25/08/2014

‘O Brasil tem duas tradições: o esquecimento e a impunidade’

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SEGUNDA-FEIRA, 25 DE AGOSTO DE 2014
O ESTADO DE S. PAULO – Caderno 2
DIRETO DA FONTE – SONIA RACY

Filho de Vladimir Herzog defende a revisão da Lei da Anistia. E diz que somente a educação ajudará o País a mexer em feridas como o racismo e a violência policial.

Ivo Herzog comemora os frutos dos cinco anos de trabalho à frente do Instituto Vladimir Herzog, completados em 2014. Filho do jornalista morto pela ditadura militar, Ivo deixou a iniciativa privada – trabalhou em grandes empresas, como Ambev, Carrefour e GM – para realizar um trabalho de preservação da memória do pai e promover iniciativas sob o lema “Direito à vida. Direito à justiça”. No escritório localizado em uma pequena casa em Pinheiros, o engenheiro naval recebeu a coluna para falar, entre outros assuntos, sobre o trabalho que desenvolve no Conselho da Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, as consequências das manifestações de junho do ano passado e os erros e acertos da Comissão da Verdade.

Para Herzog, a impunidade e o esquecimento são dois grandes problemas que decorrem da tradição brasileira. “Existem três grandes tragédias na nossa história que precisam ser reconciliadas. Uma está sendo agora, que é a ditadura, com a Comissão da Verdade. Mas há também a tragédia dos povos indígenas e a tragédia dos povos negros, da escravidão”, afirmou. “Crimes bárbaros foram cometidos naquela época, que nunca foram investigados.”
A seguir, os melhores momentos da entrevista.

São cinco anos de instituto. Qual o balanço que você faz do trabalho?

A ideia do Instituto Vladimir Herzog nasceu no final de 2008, depois da entrega do prêmio Vladimir Herzog.
Todo ano vinha uma demanda sobre a família, sobre todas as coisas que aconteceram, sobre o meu pai.

Espontânea?

Sim. Vinha da imprensa, de estudantes, pediam palestras, essas coisas. Então, a gente resolveu organizar esse material de memória, na forma de instituto. Passamos oito meses conversando muito, eu e minha mãe, com alguns amigos. No lugar de uma organização que olhasse para trás, queríamos que olhasse para a frente. Que, ao invés de cultuar a morte do meu pai, promovesse a vida dele.

Como foi esse processo?

A agenda se tornou muito interessante, inclusive para a família, que nos 30 anos anteriores era sempre demandada de alguma coisa relativa à morte do meu pai. Passamos a ser demandados por coisas relativas à vida dele. E aí vem essa questão na qual a gente insiste, de direito à vida e direito à justiça – que transcende até a questão dos direitos humanos. Começamos, sem ambições, a organizar o material da história do meu pai, colocar no site as fotos, a história real dele, porque existem várias versões.

Quando você se refere à questão da memória é porque acha que o Brasil tem um problema com a preservação?

É pior que isso. Cada povo tem as suas tradições e o Brasil tem duas: o esquecimento e a impunidade. Isso desde o descobrimento. Existem três grandes tragédias na nossa história queprecisam ser reconciliadas.

Uma está sendo agora, que é a ditadura, com a Comissão da Verdade. Mas você também tem a tragédia dos povos indígenas e a tragédia dos povos negros, da escravidão. Essas outras duas nunca foram reconciliadas, sempre foram colocadas no esquecimento, e as pessoas que se beneficiaram desses processos sempre foram perdoadas. Isso é a impunidade. Então, o que é que eu, o que é que você conhece sobre a história da escravidão no Brasil? A gente não sabe nada.

Como isso acontece?

Aprendemos que a escravidão acabou quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea. E não é verdade. Crimes bárbaros foram cometidos naquela época, crimes que nunca foram investigados. Claro que as pessoas não serão presas, porque já morreram,mas elas têm de ser investigadas, a questão tem que ser entendida. Talvez haja até apropriações indevidas de terras. Essas coisas todas têm de ser revistas.

E a questão indígena?

Nossas avenidas e estradas têm nomes de pessoas que foram consideradas heróis por massacrarem os índios.
Hoje se questiona o uso de nomes dos generais da ditadura, estão querendo mudar, o que é algo correto, mas vamos mais além, vamos voltar um pouco mais na nossa história.

Acha que isso é uma questão de tradição ou existe um interesse político também, para que se evite “mexer” nisso?

Não é por causa da política, porque a política vem depois. Ela é decorrente disso. Claro que há interesses, as pessoas não querem mexer em coisas das quais não se orgulham. Só que, enquanto você não mexe nessas feridas, elas também não fecham. A nossa polícia, por exemplo, é uma das mais desonestas do mundo. É uma ferida não fechada. Enquanto ela não se curar, você vai continuar vendo a polícia matando.

As pessoas ficam horrorizadas, e com razão, porque mais de 500 pessoas foram torturadas e mortas na ditadura. Mas, depois do fim da ditadura, mais de 10 mil foram mortas e torturadas pela polícia e não se fala nisso. Então, é preciso tocar nessas feridas. Costuma-se dizer que o Brasil é um país de pessoas muito cordiais, que não há problemas de choques.

Que choques?

