ver roubalheira, vocês vão ver assédio sexual, vai haver violência, violência física contra as mulheres e vocês vão ver uma violência simbólica desta que está relacionada com a negação do outro, com realmente o maltrato das outras pessoas.

Eu espero que vocês consigam entender e separar este tipo de violência. É horrível o vídeo, mas parece que este homem fez de propósito. E eu que não consigo nem lembrar o nome dele.

Fui muito criticado. Os meus amigos do outro lado são meus amigos do outro lado, criticaram muito eu, porque eles falam que eu gosto muito do dinheiro, mas quem não gosta do dinheiro, quem não gosta de dinheiro? Eu gosto do dinheiro, como vocês gostam e como eles gostam e como todo mundo gosta do dinheiro.

Mas eu gosto muito de trabalhar. Que eu roubei da Presidência, eu roubei; claro, roubei bastante, roubei bastante. Foi um pouquinho, foi um pouquinho, porque era uma… era pobre, uma Presidência pobre, eu dei uma beliscadinha só. Mas eu roubava, com esta mão eu roubava e com esta mão eu dava pros pobres. O que eu roubava, eu dava pros pobres, companheiros.

Neste vídeo você vê como eu olho pras pessoas  e falo, com as duas mãos e falo. Olha, vejam só o que eu faço. E fala: olha, nós somos muito amigos, somos muito amigos, somos muito amigos. Eu fiz isso duas, três vezes; fiz isso 100%, mas eu peço perdão por isto, peço perdão pra ela, pra Rosita, pra sua mãe, que é a Norma e por seu pai, Chave e pra toda sua família.

Não fiz de propósito, não fiz por mal, está tudo ótimo, está tudo bem. E se, diante da sociedade, se eu preciso pedir perdão, eu faço isso, eu faço, peço perdão, porque eu sou uma pessoa sensata. E porque eu gosto de respeitar os outros. Eu não gosto de as coisas que… eu não gosto de fazer com os outros o que eu não gostaria que fizessem pra mim, pra minha família.

E vendo isso pelo lado que outras pessoas olharam isto, porque eu não fiz isso com má intenção na verdade, não fiz isso com má intenção de verdade, agi assim sem má intenção. Porque, como mulher, eu peço perdão a ela. Peço perdão a ela e peço também perdão a todas as mulheres do mundo, porque todos somos iguais, tanto os homens como as mulheres somos iguais, temos o mesmo valor. E quem sabe a mulher valha até um pouco mais.

E acho, se é uma coisa importante… uma coisa importante, mas foi uma tonteria que eu fiz, foi uma bobeira, fiquei de bobeira, é uma coisa importante. Mas, na verdade, eu bobeei, eu bobeei, eu fiz uma bobeira. Na verdade, eu fiz besteira, mas na verdade, eu acho que há coisas muito mais importantes que nós precisamos nos preocupar. Eu acho que há coisas que realmente devemos nos preocupar com essas coisas.

Mas aproveito pra cumprimentar, porque (?) o Dia internacional da Mulher, eu gostaria de cumprimentar a todas. Vamos fazer uma festa em San Blas, uma festa bonita, vamos fazer uma festa no Dia das Mães, mas vamos fazer uma festa pra comemorar as mulheres.

Aproveito a oportunidade para desejar uma boa viagem ao presidente da República que está em Londres, ao nosso governo, ao governador, aos nosso deputados, aos nossos colegas presidentes e à toda a sociedade.

Escutamos o senhor Ramirez Villanova, presidente municipal, prefeito da cidade de San Blas. Não vale a pena comentar, é uma coisa tão clara, tão óbvio; o que fica claro é este tipo de violência como se apresenta. E a pergunta que surge é assim: como, como fazemos?

Primeira coisa, nós trabalhamos em áreas de alto nível de marginalidade, de elevado nível de violência e trabalhamos com um projeto onde o nosso objetivo é ver se seria possível parar com a escalada de violência sem utilizar a violência como método principal. Principalmente a que está relacionada com o uso da doutrina de segurança interna.

Quer dizer, a localização do inimigo dentro, porque isso confunde todas as situações de violência. Nós pensamos que se nós conseguirmos que as pessoas enxerguem, se nós vãos até as pessoas, se nós perguntamos pras pessoas e damos a possibilidade de participação às pessoas, as pessoas realmente vão conseguir atingir os níveis e as formas conhecidas e que sirvam, que servem de base pra essa violência.

Fazendo este tipo de trabalho – o meu tempo já acabou – além dos alarmes que são colocados nas comunidades no que se refere à violência de todos os tipos, são colocados alarmes de violência intrafamiliar, mas não porque nós decidimos, mas porque foi decidido pelas pessoas da comunidade, assim como grupos de mulheres que vão lá e ficam diante das casas onde existe violência intrafamiliar e ficam lá olhando, bem quietinhas, somente como uma forma de denúncia.

Nós trabalhamos numa equipe interdisciplinar e nós pensamos que o único refúgio, realmente são os outros. Eu vou concluir aqui porque já terminou meu tempo. Muito obrigada a todos pela atenção.*

JACQUELINE

Muito obrigada, Letícia! Eu acho que você trouxe essa dimensão e perceber e identificar a violência num ambiente de extrema violência. Nós vivemos no Brasil também, ao interior de algumas comunidades… essa banalização da violência, que muitas vezes torna invisível a violência contra a mulher.

Eu gostaria, agora, de pedir pra Aline Yamamoto conversar conosco sobre a experiência da Secretaria de Políticas das Mulheres com relação à violência. Porque essa, eu diria, é uma das áreas nevrálgicas da SPM, onde a SPM tem investido muito, então seria interessante você compartilhar conosco.

ALINE YAMAMOTO

Obrigada, Jacqueline! Boa tarde, então, a todos aqui presentes. Realmente, na programação, vocês podem ver que quem estava previsto pra vir aqui conversar com vocês era a secretária Aparecida Gonçalves. Infelizmente, ela não pode estar aqui presente por razões de saúde, razões médicas.

E… não pude também deixar de aceitar o convite da Jajá, que pra mim é uma enorme honra. E principalmente, agradecer e cumprimentar todas as mulheres que estão aqui nesses painéis… nesse painel, que são mulheres por quem eu tenho profundo respeito, admiração e, mais que tudo, gratidão, por tudo que já contribuíram pro feminismo no nosso país.

E cumprimentar, então, também, especialmente, à gestora de políticas(?) pras mulheres que estão aqui, que muitas vieram de seus estados, deixaram suas agendas sempre muito concorridas, muito corridas pra acompanhar esse evento.

Bom, então, o que eu queria nesse tempo, é um pouco compartilhar mesmo o olhar da minha perspectiva e do lugar que estou hoje, que é a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência. E aí, eu queria começar falando um pouco do óbvio, né, falando… pensando qual é o papel do Estado frente a essa cultura de violência contra as mulheres.

E o primeiro lugar é sempre reconhecer que o Estado, ele é uma estrutura complexa e é uma estrutura que está permeada  pelos poderes hegemônicos da nossa sociedade. Não é… ele não está isolada e, portanto, reconhecer que ele é… existe tanto o movimento do Estado reproduzir os poderes hegemônicos de racismo, sexismo, como muitas vezes, ao longo da história, fez e tem feito, mas também tem a possibilidade de buscar reformular esses poderes e buscar dar… uma nova… mexer na estrutura de dominação que está colocada aí há séculos.

Então, só pra gente olhar e pensar, começar pensando que, no marco internacional dos Direitos Humanos, a nossa história de afirmação dos Direitos Humanos é muito recente. E, quando a gente pensa nos direitos das mulheres, essa história é ainda mais recente, né.

