27/07/2015

Censura vetou dueto de Milton Nascimento e Dorival Caymmi

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Documentos obtidos pelo jornal O Globo revelam a letra original de “Hoje é dia de El Rey”, canção que seria gravada pela dupla em 1973, mas só pôde ter versão instrumental; veja a versão censurada

Por Thiago Herdy, do jornal O Globo

A letra de uma canção esquecida numa pasta do acervo do Serviço de Censura às Diversões Públicas, hoje sob cuidados do Arquivo Nacional, guarda a história de um encontro que a música brasileira não viu. Milton Nascimento e Dorival Caymmi planejavam cantar juntos na gravação de “Hoje é dia de El Rey”, composta para “Milagre dos peixes”, o primeiro disco do mineiro depois do sucesso do “Clube da Esquina”. Mas a caneta da censora Marina de Almeida Brum Duarte borrou o encontro de Bituca e Algodão, proibido pelo “conteúdo nitidamente político” da letra entregue para aprovação do governo militar pelo parceiro de Milton, o compositor Márcio Borges, segundo anotação da própria censora.

No disco “Milagre…”, o plano de Milton era deixar cinco das onze faixas apenas instrumentais. O número foi elevado a oito por força do veto a três letras, obrigando-o a compensar a falta de texto com vozes. De 1973 — ano de lançamento do disco — até hoje, trechos e versões da letra de “Hoje é dia de El Rey” apareceram em livros e encartes de CDs (e até mesmo no site de Milton), por força da memória de quem havia conhecido a canção nunca gravada. O GLOBO localizou no Arquivo Nacional a letra original, única reconhecida pelo letrista como a que seria cantada no estúdio da Odeon naquele outono, até hoje inédita.

— A letra certa é a censurada — confirma Borges.

— Já estava esquecida pela passagem do tempo — reconhece Milton, surpreso com a descoberta, 42 anos depois.

“Falei que seria seu filho”, diz Milton
Inspirada na “História dos pescadores”, clássico de Caymmi, “Hoje é dia…” retrata o conflito entre duas gerações, pai e filho que dialogam “num clima de alegorias pesadas e atmosfera musical densa e expressionista”, como define o próprio autor. Das montanhas de Minas, os compositores lapidaram na canção uma conversa sem o espírito de ninar da “jangada (que) vai sair para o mar”, mas apenas a agonia do dia em que “Pedro, Chico, Nino e Zeca” não voltam do mar.

— Cheguei a cantar (para Caymmi), para mostrar o que queríamos fazer — conta Milton. — Eu falei que seria seu filho e não tinha outra pessoa para cantar comigo. A gente não viveu muito a música, porque ela logo foi descartada.

O clima é sombrio em “Hoje é dia…”. Descontente, o filho interpretado por Milton ironiza poderosos (“Não pode o justo sobreviver/ Se hoje esqueceu o que é bem querer/ Rufai tambores, saudando El Rey/ Nosso amo, senhor e dono da lei”). Resignado, o pai, Caymmi, pede compreensão (“Filho meu/ Ódio você tem/ Mas alguém/ Quer provar o seu amor”), apesar do desengano (“Sem clarins e sem mais tambor/ Nenhum rei vai mudar a velha dor”). No fim apoteótico, bem mais forte que o da versão até então conhecida, pai e filho unem-se para propor uma “viagem na poesia”, pois “a verdade é triste” e a “coragem pode matar”. O desassombro para enfrentar o perigo é “empurrar a porta sombria” e “encontrar nova alegria pra amanhã”.

— O conteúdo político da letra era evidente. Mas, naquela época, também passavam coisas evidentes; por isso, não imaginávamos que viesse a ser censurada. Achava que a música “Milagre dos peixes” (que dá nome ao disco) não fosse passar. Mas foi uma das únicas que passaram — lembra Borges.

Para ele, o tempo da canção passou: — Regravá-la hoje teria como único propósito um mergulho no passado, algo mais interessante para a História. Eu a considero obra do tempo dela, metafórica, até certo ponto infantil. Éramos jovens.

