20/07/2015

Tortura: um mal que persiste até os dias de hoje

Compartilhar:

Levantamento inédito feito pelo jornal O Globo revela que,entre 2005 e 2015, foram instaurados 699 processos por tortura no Rio

Por Antônio Werneck, Barbara Marcolini e Vera Araújo, de O Globo

Ao passar por um posto da PM na Rocinha, Júlio (nome fictício), de 18 anos, aperta o passo e, com a cabeça, aponta a unidade. Foi ali, numa tarde de junho de 2013, que o jovem diz ter sido submetido a uma sessão de espancamento e humilhação por quase seis horas. Júlio conta que, até hoje, sente o estômago arder devido à cera quente empurrada goela abaixo, depois de receber choques elétricos e tapas na cara. No final, acrescenta, policiais ainda enfiaram sua cabeça num vaso sanitário cheio de fezes. Nas outras duas vezes em que foi detido por suspeita de envolvimento com traficantes, os castigos, afirma, se repetiram. Ele garante que, na mais recente, há cerca de um ano, policiais civis marcaram a ferro e fogo as iniciais de uma facção criminosa em seu braço esquerdo.

Dezoito anos após a promulgação da lei 9.455/97, que pune o crime de tortura, casos como o de Júlio ainda são frequentes. Nem todos, porém, chegam à Justiça, porque muitas vítimas têm medo de fazer denúncias. E, quando os casos vão aos tribunais, muitos são julgados como lesão corporal ou maus-tratos, que têm penas menores. Levantamento inédito, feito pelo jornal O Globo nos arquivos do Tribunal de Justiça do Rio, revela que, entre 2005 e 2015, foram instaurados 699 processos por tortura, em que são acusados tanto agentes do Estado como milicianos, traficantes e cidadãos comuns. Desses, 219 foram julgados até agora, com 197 (90%) condenações em primeira instância.

Outra pesquisa, coordenada pela ONG Conectas e pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP, mostra que o Rio foi, no país, o estado com maior número de decisões em segunda instância envolvendo casos de tortura, entre 2005 e 2010. Dos 75 casos levantados, apenas 22 envolviam agentes públicos. Do total, dez foram absolvidos.

“Em direito, existe o que chamamos de cifra oculta, que é a diferença entre os casos que efetivamente ocorrem e os que existem no Poder Judiciário”, explica o presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB-RJ, Breno Melaragno.

“No crime de tortura, existe uma dificuldade prática de se apurar a ocorrência. No caso de agentes públicos, eles estão protegidos pela própria autoridade que o cargo lhes confere. A tortura pelo Estado ainda é grande, principalmente em locais com situação socioeconômica menos favorecida”.

Hediondo, inafiançável e sem direito a anistia, o crime é punido com pena de até 21 anos e quatro meses de prisão. Depois do que sofreu, Júlio deixou o morro onde cresceu. Com três passagens pela 2ª Vara da Infância e da Juventude por associação ao tráfico, ele jura que “sempre é embuchado”, ou seja, acusado injustamente pela polícia. E se lembra, com detalhes, de cada vez em que foi detido.

“Perguntaram de onde eu era e respondi: ‘Rocinha'”, diz, sobre quando foi levado para uma delegacia da Zona Sul. “Aí disseram que eu era de uma facção. Pegaram um ferro, esquentaram com o isqueiro e me marcaram. Na outra vez, foram 12 PMs. Chamavam a sala do posto de quartinho da saudade. Tinha de tudo: chave de fenda, alicate, pedaço de pau e fio solto, que dava choque”.

Na mesma Rocinha onde, há dois anos, o ajudante de pedreiro Amarildo de Souza desapareceu após uma sessão de tortura, Rodrigo (nome também fictício), de 18 anos, diz que não consegue esquecer o que passou sob o poder de PMs.

“Cheguei em casa, e eles já estavam na sala, sentados num sofá, com a minha esposa ao lado. Eles me levaram para fora e me colocaram contra a parede. Esfregaram a mão com uma luva de couro no meu peito, me deixando sem ar”, conta Rodrigo, que ficou com uma marca no peito.

O menor F. foi torturado por internos do Degase em 2013. Acusado de ter delatado outro menor, ele foi marcado no peito e nas costas com gilete (Guito Moreto/Agência O Globo)
O menor F. foi torturado por internos do Degase em 2013. Acusado de ter delatado outro menor, ele foi marcado no peito e nas costas com gilete (Guito Moreto/Agência O Globo)

Medo inibe as denúncias
Uma pesquisa feita pela Anistia Internacional em 2014 mostrou que 80% dos brasileiros temem ser torturados em caso de prisão. O país ficou em primeiro lugar no vergonhoso ranking, à frente de México, Turquia e Paquistão.