E posso considerar, então, a partir da SEDOC, que a professora Sílvia Pimentel deve falar, abordar esse tema, que é da década… no final da década de 70, né, de 79, então, a gente pensa em marcos internacionais de… pelos direitos das mulheres que tem aí 30… 30 anos, né, 30, 40 anos.

E isso vem numa evolução (???) jurídicos, também vem acompanhada por toda essa demanda dos movimentos de mulheres, pela garantia de direitos, pela implementação de políticas públicas. Então, na década de 80 teve toda essa evolução normativa e no âmbito internacional, na afirmação de que os direitos das mulheres são direitos humanos.

Isso, no âmbito regional da América Latina, também em relação aos marcos normativos, começou a vir mais fortemente alterações legislativas na década de 90. E, especificamente, em termos de política pública, a gente tem um grande fortalecimento, um momento de institucionalização das políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres.

Mas a partir da década de 2000, ou seja, a gente está falando de apenas 15 anos em que a gente vê uma… todo um movimento, principalmente aqui na região, na América Latina, de elaboração e de políticas e planos para o enfrentamento da violência contra as mulheres. E isso é uma análise bem interessante que a ONU Mulheres fez de todos esses planos, de todos os países aqui da região, deixando muito claro essa evolução das políticas públicas.

E no Brasil, então, tem sido… tem seguido um pouco essa, essa linha, esses marcos históricos de afirmação de direitos e de políticas públicas. E aí, quero passar muito rapidamente então, a gente tem desde 1985, como resposta das demandas (?) de mulheres e feministas, a criação da primeira… serviço especializado para atender mulheres em situação de violência foram as delegacias especializadas. Após, teve todo um momento de redemocratização, afirmação dos direitos das mulheres na nossa constituição.

Em 2003, nós viemos então… a Secretaria de Política para as Mulheres no âmbito da Presidência da República, juntamente com outras secretarias, como a CEPIR, um momento, então, que o Estado reconhece essas pautas identitárias voltadas pra redução das desigualdades estruturais na nossa sociedade.

Em 2010, ela…a secretaria SPM foi elevada ao status de ministério efetivamente, que foi um enorme avanço em termos de políticas. Então, aí só pra lembrar no âmbito mais macro da política para as mulheres, a gente tem o primeiro plano nacional de política para as mulheres após a primeira Conferência Nacional, que foi realizada em 2004. E essa política nacional, ela articula todos os órgãos do Governo Federal pra desenvolver ações voltadas às mulheres.

A gente tem o Comitê de Articulação e Monitoramento do PNPM, que é composto por 32 órgãos e tem representações também do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, do CNDM. E aí, no âmbito do Governo federal, a gente pensa em diferentes estratégias pra transversalizar a política.

Uma delas, por exemplo, é criar mecanismos de gêneros nesses diversos órgãos. Até agora a gente tem 13 mecanismos de gêneros que foram criados, no Ministério da Defesa, no Ministério de Relações Exteriores, outros ministérios, na FUNAI também.

E outra questão importante também é incluir a questão das pautas das mulheres no plano plurianual, no PPA. Então, no PPA atual, que é de 2012 a 2015, a gente tem mais ou menos 20% dos objetivos, que são mais de 400, que estão direcionados especificamente para as políticas para as mulheres.

Isso é extremamente relevante, porque o PPA também está conectado à questão orçamentária. Então, esse é um trabalho que a SPM… precisa, é o papel, é a missão da SPM fazer, que é, dentro da estrutura do Estado, do executiva federal especificamente, incluir-se a política para as mulheres em todos os âmbitos.

Ao mesmo tempo, em 2004, falando e pensando na expansão, né, como a gente vai fortalecer, então, essa política em âmbito nacional. E aí, em 2004 foi criado o fórum nacional de organismo de política pras mulheres. À época, existiam 3 organismos de políticas pras mulheres, que são secretarias, coordenações, superintendências, são órgãos voltados especialmente para pensar essas políticas. E hoje a gente tem mais de 700 organismos de políticas para as mulheres.

Então, é preciso reconhecer que a gente está avançando em termos de institucionalização dessas políticas. Ao mesmo tempo, e aí especificamente só pra mencionar, por conta do tempo que a gente tem aqui pra compartilhar, a política de enfrentamento à violência contra as mulheres também tem diversos marcos e eu queria mencionar: em 2005, foi criado o Ligue 180, que hoje já atendeu… mais de 4 milhões de atendimentos foram realizados.

A gente teve em 2007 o lançamento do pacto nacional de enfrentamento à violência, que é uma estratégia de descentralização da política. Então, por meio de acordos federativos com estados e municípios, que constroem, portanto, as suas políticas estaduais e municipais de enfrentamento à violência contra às mulheres seguindo as diretrizes do Governo Federal.

Ao longo do tempo também, o Governo Federal, a SPM tem ditado as diretrizes para o funcionamento dos diferentes serviços especializados, como o serviço de abrigamento, centro especializado de atendimento à mulher, delegacias especializadas…

Em 2012 tivemos a campanha, temos até hoje, Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha, que acima de tudo é uma ação de grande mobilização do sistema de justiça, do legislativo e que contou com adesão de empresas públicas e privadas no engajamento e no enfretamento á violência contra as mulheres.

E aí, mencionar aqui, algumas das empresas aqui financiadoras deste evento estão também na Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha. Em 2013, o Programa Mulher Viver Sem Violência, que já foi mencionado pela ministra, que foi uma estratégia de avançar em relação ao atendimento integral e humanizado às mulheres em situação ode violência com diferentes estratégias.

Algumas nas capitais, voltadas para qualificar os serviços já existentes e pensando também na expansão do atendimento pras mulheres do campo, das florestas, das águas, das regiões de fronteiras. Também houve um crescimento grande, então, de 2003 até hoje do número de serviços especializados de atenção às mulheres em situação de violência, que a gente tinha então, de 332 serviços, hoje nós temos mais de mil.

Isso dá… um olhar macro, então, pra essa política que nós vimos trabalhando ao longo dos últimos “ano”. Mas sempre reconhecendo que há imensos desafios nesse processo. Um deles é a própria continuidade das políticas, que hoje ainda está muito sujeito À discricionariedade dos gestores, das chefias dos poderes executivos municipal, estadual. Isso não está necessariamente a uma pequena eficiência, a uma pouca eficiência desses organismos nos estados ou nos municípios.

Então, nessas últimas eleições, infelizmente, nós observamos isso, os estados que… secretarias de mulheres com um trabalho muito consolidado, houve um retrocesso no sentido de extinguir a secretaria e transformá-la num órgão assessor ou da casa civil ou do gabinete. Infelizmente a gente está… e essa, todo esse trabalho de institucionalizar a política é também…faz parte da luta pela visibilidade, pela garantia de direitos, que está permeada nessa cultura de discriminação contra as mulheres em geral.

Como o meu tempo já esgotou, eu queria falar rapidamente que ainda resta muitas demandas de acesso à justiça que… e quando a gente pensa, então, qual é o papel do Estado, a gente também precisa olhar os desafios na implementação das leis na ponta, então a Ela já falou da questão da Lei Maria da Penha e os desafios que estão postos.

Mas, principalmente, quando a gente pensa na cultura de violência e como ela está permeada aos serviços públicos, isso acho que fica muito evidente quando a gente fala de um problema da revitimização. Isso nada mais é do que a tolerância à violência presente também, infelizmente, nos serviços especializados, como já constataram algumas pesquisas sobre a questão da tolerância institucional à violência contra as mulheres.

