22/10/2015

Casamento como ato político na ditadura

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Por Leticia Fernandes, de O Globo

Vídeo revela imagens da união entre Inês Etienne Romeu e Jarbas Marques sob escolta policial

Os guarda-chuvas se enganchavam uns nos outros do lado de fora do antigo Palácio da Justiça, no Centro do Rio. Convidados aguardavam a saída dos noivos do camburão da Polícia Militar, vigiada por viaturas do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), a polícia política da ditadura militar. No segundo andar do prédio aconteceria uma cerimônia histórica: Inês Etienne Romeu, condenada à prisão perpétua em 1971 e única sobrevivente da Casa da Morte, em Petrópolis, um dos mais cruéis centros de tortura do regime, se casaria com Jarbas Silva Marques, condenado a sete anos de cadeia depois de passagens não menos dramáticas pelos porões da ditadura. Ela tinha 33 anos; ele, 32. Trocaram alianças em 26 de novembro de 1975, já no governo do general Ernesto Geisel. O clima de tensão acinzentava ainda mais aquela quarta-feira chuvosa.

Quarenta anos depois da cerimônia, O Globo teve acesso a um vídeo do casamento, feito com uma câmera Super-8, editado apenas em 2011 e enviado a Inês no mesmo ano. Jarbas e duas das irmãs de Inês, Lucia e Geralda Romeu, nunca tinham visto as imagens, mostradas pela reportagem. Não se sabe se a militante, que morreu em abril deste ano, chegou a ver o vídeo. Naquele dia, depois do casamento, a polícia apreendeu câmeras fotográficas, mas a de Bruno Scharfstein, autor do vídeo, escapou. Ele contou, porém, que policiais tentaram atrapalhar a filmagem:

— A chegada dos noivos foi diferente, a Inês estava sorrindo, apesar da tensão. Ela vinha pelo corredor no meio de uns vinte policiais com metralhadora, o ambiente era pesado, cinza, os PMs são cinzas, mas ela no meio, destoando, muito bonita — disse Scharfstein, na época estudante de economia.

Pouco antes do casamento, o camburão parou na porta do presídio Esmeraldino Bandeira, em Bangu, para pegar Jarbas. Em seguida, fez uma segunda parada no Talavera Bruce, também em Bangu, e Inês entrou. Não se viam desde 1963, quando se conheceram no Butcheco, em Belo Horizonte, bar frequentado pela esquerda mineira e do qual Inês era uma das sócias.

— Foram alguns minutos que a gente teve para conversar depois de 13 anos. Foi um universo de atropelos, troca de assuntos, falamos da Casa da Morte, mas por mensagem cifrada. Depois dos cinco primeiros minutos de conversa, ela fez um grande elogio, falou: ‘nossa, a sua voz é muito bonita’. Foi a primeira grande emoção desse encontro, porque ela praticamente só conhecia a minha voz como cantor — contou o militante, aos 72 anos, que havia enviado à Inês, tempos antes, uma fita cassete com canções de Noel Rosa e Antônio Marcos cantadas por ele.

Clique na imagem e assista ao vídeo produzido por O Globo

Também falaram sobre a segurança de Inês. A família temia que ela fosse vítima de um atentado. Ele a instruiu a ficar à sua esquerda para, caso preciso, a proteger com o próprio corpo:

— Dei a ela alguns critérios de segurança na nossa saída do camburão. Qualquer ação estilo Lee Oswald (assassino de John Kennedy, ex-presidente dos Estados Unidos, morto em 1963), que um cara caminhasse para esfaquear ela ou dar um tiro, eu viria com o meu corpo em cobertura para protegê-la.

Saíram do camburão. Ele algemado com as mãos para frente, ela livre (“tiveram a urbanidade de não algemá-la”). Jarbas vestia uma blusa vermelha e calça azul — disse ter escolhido a roupa para aparecer com as cores do Vietcong e da Revolução Cubana —, Inês usava vestido preto de seda bordado de flor e trancinhas na lateral do cabelo.

O casamento seria um ato político e serviria para proteger a integridade física de Inês. Amigos e familiares convocaram o máximo de jornalistas que puderam. A Assembleia Geral da ONU acabara de coroar 1975 o Ano Internacional das Mulheres, na esteira do movimento feminista internacional. Ao mesmo tempo, os militares diziam que não havia presos políticos no Brasil, e, segundo Jarbas, Inês era a única mulher no mundo, naquele momento, condenada à prisão perpétua:

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— O casamento foi um ato político que desmoralizou a ditadura. Aproveitamos o gancho histórico e eu propus o casamento pensando na sobrevivência dela, que corria risco de morte dentro da prisão. Mas, dentro da viatura, o ato político desapareceu. Foi um ato de sobreviventes, de humanismo, é uma coisa indescritível — contou, emocionado.