Raciais, por exemplo. O Brasil é um dos países mais racistas do mundo. Dessas 10 mil pessoas, 70%, 80% são negros que estão sendo assassinados, na sua maioria jovens. Então, existe uma questão de segregação racial muito forte.

Como se resolve isso?

Com educação. Aí sim é uma questão política. Acho que não existe interesse político na educação de valores. Porque faz o cidadão exercer a cidadania e, se ele exerce a cidadania na sua plenitude, você vai fazer uma coisa que, no Brasil, não se faz há muito tempo, que é governar para os cidadãos. A democracia brasileira não governa mais para o cidadão, ela governa para os financiadores de campanha, para os grupos econômicos, com raras exceções.

Acha que, por isso, temos menos debate político a cada ano?

Sim. Imagina só o pessoal começar a sair na rua e fazer reivindicação. O modelo político que existe hoje não funciona, e o cidadão sabe disso. Por isso, a cada ano, você tem menos pessoas indo votar, a cada ano você tem menos debate político. A gente está vivendo as consequências da violência urbana, da piora do sistema de saúde e da educação.

Falando em violência urbana, você faz parte do Conselho da Ouvidoria da Polícia do Estado de SP. Como é esse trabalho?

A polícia, de maneira geral, é violência e morte – na minha visão, infelizmente. Pretendo dizer lá na ouvidoria que a polícia tem de ser uma extensão da comunidade. As pessoas deveriam conhecer aqueles que zelam pela sua comunidade.

Então, acho da mais alta importância a Ouvidoria da Polícia. Ela é o contraponto, o fiel da balança, é o que, em tese, vai equilibrar, quem vai nos representar quando houver o excesso do Estado.

Você tem alguma esperança de que essa questão policial vai melhorar no Brasil?

Não tem como piorar, né? Como é que vai piorar? Toda polícia é ruim? Não. É uma instituição importante, é uma corporação que merece respeito, mas, infelizmente, tem uma política errada. Acho que 90% da estratégia de ação da polícia em relação às manifestações do ano passado, por exemplo, além de errada foi criminosa. Existe uma estratégia do Estado querendo que a população se afaste desses movimentos sociais. E ele está conseguindo.

Fala-se que a violência policial é um resquício da ditadura.

É um resquício da história do Brasil. Mas por que voltou a aparecer agora? Porque, com as manifestações, pessoas da classe média começaram a ser presas.

Se você vir o perfil das pessoas que foram agredidas pela polícia, são de classe média, alunos da USP. Por isso houve essa repercussão. Não é a classe menos favorecida nem a classe mais favorecida que muda a sociedade. É a classe média, ela é que representa a grande força de mudança.

Você encabeçou um movimento, com o Romário, contra José Maria Marin, presidente da CBF.

Deu muita visibilidade, principalmente fora do País. Dei entrevistas para jornais de pelo menos dez países. Tivemos muito apoio: 55 mil assinaturas. A questão é que, na realidade, são duas coisas separadas: uma é o meu problema com o Marin e a morte do meu pai. Mas existe uma outra agenda, que é até maior do que isso: a política do futebol, que é uma das coisas mais terríveis que existem no Brasil. Eu fui entregar a petição na sede da CBF, com dia e hora marcados. Todos os representantes da entidade se ausentaram, não havia ninguém no prédio naquele dia.

Você chegou a defender que ele desse um depoimento à Comissão da Verdade?

Sim, para ele dar explicações. Mas existe uma pressão política monumental para que isso não aconteça.

Aliás, como você avalia o trabalho da comissão?

A maior importância da Comissão da Verdade foi trazer o tema para a sociedade. É impressionante como esse período se tornou tema em todas as escolas; centenas de comissões da verdade foram criadas – estaduais, municipais, de entidades de classe, universidades. Então, essa história está sendo contada, passou a ser mais trabalhada. Acho que esse é o grande mérito da comissão.

Mas não aconteceu tarde?

Sim, deveria ter sido instituída 20 anos antes. Mas acredito que ela acaba de trazer algo importante, o próximo passo, que é a revisão do parecer do Supremo Tribunal Federal sobre a Lei da Anistia. Porque é piada a Lei da Anistia que existe no Brasil.

Alguns integrantes da comissão são contra a revisão da Lei da Anistia. O que acha disso?

Acho que eles estão errados. Sofrem dessa tradição brasileira do esquecimento, de querer botar as coisas feias debaixo do tapete. A gente tem de viver com os nossos erros para aprendermos e melhorarmos. Não podemos tentar esquecê-los.

Acha que, nesse processo todo, a presidente Dilma teve um papel importante?

Ah, com certeza. Ela fez acontecer, mas foi a última gota desse processo. Tanto que o projeto da Comissão da Verdade nasceu no governo anterior, no governo do Lula, com o Paulo Vannuchi. Quando ela chegou, o processo estava pronto, mas ela conseguiu dar o passo final, que foi torná-lo lei, fazer ele acontecer. Então, é importante. Os acertos e os erros são importantes.

Voltando ao seu pai, existe algum documentário, filme de ficção, biografia autorizada ou não autorizada vindo por aí?

Um livro para o público juvenil, de ficção, será lançado este ano ou no começo do ano que vem. Tem também um projeto de filme. Além disso, há um estudante da Califórnia fazendo um documentário sobre meu pai. E, em julho, saiu uma história em quadrinhos na Itália.

Leia esta entrevista na integra

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