Então, de um lado, acho que isso é preciso sempre ter… são esses um dos nosso desafios, né, a gente trabalhar permanentemente pelo aprimoramento e a qualificação dos serviços para que as mulheres quando atendam… o nosso recado, que aí eu queria só terminar fazendo essa reflexão:

Quando os movimentos de mulheres, os movimentos feministas, vinham muito na década de 70 e 80, pedindo, denunciando a questão da violência contra as mulheres, pedindo pra que se rompa esse pacto de silêncio, ele serviu muito pra denunciar a omissão do Estado em relação à violência no âmbito da justiça, do executivo, do legislativo também.

Agora, a gente tem observado muito nos últimos anos é que o próprio Estado, quando ele diz para as mulheres denunciem, isso tem um outro peso e um outro significado. Nós estamos pedindo para as mulheres procurarem os serviços, nós temos que ter… nós temos uma enorme, enorme responsabilidade quando essas mulheres buscam, então, rompem essa pacto de silêncio e procuram os serviços especializados.

Todos, sejam quais forem, de saúde, de segurança pública, de assistência social, psicológica… e esse é o tamanho do nosso desafio. E a luta, portanto, se faz, o combate à discriminação e essa tolerância à violência contra as mulheres, ela se dá permanentemente dentro da estrutura do Estado e fora dela. Então, são esses alguns avanços, os enormes desafios e era um pouco isso que eu queria compartilhar com vocês. Obrigada!

JACQUELINE

Obrigada, Aline, por traçar esse percurso. Eu passo, então, a palavra pra Sílvia Pimentel. Sílvia é jurista, a história de vida da Sílvia está ligada ao feminismo no Brasil. Mas ela, agora, nos fala de uma perspectiva mais internacional, a partir do CEDOW, onde a Sílvia, inclusive, exerceu a sua presidência.

SÍLVIA PIMENTEL

Jacqueline, é um prazer estar aqui ao seu lado, é um prazer estar ao lado de queridas amigas com Leila, como Ela, Aline e de ter recebido você aqui no nosso país, vinda do México, um dos países irmãos que mais tem vivido a violência de uma maneira estrutural e medonha, né. Eu tenho tido a oportunidade de estar no México.

Nesses últimos 3 anos, eu estive pelo menos 3 vezes e quero aqui render minhas homenagens a você e às companheiras que têm enfrentado de uma maneira impressionante, porque, inclusive corajosa, com risco de vida, esse tipo de trabalho.

Eu queria cumprimentar a organização do evento, estou vendo Jajá, Marisa, ao Instituto Herzog, aos parceiros que tornaram possível. Quero cumprimentar e dizer da minha alegria ao escutar a Tracy Robinson e, antes dela, ao presenciar e escutar a jovem menina-mulher, né, que de maneira, assim, tão bela, nos falou trazendo a força da juventude absolutamente necessária pra, exatamente, dialogando conosco, fazer crescer esse nosso movimento. Eu não tenho dúvida que fizemos avançar.

Mas tenho menos dúvida… ou ainda, de que falta muito a avançar, né. Bem, eu preparei… porque eu achei que era importante e gostaria de precisar com mais clareza, que talvez se perdesse num improviso aqui. Claro, vou falar, como Jacqueline disse, a partir dos meus quase 40 anos de feminismo aqui no Brasil e vou falar, claro, com essa experiência dos meus 10 anos de CEDOW, mas eu vou focar especificamente sobre um tema que pra mim está muito claro.

É como a Tracy disse, temos que olhar todas as formas de violência. E eu vou desenvolver, numa linha um pouco diferente do que eu tenho ouvido e parece que não ouvi, uma das formas de violência que nós não estamos explicitando como uma forma de violência contra a mulher.

Dei até um título, já que trouxe escritinho, né, tem um título: A institucionalização da violência reprodutiva por parte de estados nacionais, uma das múltiplas formas de violência é fruto e reproduz a cultura de viol~enci9a de gênero. Pare e ser óbvio a todas nós que a punição estatal é importante, isso já foi falado, mas não é elemento fulcral e suficiente para o combate da violência contra as mulheres.

E que, para avançar na proteção e prevenção, em face desse flagelo endêmico e universal, há que se buscar ir além de nossas concepções e estratégias atuais. Estudos e debates voltados para uma abordagem cultural ampla e aprofundada do tema, a meu ver, é o caminho mais fecundo.

Em nosso mundo ocidental, são inegáveis os avanços normativos em relação ao tema da violência e aos direitos da mulheres enquanto um todo. Porém, não se pode deixar de observar que esses avanços não se têm traduzido da prática e no dia a dia das mulheres, demonstrando a pouca eficácia ou mesmo ineficácia dessas medidas legislativas.

Ela já falou um pouco sobre o sistema de justiça, não é, e acho que a dimensão do direito tem que estar muito presente quando trabalharmos com a cultura da violência, por mais que ele seja tão insuficiente. … Não há dúvida, a gente trabalha com isso mesmo, enfrenta, o androcentrismo do direito, não é, e a (?), querida amiga e colega do movimento de mulheres lá da Costa Rica e hoje na ONU, né, como membro de… daquele grupo de discriminação na prática das leis, é uma das juristas que desenvolveu melhor aqui na américa Latina e Caribe essa questão. Muito obrigada por trazê-la.

Então, como eu dizia, eficácia e ineficácia, né, de medidas legislativas. Cabe indagar, portanto, acerca das razões subjacentes a tal realidade. Referir indagação nos indica que a cultura e a sociedade resistem em absorver esses avanços normativos. E por quê?

Isso porque estereótipos, preconceitos e discriminações de gênero estão presentes na nossa cultura e inculcados nas inconsciências dos indivíduos. São, portanto, reproduzidos também nas autoridades, em todos os níveis institucionais, inclusive aqueles mais altos da república e refletidos, lamentavelmente, em sua práxis… político-jurídica.

O próprio direito – e foi trazido aqui Rebecca Cook, também uma querida e brilhante amiga – o próprio direito pode representar um instrumento  emancipatório e de mudança da cultura por meio de normas que garantam direitos e promovam de forma positiva a superação de conceitos e práticas discriminatórias enraizadas.

Mas, para tal… precisa constituir uma unidade coerente de valores, que respeitem a dignidade, a igualdade e a autonomia das mulheres. Cabe indagar, portanto, até que ponto o ordenamento jurídico brasileiro está livre de contradições e lacunas quanto à garantia de alguns direitos fundamentais às mulheres, muito especialmente na área da sexualidade e da reprodução.

Avalio que inconsistências jurídicas desse tipo tornam nebulosa a percepção e conscientização em relação à violência contra as mulheres de maneira plena. Observa-se que há nos organismos internacionais de Direitos Humanos e no próprio movimento de mulheres uma abordagem multissetorial de violência contra as mulheres.

No entanto, verifica-se ao mesmo tempo, a existência de uma dicotomia na luta pelos direitos das mulheres, que prioriza duas vertentes; a vertente da violência contra mulheres e meninas de um lado e de outro, a vertente de seus direitos sexuais e reprodutivos. Isso se dá aqui no Brasil, isso se dá no mundo, isso se dá, inclusive, no comitê que pertenço há 10 anos, em que tratamos, inclusive, em artigos diferentes o tema da violência.

No artigo quinto, ligado à cultura, a estereótipos, modificação de padrões culturais. E tratamos do tema da reprodução, do aborto, no artigo doze, na saúde. Bem… trata-se – essa estratégia, essas duas vertentes – trata-se de uma estratégia que proporcionou avanços, isso é inegável, mas que tem se mostrado insuficiente, pois obstaculiza, a meu ver, a obtenção de uma unidade no direito e, assim, impede uma ampla e consistente percepção, conscientização e problematização por parte da sociedade sobre, grifos, as múltiplas formas de violência contra mulheres e meninas, sua gravidade e capilaridade.