A jornalista Lucia Romeu, irmã de Inês e caçula de oito irmãos, lembra que o casamento foi um “oásis” no meio de todo o sofrimento e preocupação com a vida da irmã:

— Foram fatos tão marcantes e tão difíceis que aquilo significou um oásis. Era uma forma de se visitarem, de criarem um fato, chamando atenção.

Inês e Jarbas no casamento, em 1975, após 13 anos sem se verem (arquivo pessoal)
Inês e Jarbas no casamento, em 1975, após 13 anos sem se verem (arquivo pessoal)

“Foi um casamento meteórico”, diz ex-marido de Inês
Subiram a escada rolante do Palácio escoltados por uma dezena de policiais e foram colocados na frente do juiz José de Mesquita Lara. O vídeo mostra o cartunista e escritor Ziraldo, um dos padrinhos do casamento. Lucia, irmã de Inês, acena para a câmera. Flashes de câmeras fazem a imagem piscar. O casamento não durou mais do que um minuto. Para os militares, que pressionaram os noivos para que se casassem dentro do presídio, quanto menos durasse aquele momento, mais fácil seria esquecê-lo. Os PMs só tiraram as algemas de Jarbas para assinar os papéis e trocar alianças. Depois do beijo e do longo abraço, brindaram com água. Casados, voltaram para o camburão e para a vida no cárcere em separado.

— Foi o casamento mais meteórico que eu já vi — disse o noivo, contando que, na descida da escada rolante, levantou os braços para mostrar as algemas aos presentes:

— Não levantei o punho igual aos petistas, mas levantei os braços para mostrar as algemas — brincou, referindo-se ao punho cerrado de petistas presos no mensalão.

Entraram novamente no camburão. Num ato deliberado, os policiais arrancaram com o carro em alta velocidade, fazendo com que o casal tombasse de um lado a outro. Alheios a isso, conversavam sobre o que tinham acabado de viver:

— Um falou para o outro que viu quem tinha que ver. Foi uma emoção sem controle, porque a gente se mostrou vivo diante das pessoas, e principalmente ela, pelo simbolismo do ano e por sua própria história, se mostrou viva diante do mundo — afirmou.

Em mais de uma década sem se ver, o casal trocou cerca de 200 cartas cifradas, para escapar da censura. Uma delas, obtida pelo GLOBO, foi enviada por Inês quatro dias antes do casamento: “Jarbas querido, estou numa agonia que faz dó! Que loucura, sô! Mas estou me “preparando” incrivelmente e vou chegar lá linda, maravilhosa, livre. Acho que um pouco chocante, prepare-se pra isso. É que quero mostrar minha liberdade e o paradoxo da situação toda. Sabe, acho que você é produto da minha imaginação, dos meus sonhos, anseios. Te espero para ser sua mulher e te amar profundamente. Venha também livre, solto, bonito. Sou, hoje, a sua imaginação e sonho. Quem sabe pode se tornar realidade? Beijos e beijos, Inês”.

Uma semana antes do casamento, Geralda Romeu, irmã de Inês, levou ao presídio duas opções de roupa para a cerimônia: um vestido branco e um preto. Ela desfilou para as outras companheiras de cárcere, que escolheram a túnica preta, com a qual aparece nas imagens.

— Ela estava muito animada (com o casamento), a Inês tinha um astral espetacular. Ela pediu e levei dois vestidos, lá ela fez um desfile para outras presas políticas e foi escolhido o preto. Fiquei muitos anos com esse vestido, como uma lembrança dela — contou Geralda.

Jarbas chegou a visitar Inês na cadeia uma vez, mas disse que o casamento não deu certo por marcas das torturas que ambos carregavam. Jarbas foi solto em 1977 e se mudou para Brasília para se tratar no Hospital Sarah Kubitschek, referência em tratamento locomotor. Inês foi a última presa política do Brasil a ser liberada, saindo apenas em 1979, com a Lei da Anistia. Se separaram oficialmente em 1984.

— Inês era uma pessoa muito amável. Tivemos uma relação humana e política, mas o problema foi a realidade massacrante de depois, as lesões de tortura. Tive que sair do Rio, foi uma questão de sobrevivência, assim como ela. Mas foi um divórcio muito amigável.

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