O cantor e compositor Milton Nascimento em 1974 (Luiz Pinto/Agência O Globo)
O cantor e compositor Milton Nascimento em 1974 (Luiz Pinto/Agência O Globo)

Menção à letra de Márcio Borges
A decisão, a fórceps, de gravar melodias sem letras fez de “Milagre dos peixes” uma obra sem parâmetros na carreira de Milton. Naná Vasconcelos carrega uma floresta nas costas; Clementina de Jesus denuncia o racismo, do terreiro, em um único verso; as músicas mineira, afro e latino-americana fundem-se em encontro raro, como exaltou Vinicius de Moraes em artigo da época. Na visão dos compositores, a voz grave de Caymmi parecia sob medida para o sábio personagem de “Hoje é dia…”. Ele morreria 35 anos depois, em 2008, sem nunca ter entrado em estúdio para gravar qualquer canção com Milton.

Mesmo lançada como música instrumental, “Hoje é dia…” aparece na ficha técnica do álbum com a menção de que existe uma letra assinada por Borges.

— Deixar um recado do tipo no disco era uma forma de denunciar a censura — afirma o pesquisador da música brasileira Paulo Cesar de Araújo, lembrando que chiados excessivos, tecnicamente desnecessários, em determinados trechos de discos da época também cumpriram o mesmo papel.

Especialista na obra de Milton, a socióloga Sheyla Diniz, da Unicamp, lembra que, na versão ao vivo do disco, gravada em 1974, após apresentar “Hoje é dia…”, Milton emenda “Sabe você”, de Carlos Lyra e Vinicius. É a canção dos versos “Antes que o seu poder acabe/ Eu vou mostrar por que eu sei mais que você” e “Você não tem alegria, nunca fez uma canção/ Por isso a minha poesia, você não rouba, não”. Recado dado.

— Há quem diga que a linguagem nonsense e o experimentalismo de “Milagre” são apenas uma resposta à censura, mas acho que não. É também uma vontade de testar linguagens. O desenvolvimento técnico da época, com novas tecnologias chegando, proporcionou mais formas de experimentação — analisa.

 “Minha mãe gostava muito dele, meu pai também”, diz Danilo Caymmi

Do lado baiano, o espectro do encontro de Bituca e Algodão é novidade.

— Apresentei Milton à minha família, minha mãe gostava muito dele, meu pai também. Ele frequentava nossa casa em Copacabana, mas eu não sabia desses planos — surpreende-se Danilo Caymmi, dono da flauta que aparece em “Catavento”, de Luiz Eça, gravada por Milton, inaugurando intensa convivência musical com o mineiro.

O encontro, no fim dos anos 1960, renderia parcerias em discos e shows, além de saraus de madrugada na Praia de São Conrado, no Rio, e visitas ao sítio Maracangalha, de Caymmi, na Região Serrana. A amizade se estendeu aos irmãos, Dori e Nana. O primeiro fez uma canção em homenagem a Milton, “Nosso homem em Três Pontas”; a segunda o acompanhava, com os filhos a tiracolo, em passeios de Fusca verde nos fins de semana.

Do tempo na casa da família Caymmi em Copacabana, Milton lembra que a aprovação de Dorival era um prêmio:

— Eu ficava feliz porque ele sempre deixou a gente saber que gostava de mim. E eu era apaixonado por ele.

Em parte de seu livro “A música de Milton Nascimento” (Editora Gomes), o compositor Chico Amaral destaca semelhanças essenciais entre o biografado e Caymmi, como a “imaginação musical surpreendente” e “a expansão da composição” na criação de “pequenas suítes em forma de canção”. “Originais e profundos, consideram a música clássica e o folclore, inspirando-se na matéria bruta da vida, e lançam a rede da criação um pouco mais longe que a maioria dos compositores”, escreve.