Abordar a violência física, sexual, psicológica, moral, patrimonial e outras separadamente do tema da violência na área da sexualidade e da reprodução enfraquece, a meu ver, e cinge a luta por direitos afastando-a do cerne da questão, que é o enraizamento de estereótipos e de preconceitos de gênero que compõe a cultura de violência contra as mulheres, fundamentada em conceitos e práticas milenares baseadas na inferioridade e subordinação das mulheres.

Esse fenômeno se manifesta especialmente na questão relativa ao aborto, que é hoje um problema premente em nosso país e na região da América Latina e Caribe como um todo, havendo inclusive riscos de retrocessos considerando, isso em nosso país, a título de exemplo, a proposta da lei número 478 de 2007, o estatuto do nascituro.

Poderia prosseguir. Lamentavelmente, em razão da dicotomia, insisto, já mencionada e por motivos políticos, ideológicos e religiosos, o problema do aborto não tem sido priorizado e tratado como uma das múltiplas formas de violência contra as mulheres.

A violência contra as mulheres pode resultar em violações a seus direitos sexuais e reprodutivos, assim como a violação a esses direitos constitui uma forma de violência contra elas, na medida em que lhes causa danos e sofrimento, ferindo e impedindo o gozo de seus direitos civis, políticos, econômicos e sociais.

Conforme explicitado pela relatora especial das Nações Unidas sobre violência contra as mulheres, antes, na “Manju”(?), já mencionada, Radhika Kumaraswamy, em 2005, 2006, esteve aqui conosco – foi uma honra recebe-la, não foi, Jacqueline? – em relatório apresentado ao Conselho Econômico e Social, em janeiro, isso ainda antes do que ela esteve aqui, em janeiro de 1999, sobre políticas e práticas que impactam nos direitos reprodutivos das mulheres e contribuem para, vírgula, causam ou constituem formas de violência contra as mulheres.

Então, ela falava isso em 1999. No referido documento, Rashida destacou que a imposição de sanção penal contra o aborto constitui uma violência perpetrada pelo Estado de maneira direta, tendo em vista que o aborto inseguro é uma violação à integridade física da mulher e à sua segurança pessoal.

A relatora da ONU, atenção, enfatiza que em países em que o aborto é ilegal, as mulheres com sua gravidez indesejada são forçadas a recorrer a procedimentos que ameaçam sua vida, enquanto o aborto realizado sob condições apropriadas, seria, ao contrário, seguro.

Queria aqui lembrar a todas o que todas sabem e deem estar com isso bem presente na cabeça, a história da menina de 10 anos. 10 anos no Paraguai, com 34 quilos, sendo obrigada a prosseguir na gravidez de um padrasto. Isto é escândalo que nós não podemos deixar de dar prioridade pelos motivos já mencionados aqui em minha fala.

Eu peço à coordenadora dessa mesa se eu posso prosseguir… Muito obrigada, obrigada! Eu acho que até ia chorar se não pudesse… Vamos lá!… Há ainda uma dupla discriminação em relação às mulheres de baixa renda. E sabemos, dentre elas, aqui no nosso país, muito especialmente as mulheres negras.

A Organização Mundial da Saúde estima que são praticados no mundo aproximadamente 40 milhões de abortos por ano, dos quais 26 a 31 milhões são legais e 20 milhões são ilegais e, portanto, inseguros. As mulheres com condições financeiras favoráveis possuem acesso ao aborto seguro – todo mundo sabe – mesmo nos países em que essa prática é criminalizada.

Enquanto mulheres de baixa renda devem recorrer a abortos clandestinos em condições que todas nós presentes aqui sabemos da sua precariedade. É interessante observar que esse problema tem sido abordado pela ONU, Organização das Nações Unidas e suas agências; pela OEA, Tracy, Organização dos Estados Americanos; pela Academia e mesmo pelos nossos movimentos feministas como um problema prioritariamente de saúde, cidadania e autonomia das mulheres.

No entanto, convido a todas e todos aqui presentes à seguinte reflexão: por que não tratar a criminalização do aborto como uma grave, sistemática e massiva violência contra as mulheres? Isso é termo do direito internacional em várias convenções da ONU.

Violência grave, sistemática e massiva, atenção. Por que violência grave? Grave, tendo em vista que o aborto inseguro gera consequências alarmantes para a saúde pública, uma vez que constitui uma das principais causas de mortalidade materna em todos, todos.

Às vezes é segunda, terceira, quarta ou quinta, fica por aí dessa minha experiência de 10 anos na ONU. Muitas mulheres que não desejam e/ou não têm condições de manter a gravidez acabam se submetendo a um aborto em condições precárias, o que já sabemos e essa frase eu já posso terminar sem falar mais nada dela.

E por que a sistemática, né, grave e sistemática? Sistemática tendo em vista a sua recorrência. Apesar da proibição, as mulheres continuam buscando serviços e métodos clandestinos de práticas de aborto para interromper a gravidez indesejada. No Brasil, uma em cada nove mulheres passou por um procedimento de aborto clandestino.

E por fim, é uma violência massinha em razão da enorme quantidade de mulheres que atinge em todo o mundo. Segundo dados fornecidos pela Comissão de Informação e prestação de contas sobre a saúde materna e infantil das Nações Unidas, ONU, ocorrem, apenas na região da América Latina, cerca de 4,2 milhões de abortos por ano, sendo 92% destes feitos em condições de risco.

Somente no Brasil, mais de 215 mil mulheres são internadas por ano em hospitais devido à complicações decorrentes de tentativas do aborto. Também nos países da América Latina e Caribe, 21% das mortes relacionadas à gravidez, ao parto e pós-parto têm como causa as complicações do aborto feitos de forma insegura segundo a Organização Mundial da Saúde.

A recomendação geral número 19, que é de 1992, do Comitê Cedow, que eu integro, nos seus parágrafos 1 e 2 afirma que a violência é uma discriminação e que toda forma de discriminação constitui uma forma de violência contra as mulheres.

Ademais, a declaração sobre a eliminação da violência contra a mulher da Assembleia Geral das Nações Unidas, no número tal, tal, tal, (?) 93, define a violência contra a mulher como todo ato de violência baseado no perpecimento ao sexo feminino que tem ou possa ter como resultado o sofrimento físico, sexual ou psicológico para a mulher, assim como a ameaça de tais atos, a coerção, a privação arbitrária de liberdade produzidos na vida pública ou privada.

E na mesma linha, amigas e amigos, estabelece a Convenção de Belém do Pará, já que tão bem trazida por Tracy, de 1994, e a Convenção de Istambul, bem mais recente, de 2011, que é a convenção sobre violência da Europa, da comunidade europeia. Nesse sentido, não há dúvidas de  que a criminalização do aborto deve ser considerada uma forma de violência contra as mulheres perpetrada pelo Estado, uma vez que resulta em danos físicos e psicológicos e em sofrimento, representando, inclusive, risco à sua vida.

Já estou indo pra parte final. Resta a indagação: por que se insiste na criminalização do aborto? Qual o sentido de uma lei que não é obedecida e não possui qualquer eficácia? Por que, afinal, apesar de crime, o aborto continua sendo uma prática sistemática? É um absurdo, é um nonsense, eu diria, é um disparate! Há algum resultado positivo decorrente dessa descriminalização do aborto , dessa criminalização, desculpem?

Se referida norma, não impede que o aborto ocorra, então não possui o mínimo de eficácia, mas apenas uma eficácia distorcida, perversa. Não impede que ocorra, mas impede que ocorra de maneira segura, gerando efeitos extremamente danosos à sua das mulheres, inclusive sua morte.