“Muitas vezes, a vítima teme a retaliação. As pessoas têm medo de denunciar, principalmente se a tortura é causada por um agente público”, afirma o assessor de Direitos Humanos da Anistia, Alexandre Ciconello. A tortura também está marcada na pele de Marcos (nome fictício), de 19 anos. Em 2013, enquanto cumpria sua segunda internação numa unidade do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), ele foi acusado por colegas de alojamento de ter delatado um interno. Marcos conta que foi espancado do meio-dia às 16h. Nenhum agente teria percebido o que estava acontecendo.

“Foram sete ou oito jovens, e o resto ficava vigiando. Eles me deram soco, chinelada, choque, mergulharam minha cabeça na privada. Não gritei porque estavam me enforcando. Desmaiei quatro vezes”, diz ele, que teve as iniciais de uma facção criminosa e a palavra “X9” (informante) marcantes no peito e nas costas com uma lâmina de barbear.

Dois anos depois, Marcos move uma ação contra o estado em que pede uma cirurgia plástica para remover as cicatrizes. A integridade física de internos sob a tutela do poder pública é responsabilidade dos seus agentes. Aqueles que estavam de plantão no dia do espancamento de Marcos poderiam ter sido punidos por omissão, mas, na corregedoria do órgão, consta apenas uma sindicância para apurar dano ao patrimônio e lesão corporal contra os próprios funcionários. Seis adolescentes foram acusados pela tortura, mas absolvidos por falta de provas.

Também não faltam denúncias contra agentes do Degase. Em 2013, três internas entre 15 e 17 anos relataram a defensores públicos o castigo habitual no Educandário Santos Dumont, na Ilha do Governador: “a bailarina”. As jovens contaram que, algemadas a grades acima de suas cabeças, eram obrigadas a ficar nas pontas dos pés enquanto apanhavam. Uma delas foi levada à delegacia para registrar o caso, mas omitiu o detalhe cruel ao depor.

Segundo anotações da Defensoria Pública, as internas teriam batido nas grades do alojamento para pedir aos agentes que socorressem umas delas, que passava mal. Como estava de noite, os funcionários teriam se irritado com o barulho e decidiram puni-las. Uma das adolescentes relata ter ficado das 20h às 3h na posição da “bailarina” num cômodo escuro, infestado por baratas e lacraias.

Ele era menor quando foi torturado por policiais na Favela da Rocinha. O sufocaram com saco plástico, enfiaram sua cabeça em uma privada com fezes e urina, surraram e com um ferro aquecido com um isqueiro tatuaram em seu braço a sigla da facção dominante na favela (Daniel Marenco/Agência O Globo)
Ele era menor quando foi torturado por policiais na Favela da Rocinha. O sufocaram com saco plástico, enfiaram sua cabeça em uma privada com fezes e urina, surraram e com um ferro aquecido com um isqueiro tatuaram em seu braço a sigla da facção dominante na favela (Daniel Marenco/Agência O Globo)

Em Bangu 10, espancamentos seriam diários
As violações de direitos humanos em prisões e unidades do Degase são monitoradas desde 2011 pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. O órgão, ligado à Alerj, identificou indícios de tortura em quase todas as 50 visitas que fez em 2014. O caso mais crítico é o de Bangu 10, onde, segundo presos, há espancamentos diários.

“Pessoas privadas da liberdade estão em situação mais vulnerável. Elas falam muitas coisas, mas ninguém quer ir além. A tortura está institucionalizada e banalizada no sistema prisional”, afirma a coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado, Roberta Fraenkel.

Segundo a Secretaria de Administração Penitenciária (Seap), das 12 sindicâncias abertas para investigar tortura entre 2012 e 2014, só três estão em curso – as demais foram arquivadas. A Seap e as polícias Militar e Civil informaram que suas corregedorias investigam todos os casos de que tomam conhecimento. Nos últimos cinco anos, a PM abriu 15 procedimentos, envolvendo 91 policiais, inclusive os 25 que respondem pelo desaparecimento de Amarildo. Desde 2010, 18 PMs já foram expulsos por causo da prática de tortura. Já o Degase afirmou que qualquer denúncia é “prontamente apurada”, com abertura de sindicância pela corregedoria.

Compartilhar:

Pular para o conteúdo