Milton, por sua vez, gosta de repetir que, desde o início, queria que sua música “não se parecesse com a de mais ninguém”. Ainda assim, reconhece ser impossível se desvencilhar de Caymmi, na música e na vida:

— Esse negócio com o Dorival era maior que uma influência musical. Eu me sentia como se fosse de sua família.

Sobre a época de “Milagre…”, período pós-Ato Institucional nº 5 e marco no recrudescimento da repressão, Danilo lembra:

— Com o sucesso que Milton começou a fazer, a repressão naturalmente ficou mais focada nele.

“Movimento de artistas de caráter subversivo”

Dorival Caymmi com um autorretrato da Década de 1940 (Márcia Foletto/Agência O Globo)
Dorival Caymmi com um autorretrato da Década de 1940 (Márcia Foletto/Agência O Globo)

Fichas do Departamento de Ordem Política e Social do Rio de Janeiro (Dops-RJ) e do Centro de Informações do Exército (CIE) obtidas pelo GLOBO trazem citações a Milton como integrante “do movimento de artistas de caráter subversivo”. O acompanhamento não era obsessivo como ocorria com Chico Buarque e Geraldo Vandré. Mas não era discreto. “O epigrafado e outros artistas vinham promovendo seguidas apresentações na área estudantil, com grande receptividade em todas as faculdades. (…) Mantinham os estudantes em permanente expectativa política e sob influência de um proselitismo desagregador por eles disseminado durante os espetáculos”, registra-se em 1972.

Se “Hoje é dia…” tivesse sido gravada como o previsto, seria o único registro do velho Caymmi embarcado na “Revolução”. Por questões de formação — a canção de protesto tinha origem universitária — e geração — a preocupação política era uma novidade na música brasileira —, o baiano passou ileso por duas ditaduras, a do Estado Novo (1937-1945), de Getúlio, e a militar (1964-1985), destaca Paulo Cesar de Araújo.

— E teria sido interessante vê-lo como intérprete, o que é raro. Em geral, quando cantava nos discos de outros artistas, eram canções dele — lembra Stella Caymmi, sua neta e biógrafa, listando como exceções poucas canções do início de carreira, o disco com músicas de Ary Barroso e songbooks de Almir Chediak. — Se ele fosse gravar, ainda implicaria em aprender a música — brinca, lembrando o espírito e o tempo particular do avô, para quem “até semana de fazer exame de sangue” era “uma semana complicada”.

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Confira a íntegra da letra censurada, escrita por Milton Nascimento e Marcio Borges:

Hoje é dia de El-Rey
Milton Nascimento e Marcio Borges

Não pode o noivo mais ser feliz
Não pode viver em paz com seu amor
Não pode o justo sobreviver
Se hoje esqueceu o que é bem-querer
Rufai tambores, saudando El-Rey
Nosso amo e senhor dono da lei
Soai clarim pois o dia do ódio e o dia do não
Vem com El-Rey

Filho meu, ódio você tem
Mas alguém quer provar o seu amor
Sem clarins e sem mais tambor
Nenhum rei vai mudar a velha dor

Juntai as muitas mentiras
Jogai soldados na rua
Nada sabeis desta terra
Hoje é o dia da lua

Filho meu, cadê teu amor
Nosso rei tá sofrendo a tua dor

Leva daqui tuas armas
Então cantar poderia
Mas em teus campos de guerra
Ontem morreu a poesia

El-Rey virá calar…

Meu filho você tem razão
Mas acho que não é em tudo
Se a gente fosse o que pensa
Estava em outro lugar
Medo ninguém tinha agora
E tudo podia mudar

Matai o amor, pouco importa
Pois outro haverá de surgir
O mundo é pra frente que anda
Mas tudo está como está
Hoje então e agora
Pior não podia ficar

Largue seu dono, viaje noutra poesia
Se hoje é triste e coragem pode matar
Vem, amizade não pode ser com maldade
Se hoje é triste a verdade
Empurre a porta sombria
Encontre nova alegra para amanhã

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