Ademais, em termos morais, o que, amigas e amigos, pode justificar uma maternidade forçada por parte do Estado? Eu queria que todo mundo parasse pra pensar e a gente procurasse encontrar uma estratégia de fazer essa pergunta pras nossas autoridades, os nossos representantes. Por que, mas por que, o que é que justifica o Estado brasileiro entender que pode exigir que uma mulher vá até o fim, nove meses de gestação, numa maternidade forçada? Qual é o sentido?

A maternidade forçada, aquela que ocorre quando se impede que a mulher grávida interrompa a gravidez não desejada, não possui a bela natureza da maternidade em si, cantada e decantada, como vocês sabem, em versos e poemas… em que a mulher – aí eu também concordo, é uma beleza, eu já, já dei à lua a 4 – em que a mulher decide de forma plenamente autônoma se e porquê deseja ter um filho.

Se é porque mulheres que tiveram filhos e estão felizes, obrigado, não têm condição de captar a situação das outras, é porque isso é muito triste. E essas situações, essas questões precisam ser colocadas assim, no diretão.

Vamos terminando. Vamos então… eu agora já vou… eu realmente já estou na penúltima página, mas, então, vou pular e vou pra página… O que é, então, como é que eu vou terminar?… Eu vou terminar com esse pedacinho daqui: é importante abordar a questão da violência contra as mulheres não apenas levando em conta a escancarada e óbvia violência física, mas, principalmente, as formas mais invisibilizadas e sutis de violência e, inclusive, aquelas que não estão consideradas no rol da violência contra a mulher.

O que eu proponho é que essa perspectiva ampla da cultura da violência contra as mulheres, incluindo… inclua a temática da sexualidade e reprodução, seja contemplada no documento Diga Não à Cultura da Violência Contra as Mulheres a ser aprovado ao final desse evento enquanto um pacto de não tolerância à cultura de violência contra as mulheres. Obrigada!

JACQUELINE

Sílvia, muito obrigada! E eu acho que você trouxe alguns pontos fundamentais do debate, fundamentais pra nossa reflexão que a gente pode retomar depois. A questão dessa separação entre o que se entende pela agenda da violência e dos direitos sexuais e reprodutivos e quais as implicações disso pra nossa própria ação política no feminismo.

Eu passo, então, a palavra, um pouco pra terminar, pra Leila Linhares Barsted. Leila também tem uma história de vida ligada ao feminismo e a Leila representa o brasil na comissão de acompanhamento da Comissão de Belém do Pará, que tem um nome difícil de pronunciar…(?), Mesek. A Leila nos representa no Mesek. Leila, por favor!

LEILA LINHARES

Bom, eu acho que é pegar carona, né, a vantagem de ficar pro fim é que a gente pega carona nas demais companheiras. Mas eu queria parabenizar, em nome da Jajá, todas as mulheres e homens, que certamente participaram da organização desse seminário. E eu acho que o produto dele vai dar um material muito importante pra reflexão.

Certamente que vocês estão gravando, certamente vocês vão fazer uma publicação. Enfim, a gente sabe que isso vai continuar e não se encerra hoje. Eu vou, como eu disse, pegando carona, eu vou pegar alguns pontos. Eu acho que a Tracy trouxe uma questão muito importante, que é a questão da desumanização. E pensando, né, nas características ou nas causas da violência contra a mulher, especificamente no nosso país…

Cada país deve ter seus contextos, mas eu vou estar pensando no contexto brasileiro, nós não podemos desconsiderar, né, que nós temos uma história, uma história de desumanização, uma história de escravização dos indígenas, uma história de sequestro e escravidão de povos africanos…

Ou seja, seres humanos transformados em objeto de compra, em objeto de troca e em relação aos quais, os seus donos poderiam matá-los, surrá-los ou fazer o que bem quiser, inclusive praticando violência sexual contra as mulheres indígenas e as mulheres africanas sequestradas.

E nesse sentido, esse passado de violência da sociedade brasileira, ele se atualiza. Nós vemos a violência da polícia, nós vemos a violência dos grupos criminosos e, o que é mais terrível, a gente se acostuma com essa violência, ela acaba fazendo parte do cenário. E é destro desse contexto que a gente tem que também entender a violência contra a mulher.

Ela tem essa história também lá na desumanização, né, que deu início à nossa construção como país. 515 anos depois, nós continuamos vemos as mulheres indígenas sendo absolutamente desconsideradas no conjunto da população feminina do país; as mulheres negras ainda representando as taxas mais baixas de acesso ao trabalho, de acesso à renda, de acesso à educação.

Então, nós percebemos que esse, essa desumanização claro que ela se sofisticou, né, então, nós não dizemos mais que seres humanos são objetos, mas nós continuamos a perceber, na nossa sociedade, como grupos humanos dentro da nossa sociedade – e aí são as mulheres, as mulheres na sua diversidade, né, nos impactos maiores ou menores que cada grupo dentro dessa grande população feminina do brasil sofre – nós continuamos vendo as mulheres sofrendo aquelas discriminações que desrespeitam todas as normas que estão contidas na Cidor, né…

… sofrendo as violências que desrespeitam todas as normas contidas na Convenção de Belém do Pará. E, curiosamente, nos dando conta que a Cidor e a Belém do Pará são convenções que foram recepcionadas pela nossa legislação interna. Então, a nossa Constituição diz lá, né, olha, essas convenções também são direito interno. E, nesse sentido, esse direito interno deveria estar sendo cumprido.

As discriminações continuam e a gente percebe também a persistência da lei privada, da lei privada sobre a lei pública. Essa lei privada que, no passado, se exprimia nas relações entre casa grande e senzala, em que o senhor não apenas ele era dono dos seus escravos, mas também ele era o dono de todos os membros da sua família mesmo não sendo escravos.

Essa lei privada é que tem justificado, né, justificou a permanência no nosso país, durante muito tempo, da famigerada tese da legítima defesa da honra, da absolvição de homens que matavam suas mulheres porque esse era um direito. Direito esse que realmente já existiu escrito no nosso país e que vigorou entre nós até quase meados do século XIX, né, o direito do homem matar a mulher por encontra-la em adultério, seja um adultério real ou um adultério imaginado por esse homem.

E essa violência, tanto no conjunto geral da sociedade como especificamente em relação às mulheres, ela se naturalizou, né, ela de alguma maneira faz parte da paisagem. E é claro que foram os movimentos de mulheres e os movimentos de mulheres negras e as marchas das margaridas que vieram trazer para as ruas um esforço de desnaturalização dessas formas de violência.

E eu fico feliz que a Aline tenha trazido pra cá o quanto nós avançamos em políticas públicas, e quanto o Estado também passa a ser um agente denunciador dessa violência, embora o Estado também seja um agente provocador dessa violência, quando a Sílvia traz a questão da criminalização do aborto ou quando nós nos deparamos, como o caso da Alina, quer dizer, mulheres que morrem quando estão pra dar à luz.

Ou seja, uma maternidade que é ao mesmo tempo enaltecida, né, na nossa sociedade e que faz com que as mulheres que praticam o aborto sejam consideradas umas mulheres desnaturadas e, ao mesmo tempo uma maternidade que ainda é muito descuidada que as taxas de mortalidade e morbidade materna são ainda muito altas, mesmo tendo decaído bastante na última década, continuam ainda muito alta, o que significa que muitos esforços têm que ser feitos, né.

A sensação que muitas vezes eu tenho é que nós temos, assim, uma espécie de esquizofrenia nacional. Nós temos um arcabouço legal, nós temos um arcabouço jurídico, nós temos uma democracia formal, nós temos uma república, né, de cento e tantos anos, né, ainda jovem, mas entrando na meia idade, né, e no entanto, nós temos também, convivendo com essas faces modernas, a permanência de padrões violentos e a negação dessa violência.

