28/08/2015

Impunidade de agentes da ditadura estimula chacinas de hoje

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Por Mário Magalhães, para o UOL

A fotografia no final deste texto recebeu o Prêmio Esso em 1979. Ela documenta manifestação em São Paulo da campanha da anistia. Seu autor é Jorge Araújo, um dos mais brilhantes repórteres fotográficos brasileiros de todos os tempos, com quem tive a sorte, gracias a la vida, de tabelar por anos a fio. O Jorge é tão bom que continua no auge. O cara não tem, ao contrário de tantos craques, fase ruim.

Ninguém naquele protesto (a não ser os espiões infiltrados) advogava anistia para os agentes da ditadura que perseguiam, torturavam, matavam e sumiam com corpos de cidadãos, quase tudo à margem até da lei imposta pela ditadura parida em 1964. A anistia era para os milhares de brasileiros que haviam sido julgados, presos, cassados & caçados, estuprados, banidos, expulsos, seviciados, humilhados, violentados, punidos das mais diversas formas. A campanha democrática exigia “anistia ampla, geral e irrestrita”.

Hoje a Lei da Anistia faz 36 anos. Em 28 de agosto de 1979, o “Diário Oficial da União” publicou-a, assinada pelo general-de-exército João Baptista Figueiredo, presidente da República sem nem um voto popular, e ministros da ditadura. Não foi nem ampla, nem geral, nem irrestrita, mas permitiu aos oposicionistas deixarem as cadeias (alguns tiveram de esperar meses), à maioria dos exilados regressar, a (poucos) trabalhadores reassumirem seus trabalhos.

A ditadura convencionou que os funcionários públicos que haviam violado os direitos humanos também estariam protegidos pela Lei da Anistia. Estariam abrigados na expressão “crimes conexos”. Papo furado: não há uma só palavra na norma que se pronuncie, para ficar num exemplo, sobre tortura. Logo, torturador não foi anistiado. Tortura, estabelece a legislação internacional, é crime imprescritível.

A ditadura considerou que havia se auto-anistiado. Essa interpretação recebeu respaldo anos atrás do Supremo Tribunal Federal, que pode mudar, se provocado, tal decisão. O que a ditadura fez e se mantém foi consagrar a impunidade de criminosos que, com salários pagos pelos contribuintes, cometeram crimes de lesa-humanidade como a tortura.

Ao contrário do que se supõe, a exigência de punição para torturadores e outros bandidos a serviço do Estado não diz respeito a arqueólogos. A impunidade imposta no passado estimula a reedição da barbárie.

Policiais militares que torturavam (torturam?) moradores da Rocinha na dita Unidade de Polícia Pacificadora contavam com a impunidade para praticar tal crime. Num dia de 2013, torturaram o pedreiro Amarildo, mataram-no e desapareceram com seu cadáver. É provável que agora haja castigo. Mas os PMs faziam o que faziam supondo que, mire-se a tradição, ficariam impunes.

Idem com chacinas como a que resultou na morte de ao menos 19 pessoas neste mês em São Paulo. Se a cultura do não-vai-dar-em-nada inexistisse ou fosse menos arraigada, dificilmente policiais e comparsas perpetrariam um massacre como esse.

Na Alemanha, no Camboja, na Sérvia, na Argentina, em muitas nações os violadores dos direitos humanos no século XX ainda são punidos, mesmo por crimes que parecem distantes.

É pegadinha da história: só parecem distantes, porque, quando se eterniza a impunidade, vitamina-se hoje o impulso bárbaro que seria mais contido em caso de punição exemplar para servidores públicos criminosos.

Quanto mais impunidade _vale para tortura, corrupção e outros crimes_, maior a chance de repetição.

No 36º aniversário da Lei da Anistia, está na hora de, mesmo atrasado, o Brasil cansar de ser o país dos impunes e julgar os agentes da ditadura.

Não deixa de ser um acerto de contas civilizatório com o passado.

Mas é muito mais um projeto de futuro de democracia, tolerância e dignidade.

Lugar de torturador, de ontem e de hoje, é na cadeia.

Campanha da anistia não defendeu anistiar torturadores (Foto: Jorge Araújo/Folhapress)
Campanha da anistia não defendeu anistiar torturadores (Foto: Jorge Araújo/Folhapress)

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