Seja a negação quando nós nos classificamos como uma democracia racial, seja a negação quando nós nos classificamos como uma democracia racial, seja uma negação quando nós nos classificamos como um país amoroso nas relações entre homens e mulheres, né, seja na negação da tortura, nós vimos a dificuldade da comissão da verdade, né, trazer à tona os dados das torturas no Brasil e, dentre as torturas, as torturas contra as mulheres. Em particular, a tortura sexual contra as mulheres e como a sociedade ainda fica meio amedrontada de tirar esses véus que encobrem todas essas formas de violência, de trazer a público.

Vamos tratar desse assunto, né, vamos dar nome aos bois e vamos realmente, Estado e sociedade, empreender, né, movimentos bastante fortes em relação a isso. Eu… a Ela trouxe uma questão que eu acho muito importante, que é do Sistema de Justiça. Eu também acredito que as leis podem, né, tal como Sílvia, ter um valor didático, ter um valor transformador, porque a lei traz o valor .

O valor do novo, o valor da democracia, o valor da igualdade, o valor do respeito, mas a sensação que eu tenho é que os próprios operadores do sistema de justiça têm muita dificuldade de assumir esses valores que estão na lei. Em alguns momentos, eu tenho tido oportunidades de dar aulas para operadores do direito, sejam policiais, sejam defensores, promotores ou, nos últimos tempos, juízes.

E quando eu pergunto: quem já leu a convenção pra eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres? Quem já leu a Convenção de Belém do Pará? A última turma que eu dei aula tinha 43 juízes e nenhum tinha lido, nenhum tinha lido.

Ou seja, o fato de que a constituição brasileira incorpora… a constituição brasileira está inserida num sistema internacional dos Direitos Humanos, não faz com que esses operadores do Sistema de Justiça se sintam obrigados a conhecer, não apenas as convenções, mas a conhecer toda uma doutrina internacional de proteção aos Direitos Humanos…

… em especial aos Direitos Humanos das mulheres, de conhecer as resoluções, as recomendações dos comitês… da OEA, do Comitê da Convenção do Pará ou do Comitê Cidor, né. Todas essas recomendações são recebidas pelo Estado brasileiro.

De 4 em 4 anos, o Estado brasileiro apresenta um relatório dizendo o que foi feito, o que precisa ser feito, mas o sentimento que eu tenho é que isso fica numa esfera do Poder Executivo, basicamente da secretaria especial de política pras mulheres que, mesmo fazendo um esforço, né, entre… com outras instituições do Governo e do Estado, nós sabemos que o desconhecimento, né, dos nossos operadores do direito, dos nossos legisladores, enfim, dos nosso gestores de políticas públicas sobre esses compromissos é zero.

O que que isso aponta? Isso aponta para um desrespeito, né, à cultura dos Direitos Humanos, para um desrespeito à cultura dos Direitos Humanos das mulheres. E aí eu acho que coloca-se, né, uma… uma, uma questão, né, ou várias questões, né, se colocam a partir daí, né. Em primeiro lugar, avaliar, né, qual tem sido o impacto desses esforços.

A Tracy trouxe também a questão do monitoramento, né, não basta que a s políticas públicas estejam aí. Há que se fazer, em todos os campos do legislativo, do executivo, do judiciário, né, avaliações contínuas, monitoramento contínuo e avaliações de processo e de resultado para ver onde é que nós chegamos.

Nós podemos dizer: tudo bem, os índices de violência aumentaram porque nós também estamos aumentando o número de serviços existentes, mas nós sabemos que não é só isso, nós sabemos que a violência continua endêmica na sociedade brasileira. E particularmente endêmica no que diz respeito à violência contra as mulheres e, particularmente ainda, aos assassinatos de mulheres, né.

E voltando ainda a palavras que a Tracy trouxe pra nós, né, eu acho que também tem… nós deveríamos fazer uma reflexão bem mais profundo sobre a questão da solidariedade. O que a gente percebe, muitas vezes, é que são apenas as mulheres, os movimentos de mulheres, os movimentos feministas, que continuam denunciando, que continuam lutando, apontando, né, esses índices de violência.

Nós não vemos, necessariamente, outros movimentos sociais se engajarem na nossa luta, mesmo aqueles movimentos, que me perdoem, que me desculpem, que estão no campo dos Direitos Humanos, né. Há uma divisão, aqui é o cantinho das mulheres, as mulheres lutam aqui.

Embora nós, mulheres, lutemos também por todas as outras causas, pelas causas… da luta contra a homofobia, da luta… da luta contra o racismo, da luta contra a violência… das pessoas com deficiência, da luta da violência contra as pessoas idosas, pelo direito das crianças, ou seja, nós, mulheres, temos talvez esse sentimento de solidariedade mais amplo.

E o sentimento que eu tenho particularmente e a minha queixa que eu faço, não mais ao Estado, mas a nós mesmos dos movimentos sociais, é que não necessariamente a luta pelo enfrentamento da violência contra as mulheres encontra solidariedade nos demais movimentos sociais.

Eu acho que isso é um ponto de reflexão e de cobrança pros nosso companheiros de outros movimentos.

JACQUELINE

Muito obrigada, Leila, você trouxe pontos importantíssimos. A Jajá me disse que a Tracy tem que pegar um avião e sair. Então, nós vamos mudar um pouquinho a ordem. Eu vou passar a palavra pra ela, se ela quer dizer alguma coisa antes de sair e depois nós seguimos aqui com nossa discussão. Jajá? Tracy, would you like to…?

TRACY (SEM AÚDIO)

Bem, eu quero agradecer a todos os membros desse painel. }eu sinto muito por não ter tido a oportunidade de estar aqui com vocês. Eu conheço muitas de vocês pela reputação, encontrei algumas… de vez em quando. Eu quero dizer que é um enorme privilégio ter vindo aqui e eu sinto muito por não poder completar dessa conversa até o final com vocês.

Quero dizer que há duas coisas que me marcaram enquanto eu ouvia algumas das conversas. Que é preciso completar a agenda da transformação da administração da justiça e o quanto é importante manter isso na frente das nossas discussões. Focar em como mudar e acabar com essa cultura de violência.

Precisamos lembrar que os policiais, os juízes e a própria estrutura do Estado, como eu vi a doutora Pimentel falar eloquentemente, há uma prevalência da violência. Essa instituição da violência deve receber grande atenção.

A segunda coisa… é o seguinte; quando eu vejo cada vez mais que há a ideia de que nós podemos viver livres da violência, mas não livres de verdade, nós podemos desenvolver uma pauta que… onde as mulheres não sejam atacadas, não apanhem, não sofram e sejam iguais de verdade.

No meu trabalho como relatora, eu foco muito no contexto dos direitos reprodutivos da mulher. Isso faz um sentido muito forte. As mulheres não têm autonomia total como seres humanos nessa luta e nessa discussão sobre seus direitos sexuais e reprodutivos, inclusive o acesso ao aborto e também a informação, a contracepção.

Elas têm direito de saber mais sobre o próprio corpo, sobre a saúde, sobre os direitos. Essa é uma questão muito importante para nós na Comissão Interamericana, na última declaração, em março, no Dia Internacional das Mulheres, nós demos atenção especial às informações consistentes recebidas pela comissão sobre essas questões.

E eu quero realmente homenagear esse trabalho e foi muito interessante dar ênfase a esses indicadores e aos direitos de reprodutivos. Eu espero que a Comissão Interamericana e o Tribunal Interamericano tenham uma oportunidade de se pronunciar em relação a algumas dessas questões também.

Quero, então, agradecer ao painel, aos organizadores e peço desculpas e sinto muito por não poder passar o resto da tarde aqui com vocês.

JACQUELINE

Então, a gente prossegue com a nossa, o nosso painel e eu queria fazer algumas pequenas colocações e uma delas é que algumas questões muito importantes, muito importantes pra nossa agenda, a nossa agenda enquanto ativistas, a nossa agenda enquanto militantes foram colocadas aqui, né.

Eu acho que se nós tomarmos a questão da violência, ficou claríssimo que a percepção social da violência, né, moldada pela cultura, ela é histórica e ela é datada. E porque ela é histórica e ela é datada é que ela pode ser transformada, né.

Agora, que nesse processo de transformação, a agenda do próprio movimento feminista comporta determinadas temáticas que são muito diferentes; muito diferentes em termos das alianças que são capazes de tecer para que possam, então, se expressar em termos de mudanças de leis, de políticas etc.

É uma questão com a qual eu venho trabalhando, Sílvia, e venho pensando é essa diferença do lugar ocupado do que se entende por violência contra a mulher e da questão dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos e, mas particularmente da questão do aborto, inclusive no sistema ONU.

Analisando um pouco o trabalho da Comissão de Direitos Humanos em Genebra, você vê… eu não tenho o número aqui, mas o número de trabalhos e de menções à questão da violência contra a mulher sem incluir o aborto supera em muito trabalhos relativos ao aborto especificamente.

E no próprio Cidor… no próprio Cidor de uma certa forma, na medida em que o aborto não está claramente colocado no âmbito dos Direitos Humanos e, sim, da discriminação e do direito à saúde.

Então, eu acho que até com a sua presença, que foi fundamental, há um trabalho a fazer ainda muito grande no próprio sistema ONU, há um trabalho a fazer muito grande no nosso país, né, nas instâncias de políticas de mulheres do Brasil, no nosso sistema judiciário para que a questão dos direitos reprodutivos e, nela, a questão do aborto seja colocada como uma violação de Direitos Humanos.

Então, eu queria agradecer muito você, Sílvia, por ter trazido esse ponto. E também a todas as painelistas que nos ajudaram um pouco a perceber a complexidade do debate sobre a questão da violência nas suas multidimensões, que trazem, não é, agendas políticas diversas e que comportam, portanto, estabelecimento de alianças e de plataformas de ação bastante complexas.

A Jajá me disse que nós não vamos ter tempo pra o diálogo entre nós, mas que vocês vão responder já diretamente às perguntas que estão sendo sintetizadas pela Marília… Marília, isso. E assim, nós vamos ter um pouco mais de tempo de debate com a plateia.

MARÍLIA

Eu queria agradecer uma vez mais, então, todas as perguntas que chegaram até nós. Mais uma vez, eu informo que eu estou tentando agrupar pra não, não, não gerar tantas perguntas individualizadas. Então, vamos começar.

Foi perguntado muito sobre a questão do feminicídio e como a tipificação do feminicídio pode realmente estar contribuindo pra esse combate da cultura da violência contra as mulheres. Quer dizer, é uma especificação que… tem o seu papel e no Brasil acabou de ser aprovado – em outros estados americanos já existe – então, como, como a evolução desse feminicídio, dessa questão do feminicídio pode ser encarada?

JACQUELINE

Podemos parar aí e passar essa pergunta? Eu queria passar pra Ela Wiecko. Você responderia a esta pergunta, Ela?

ELA WIECKO

Respondo… E essa é uma questão que ela é objeto de questionamento, né, quer dizer, dentro do campo do Direito existe uma crítica muito grande de advogados, juristas, enfim, com relação a essa tipificação. Eu acredito e essa foi a razão pra, pra pôr um destaque na lei como homicídio qualificado e a ideia é não aumentar a, a intervenção penal.

Quer dizer, o homicídio qualificado, ele deste 1940 é crime pela constituição no direito à vida, então não há nenhuma novidade, não há um aumento da intervenção penal. O que há é um destaque, uma nomeação de uma, de um fenômeno que é muito grave, que é a morte de mulheres pelo fato de serem mulheres.

Agora, eu não sei, pela forma como ficou a lei, se nós vamos conseguir chegar a esse objetivo de, nas estatísticas, de nós termos esse destaque. Isso depende muito da investigação ser direcionada nesse sentido e há um esforço, né, não posso falar muito sobre isso, mas de fixar diretrizes de investigação junto ao Ministério Público, à polícia, principalmente o Instituto Médico Legal. Acho que é isso, né, não posso falar muito.

JACQUELINE

Obrigada, Ela! Eu pergunto à Leila e à Sílvia se elas querem complementar rapidamente.

LEILA

Quer dizer, na realidade, o Brasil chegou meio atrasado, né, na elaboração de uma lei sobre o feminicídio. Grande parte dos países aqui da nossa região latino-americana e do Caribe já tem leis sobre o feminicídio, principalmente os países do Caribe, né, que foram os primeiros a elaborar a legislação nesse respeito.

E o comitê de monitoramento da convenção de Belém do Pará, nas suas reuniões, desde 2005, vem apontando a necessidade dos países membros terem leis que punam, né, essa forma específica de homicídio, que é um homicídio praticado contra as mulheres por razões de gênero.

A lei brasileira saiu com uma modificação… pelo fato de ser mulher, uma coisa assim, o que, na realidade, limita um pouco situações, como por exemplo, a situação de… de… o grupo LGBT por exemplo, né, em que na realidade, quando você vai usar a palavra gênero, você consegue incluir mais do que mulheres no sentido do seu corpo biológico.

A lei brasileira, ela, na realidade, ela é mais restrita do que a lei de outros países, né, outros países da nossa região têm leis mais especificadas, né, definindo o feminicídio, né, ampliando o feminicídio para além das relações domésticas e familiares.

E a importância da criação desse tipo, né, não é apenas apontar que há uma violência específica contra as mulheres e os laudos de peritos médicos mostram que, muitas vezes, assassinatos de mulheres têm características bem distintas de assassinatos de homens. São assassinatos com facadas, com torturas, com… precedidos de violência sexual e tem toda uma caracterização.

E nesse sentido a lei vai necessitar… a ONU Mulheres está trabalhando nisso, eu creio, aqui está a Vânia, está a Nadine, né, num protocolo de orientação dos profissionais da área de segurança e da justiça pra promoverem as investigações.

Se houver esforço, é possível sim, Ela, a gente ter uma, uma geração de estatísticas de feminicídio, né. No Rio de Janeiro, por exemplo, a gente consegue ter, desde de 2005, uma série histórica do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro sobre todos os crimes que ocorreram no estado com a separação de crimes praticados contra homens e contra mulheres e os autores desses crimes.

Então, a gente tem vários crimes que clara… fica definido que o autor do crime é o marido, companheiro, pai, vizinho, enfim, ou então desconhecido, né. E claro que a figura do feminicídio, ela extrapola e muito também a questão da violência doméstica e familiar, porque, muitas vezes, mulheres são assassinadas, né, por questões de gênero, por grupos criminosos, narcotraficantes.

E, nesse sentido, não é simplesmente uma morte, um homicídio, mas é um homicídio praticado pelo fato daquela pessoa ser uma mulher, né. Sílvia?

JACQUELINE

A Sílvia disse que abriu mão e que, depois, ela entra num outro ponto e faz um alcance. Por favor, Marília!

MARÍLIA

Voltando um pouco pra questão não só da lei Maria da Penha, mas de uma… da maneira do judiciário estar… poder encarar a questão da violência contra as mulheres, é a questão das sentenças e do aspecto punitivo que está se buscando mais na aplicação da lei e não exatamente naqueles outros fatores não essencialmente punitivos, de encarceramento e tal.

Então, a dúvida é, como que se pode trabalhar no judiciário pra mudar essa expectativa com relação à aplicação da lei?

JACQUELINE

Então, a Sílvia gostaria de comentar? Ela… Ela, Sílvia… você também quer falar?… Então, nós temos vários comentários: Ela, Aline, Sílvia… Então, pronto, 3 comentários.

ELA

Pois não, você poderia repetir? A expectativa de quem?

MARÍLIA

Com relação à aplicação da Lei Maria da Penha, quando se fala do homem agressor, quer dizer, e também de, da prevenção da situação de violência e de desproteção… todos os mecanismos antes de se chegar à questão de fato, às vias de fato. Quer dizer, e quando se chega lá, o aspecto punitivo é o que mais acaba passando, então assim, como…

ELA

Ah, entendi, isso tem a ver até com aquilo que eu falei que no modelo da lei, o começo, a entrada é pela delegacia de polícia e… na discussão que foi feita pelo consórcio de entidades feministas, a ideia era que essa entrada, ela não fosse a entrada pela visão penal, né, seria trazer o problema e, num centro de referência multidisciplinar e, se o caso, ele exigisse, pela sua natureza, uma resposta penal, seria direcionado.

Então, o nosso modelo brasileiro, ele realmente, ele… ele é uma camisa de força, porque na medida em que a mulher, ela chega e ela relata um tipo de… lesão, violência psicológica ou qualquer outra, obrigatoriamente… assim, alguns casos não, mas na maior parte já se enquadra como crime e tem que tomar as medidas do ponto de vista penal.

E vai pro sistema de justiça e o sistema de justiça não sabe como resolver, né, ele, ele quer dar uma sentença que é de absolvição, que é uma medida protetiva e pronto, acabou, ele não… e esses são situações, são conflitos que exigem uma intervenção do Estado, uma ajuda, um apoio do Estado, um apoio de ONG, que é muito demorado, então realmente…

E aí também tem um ponto, que quando a lei saiu, foi dado muito esse enfoque de que agora é crime, agora o homem vai ser preso e quando a ideia, talvez… não era tanto de aumentar a repressão. Sim, era de… quebrar com aquela prática da, dos juizados especiais em que o homem dava risada. Ele batia na mulher, chegava pro juiz e dizia: tá bom, eu venho na próxima semana pra audiência, voltava pra casa e voltava a bater na mulher.

Então, a Lei Maria da Penha procurou resolver algumas dessas distorções, mas… a grande, né, quer dizer, a grande… vamos dizer, ideia da Lei Maria da Penha, que continua sendo um desafio, é todo um trabalho de prevenção, mas que a gente deve reconhecer que muita coisa está sendo feita.

JACQUELINE

Leila, você quer se despedir, parece que está com o avião…?

LEILA

Enfim, o meu avião é às 7 horas, são 5 e… 5 e 40, né, então eu tenho que sair correndo, está bem? Então, eu agradeço e mais uma vez é muito bom estar com vocês todas e eu acho que o seminário valeu a pena.

JACQUELINE

Obrigada por ter vindo! (em cima da fala da Leila). Por favor, Aline.

ALINE

Não, então, só complementar, fazer… com o que a Ela já tinha falado, que é o desafio da integração, né, A própria Lei Maria da Penha, ela tem essa perspectiva da atenção integral, ela não tem o viés estritamente penal, mas essa… a própria fragmentação e a forma como o judiciário hoje se organiza tem tornado muito difícil essa aplicação integral.

Então, uma das questões que é muito discutida no âmbito judiciário é a própria questão da competência híbrida, né, a competência civil e penal pra todas as demandas das mulheres em situação de violência. Existe uma enorme dificuldade de implementar isso na prática e um questionamento muito grande a respeito disso.

Isso é… é o algo que, infelizmente, acho que a gente tem que avançar e escutar mais mulheres, porque muitas vezes, elas querem… o que elas buscam no Estado é interromper, que a situação de violência cesse. Não necessariamente a punição, pela própria complexidade que é o ciclo da violência em que as mulheres estão envolvidas.

Mas as medidas protetivas, elas… não está escrito na lei, por exemplo, que ela depende de um BO, de um… da existência de um inquérito. E até o… houve uma decisão do… STJ o ano passado nesse sentido, dizendo que a medida protetiva, ela tem um caráter de prevenção e que, portanto, ela poderia ser aplicada independente de um BO.

São… disputas acho que de jurisprudências de aplicação da lei, que estão aí colocadas, que realmente precisam avançar e mexer mais nas estruturas do judiciário.

JACQUELINE

Sílvia também quer fazer uma consideração sobre esta pergunta.

SÍLVIA

Marília, eu vou querer responder essa pergunta não prosseguindo na mesma linha que as duas já o fizeram tão bem. E nem quero ser repetitiva e nem poderia falar tão bem quanto vocês nesse ponto específico. O que eu quero chamar atenção é que nós temos dois protocolos importantes, que nós devemos fazer o uso, que ainda não temos feito no Brasil.

Nós temos um protocolo no México e já foi mencionado aqui. O protocolo se chama Cómo juzgar en la perspectiva de género, como julgar na perspectiva de gênero. Foi mencionado aqui, eu tive o privilégio que estar presente ao lado do presidente do Supremo Tribunal deles lá quando foi lançado. É algo, assim, extraordinário.

E uma coisa que eu aprendi na vida – e olha que são muitos anos que eu tenho hoje, né – é que a gente não deve sempre começar (?), sou do tempo que a gente usava expressões latinas, né, começar sempre do comecinho. Se nós já temos gente, como as mexicanas, como amigas que trabalham, inclusive, numa assessoria no tribunal, amigas da área do direito, juristas, que prepararam um protocolo exemplar: como julgar na perspectiva de gênero, a minha proposta é que daqui saia alguma coisa bem concreta na linha de: vamos, sim, inspirando-nos nesse trabalho fazer algo com o sistema de justiça já tão trabalhado por vocês.

E o outro protocolo que eu quero mencionar é um protocolo que quem esteve à frente foi o alto comissionado dos Direitos Humanos, das Nações Unidas, não é, mas trabalhando aqui na América Latina e Caribe muito especialmente, não é, com ONU Mulheres e diversas organizações, inclusive movimentos não governamentais, que também realizou um protocolo sobre o tema do feminicídio, que é notável.

E agora há pouco, estávamos conversando, Ela muito bem falando a respeito da lei, suas preocupações e eu quero dizer, já que, inclusive aqui, na minha leitura do meu trabalhinho aqui que eu preparei pra vocês eu já disse a eficácia das leis, né, a ineficácia das leis, né.

Nós caminhamos muito em normas, agora caminhamos… temos essa do feminicídio, que teria algumas preocupações, mas deixa lá. O caso é que está lá. Vamos buscar aplicar, mas sem preparar, sem preparar os nossos operadores de direito, Jacqueline, já sabemos, nada feito!

JACQUELINE

Muito obrigada, eu… já fui avisada, Marília, de que nós não estamos mais tomando perguntas, porque nós vamos encerrar agora essa mesa pra, efetivamente, depois encerrarmos esse encontro. Eu quero agradecer a cada uma de vocês pela excelente participação, quero agradecer ao Instituto Patrícia Galvão na pessoa da Jacira por esse belíssimo momento de encontro e terminar com as palavras do poeta, que diz: “Caminante no hay caminho, se hace camino al andar” e nós estamos aqui certamente fazendo um caminho de vencer desafios. Muito obrigada!